” MEUS COMEÇOS E MEU FIM”, RECORTES DE AFETOS DE NIRLANDO BEIRÃO

Relato autobiográfico mostra leveza na dura tarefa de narrar segredos de família e a experiência com uma doença degenerativa

Relato autobiográfico mostra leveza na dura tarefa de narrar segredos de família e a experiência com uma doença degenerativaBeirão, Nirlando
Meus começos e meu fimCompanhia das Letras • 192 pp • R$ 49,90

Em Meus começos e meu fim, lá pelas tantas, Nirlando Beirão fala de amigos que lhe cobravam livro, na verdade mais que isso: seu livro. Faz décadas, me habituei a ler Nirlando, e a vê-lo e ouvi-lo, em nosso convívio de camaradas e colegas. Cedo se tornou, para mim, desses raros jornalistas que você procura menos pelo assunto do que pela grife, quase sempre garantia de boa viagem para o leitor. A informação lá está, mas não apenas ela; além do saber, há o sabor.

Na contramão dos que pregam um jornalismo impessoal, como se isso fosse possível, há leitores desejosos de sentir que existe uma pessoa por trás do texto informativo. Não alguém que lhe imponha a semostração do pronome “eu”, mas que não se furte a transparecer no que escreve. Muito leitor quer ver uma coisa tal como foi vista, não por um robô, um aspirador de aspas, mas por um observador atento, sensível, inteligente.

Nirlando ganha de saída quem o lê porque não lhe sonega, embalando a informação, o seu modo de ver — essa prenda sem preço de que fala Drummond: “Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver”. Sem preço — e sem igual, já que não há, não houve e jamais haverá repetição do singular modo de ver de cada um de nós. É isso, mais que a informação em si, que nos faz lembrar, tempos depois, de algo lido no jornal ou na revista, no entanto escrito para o dia, para a semana, no máximo para o mês seguinte.Leia também:  O grão de ferrugem que me deita, por Romério Rômulo

Não guardei recortes do que Nirlando Beirão — nascido em Belo Horizonte em 1948 e transplantado para São Paulo nos anos 60 — vem escrevendo em meio século de atividade jornalística, mas de muitos textos dele me ficaram lembranças indesbotáveis. Sua cobertura da revolução sandinista, na Nicarágua, por exemplo. Mas também relatos nada dramáticos, como a invasão de turistas brasileiros em Buenos Aires, nos anos 70. Para a IstoÉ, no final daquela década, “O recomeço do sonho”, artigo a que Caio Fernando Abreu haverá de referir-se como tendo sido sua leitura mais impactante em muito tempo. Ou, para a Playboy, relatos de incursões do repórter aos refinamentos do Harry’s Bar, em Veneza, e do hotel Plaza Athenée, em Paris.

Destilada em revistas e jornais, e aqui e ali em obras de encomenda, como o livro que escreveu em louvor de seu Corinthians, em tabelinha com Washington Olivetto, a prosa boa de Nirlando Beirão só fez crescer em seus leitores o desejo e as tais cobranças por um livro em que ele fosse ainda mais desenvoltamente pessoal.

Pois aqui está esse livro, joia instantânea e duradoura que, no entanto, muitos de seus muitos amigos e leitores não teriam pedido a ele que escrevesse, pelo que há de cruel nas circunstâncias que lhe deram origem. O título, inspirado nos versos célebres de T. S. Eliot, já é pista para o que se vai ler nessas quase duzentas páginas.

Imperioso amor

Fazia algum tempo que Nirlando vinha ruminando um relato para o qual caberia a primeira parte do título — seus começos, sua própria existência, determinada, mais de um século atrás, por um imperioso amor de padre e moça, contemporâneo, quem sabe, do “negro amor de rendas brancas” que Drummond pôs em versos, só que, ao contrário dele, vitorioso e fecundo: a saga de um sacerdote português, seu futuro avô António Cabral Beirão, que uma caravela moderna fez aportar no interior de Minas, onde o jovem pároco de uma cidadezinha qualquer caiu de amores pela bela Esméria — e ela por ele. Escândalo à vista, e dos graúdos. Até por ter se convertido, aos olhos dos fiéis, numa temível caixa-preta, detentor que era de segredos de confessionário, António bateu asas com Esméria rumo a Belo Horizonte, onde, jubiloso, o casal conjugaria o preceito cristão que manda crescer e multiplicar-se.

O que pode um escritor, no enfrentamento de questões vitais, senão escrever? 

Segredo de família mineiramente sonegado à vasta descendência de António e Esméria, fragmentos dele chegariam pouco a pouco a Nirlando, o neto repórter, que o escarafunchou ao longo de décadas, até sentir-se na posse de material bastante para tecer de volta uma bela e esfiapada história. Nisso estava ele quando, três anos atrás, ouviu do médico um diagnóstico, mais que isso, um veredicto inapelável: em seu corpo se instalara uma esclerose lateral amiotrófica, ela, processo degenerativo do qual não há retorno.Leia também:  Bancos Estatais sob Ideologia do Estado Mínimo: Baixe o Livro, por Fernando Nogueira da Costa

Catapultado em definitivo para o que chamou de País da Doença, Nirlando confrontou o mal terrível a que às vezes se refere, com graça muito sua, como sendo “enguiço”. Refeito do atordoamento inicial, viu que tinha pela frente não mais apenas a tarefa de narrar a saga amorosa dos avós, plena de luz e vida, mas também a de enfrentar, com as palavras, aquilo que apontava para o lado oposto, o fato consumado de um “enguiço” sem remédio.

O que pode um escritor, no enfrentamento de questões vitais, senão escrever? Foi o que fez Nirlando, para logo dar-se conta de que entre as duas histórias havia o emaranhamento de que fala Eliot: “Em meu princípio está meu fim […] em meu fim está o meu princípio”.

Nasceu dessa confluência um relato capaz de surpreender até mesmo quem já conhecia o talento e a arte de Nirlando Beirão no trato com as ideias e as palavras. Haverá quem se espante com a capacidade que tem ele de encarar com leveza, uma de suas qualidades de pessoa e escriba, realidades tão pesadas como as de seu “enguiço”. O áspero enredo que o faz transitar sucessivamente da bengala para o andador e deste para a cadeira de rodas, e a progressiva perda dos movimentos que lhe deixa a certa altura pouco mais que o uso da mão direita.

Para o leitor, fica a impressão, certeza mesmo, de que nada de essencial deixou de ser dito, e dito sem um grão de pieguice. Documento humano dos mais fortes e verazes, com refinado tratamento literário, Meus começos e meu fim emociona, entristece, encanta, por vezes faz sorrir. Em muitos, não necessariamente cobradores, acenderá a esperança de que, aberta essa picada, possa Nirlando Beirão seguir nos franqueando seus baús de prosador dos bons.Leia também:  Em São Paulo, capital da Terra Unificada, o poder do Grande Irmão se fortalece, por Sebastião NunesVeja todo o conteúdo da edição #23

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