Quando a economia está desaquecida, não há o repasse. Simplesmente porque não é a mera emissão de moeda que gera a inflação, mas as condições objetivas na ponta
Anos atrás, o programa do Gugu, no SBT, trouxe uma falsa entrevista com um membro do PCC. Nele, o suposto miliciano ameaçava o governador do Estado e outras autoridades. Descobriu-se que a entrevista era uma montagem. O programa foi autuado em cima de uma lógica férrea:
- Se fosse notícia falsa, espalharia o pânico em cima de uma falsificação.
- Se fosse verdadeira, concretizaria a chantagem.
De fato, a chantagem só se consuma quando há a publicidade da chantagem. Porque a chantagem é uma ameaça e, no caso do PCC, a ameaça dependia diretamente da publicidade recebida.
Mal comparando, é o que ocorre com o terrorismo em torno da Lei do Teto.
Hoje, na primeira página de O Globo, há uma ameaça estendida.
A notícia tem hierarquia. Títulos, chamadas de primeira página, têm peso muito maior, ou seja, impactam muito mais o público, do que o conteúdo em si.
Como se sabe, o governo Macri, na Argentina, eleito sob aplauso geral do mercado e da mídia, levou o país a uma crise imensa, especialmente devido à escassez de divisas externas. A Argentina quebrou por falta de dólares, o que levou a uma explosão do câmbio que gerou uma enorme inflação e desarranjou o tecido econômico e social do país.
A analogia com o Brasil não se sustenta já que o país, desde o governo Lula está sentado em cima de reservas cambiais robustas que preveniram as crises recorrentes desde os anos 80. Então, como estabelecer essa comparação?
Simples: recorre-se ao “suponhamos que” e estará resolvido. Suponhamos que o ponto inicial da crise da Argentina foi o descontrole fiscal e, pronto!, já podemos montar nossa analogia.
Um parágrafo interno do artigo ameniza a manchete.
“Isso não significa que o Brasil vá quebrar como a Argentina em tão pouco tempo, mas indica que há uma tendência de deterioração fiscal que pode acabar em descontrole, como no caso argentino, e com a consequente ruína política do presidente”.
A mensagem do PCC era a de que “ou solta nossos líderes ou mataremos todos”. A mensagem do “mercado” é, ou respeita o Teto ou haverá o destino manifesto de repetir a Argentina de Macri. E sua voz chegou ao poder através da pitonisa Malu.
Pouco importa se o manifesto do PCC é falso ou se não há relação causal entre estouro do teto e inflação. O que importa é o efeito da ameaça, que não será amenizada por um parágrafo com três linhas. É a mesma coisa que o jacaré da vacina, de Bolsonaro. Se o distinto público acreditar, pouco importa se a relação é falsa. Basta acreditar, para se atingir o efeito de fugir da vacina.
No caso da Lei do Teto, se não houvesse a chantagem explícita da mídia, não haveria efeito nenhum sobre a inflação.
O jogo da inflação
Vamos por partes, para entender o jogo.
Qualquer teoria, para ser correta, precisa passar pela “prova do pudim”. Isto é, conferir o que se passa no mundo real, se os agentes se comportam como a teoria preconiza.
Há três universos a serem analisados: o das moedas em circulação, o da dívida pública e o dos bens e salários da economia. Para financiar o estouro do teto, o governo tem dois caminhos:
- ou emitir mais moeda ou
- emitir mais títulos.
No primeiro caso, o governo não paga juros; no segundo caso, paga.
Vamos ao segundo esqueminha: os três mecanismos que pressionam os preços, provocando inflação.
Mecanismo 1 – Custos de produção.
Mecanismo 2 – Demanda.
Mecanismo 3 – Expectativas.
Para emitir mais títulos, o governo aumenta os juros. Aumentando os juros, aciona o Mecanismo 1, o dos custos.
Vamos a uma continha bem simples para exemplificar.
Uma empresa gasta R $500 para produzir, R $1.000 para adquirir matéria prima. Como precisa adquirir a matéria prima antes de receber pela venda, toma crédito para capital de giro. Se paga 2% ao mês e o giro do estoque é de 3 meses, o custo será de R$ 61,21. E o custo final será de R$ 1.561,21.
