MEMÓRIAS JORNALÍSTICAS: O PRIMEIRO CHEFE A GENTE NUNCA ESQUECE

Seu único defeito foi o entusiasmo com minhas musiquinhas, que o levou até a montar um lobby junto a Caetano Velloso, levando uma fita que gravamos em seu apartamento. Caetano deve ter pensando o mesmo que eu, depois da conversa de amigo com Talvani: — Esses jornalistas são todos meio megalomaníacos.

Meu primeiro emprego formal foi de estagiário da revista Veja. Terminei o colegial, prestei vestibular, passei direto na Escola de Comunicações e Artes da USP, livrando-me do cursinho. 

Chegando a São Paulo, o grande Luiz Fernando Mercadante – então dirigindo a revista Realidade – me convidou para um almoço.

Soube de minha ida para São Paulo através de uma repórter da Realidade que atuara como jurada em um Festival de Casa Branca que eu venci.

Nem precisava de convite. Era na casa de tia Zélia, que se casara com ele muito moça. Tiveram dois filhos, separaram-se, dali para frente Luiz Fernando teve muitos amores mas sempre manteve a ligação umbilical com tia Zélia, seu porto seguro. Toda semana ia almoçar na tia.

Luiz Fernando entrara para o jornalismo através do vô Issa, que o apresentou a Carlos Lacerda. Muito jovem tornou-se repórter político prestigiado na Tribuna da Imprensa, morando um tempo na casa do pai de Luiz Garcia.

Depois, voltou para Poços, reiniciou carreira em São Paulo e acabou tornando-se um dos jornalistas prediletos de Roberto Civita, o herdeiro de Victor Civita.

Garcia era redator-chefe e o melhor e mais discreto jornalista da Veja daqueles tempos.

Luiz Fernando tentou, primeiro, o Jornal da Tarde, com seu amigo Laerte Fernandes, que era Secretário de Redação. Mas, no primeiro semestre, não consegui me matricular no turno da manhã na ECA e não tive como estagiar no JT.

A segunda oportunidade foi na Veja, em um almoço na casa da tia para o qual Fernando levou o Luiz Garcia e o Talvani. Já tinha conseguido, na faculdade, a mudança para a parte da manhã e ficara com as tardes liberadas.

E aí chego no Talvani, meu primeiro chefe e um tipo curiosíssimo, do qual tenho ótimas recordações

Veja foi criada em 1967, com uma redação inchada. Nos anos seguintes a redação