Caso a taxa de juros aumente para 4% ao mês, o custo financeiro aumentará para R $124,86 e o custo final para R $1.624,86.
Suponhamos que sua margem de lucros seja de 10% e ela produza 1.000 produtos. No primeiro caso, o preço final será de 1,72; no segundo, de 1,79, um aumento de 4,08% unicamente devido ao fator financeiro. Obviamente não somamos os aumentos das matérias primas também influenciadas pelo custo financeiro.
Custo de produção | 500,00 | 500,00 | 500,00 | 500,00 |
Matérias prima | 1.000,00 | 1.000,00 | 1.000,00 | 1.000,00 |
Custo do estoque | 2% | 4% | ||
Giro | 3 | 61,21 | 3 | 124,86 |
Custo | 1.561,21 | 1.624,86 | ||
Margem | 10% | 156,12 | 10% | 162,49 |
Preço | 1.717,33 | 1.787,35 | ||
Produção | 1.000,00 | 1.000,00 | ||
Preço de venda | 1,72 | 1,79 | ||
Aumento | 4,08% |
Aí se entra no Mecanismo 2, a demanda. Ou seja, será que haverá consumidores em condições de pagar por esse aumento?
Se não houver, a única alternativa será reduzir a margem de lucro do produtor. Ela terá que cair para 6,08% para manter o mesmo preço do produto. Se não for suficiente, terá que derrubar mais ainda a margem. Se, ainda assim, não conseguir vender, quebra.
Pior: essa reação à alta de juros não se restringe à empresa em si, mas a toda a economia. Devido ao aumento de juros, toda a economia estará pior do que no momento anterior. Então não basta voltar aos preços do Momento 1 para conseguir colocar seus produtos. O desconto terá que ser maior, ou então, não se vende.
E ainda não se incluiu na história o Mecanismo 3, as expectativas. Incluindo, viramos todos jacarés.
Eu sei que não há demanda para alta de preços. Mas se o jornal diz que os preços vão aumentar, se eu não antecipar meus aumentos, serei apanhado no contrapé e não conseguirei repor os estoques. Quanto mais vender, maior será o meu prejuízo na hora de repor os estoques.
Quando Malu Gaspar diz que o estouro da Lei do Teto levará o Brasil a repetir a Argentina, pouco importa se a afirmação tem ou não base científica. Se a maioria acreditar, a profecia se realiza. E irão tratar de aumentar seus preços, mesmo vendendo menos, simplesmente porque acreditam que todos os preços estarão mais altos quando for repor os estoques. Então preferem aumentar os preços – e vender menos – do que manter os preços e as vendas.
Os juros e o jacaré da vacina
Assim como a vacina não torna as pessoas jacaré, a emissão de moedas não gera inflação em si. Sem a intervenção de Malu Gaspar, isso só ocorreria nas seguintes circunstâncias:
- A economia já está aquecida.
- A emissão provoca uma expansão no crédito, de empresas querendo ampliar ainda mais a produção.
- Com a economia aquecida, a ampliação da produção aquece mais ainda, impacta os salários e as matérias primas gerando inflação. E por que a inflação? Justamente porque, por suposto, a economia está aquecida, isto é, vendendo muito e permitindo o repasse dos preços.
Quando a economia está desaquecida, não há o repasse. Simplesmente porque não é a mera emissão de moeda que gera a inflação, mas as condições objetivas na ponta: isto é, a presença ou não de consumidores em condições de comprar produtos com preços reajustados. A não ser no caso da profecia auto-realizada da Malu Gaspar.
E quem pratica essas altas? Especialmente as empresas que têm poder de mercado.
Em suma, há uma enorme discussão teórica sobre os (não) efeitos da emissão de moedas sobre a inflação, em economias desaquecidas. Assim como uma enorme discussão científica entre vacinas e hidroxicloroquina.
Quando a discussão transborda para a discussão leiga da mídia, todos viramos jacarés.
Em 1929, o velho Joseph Kennedy dizia que, quando o engraxate de Wall Street começou a dar palpites de ações, a explosão estava próxima. No caso brasileiro, quando a Lei do Teto transborda até para as colunas políticas é hora de se pensar na diferença entre ciência e crendice.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)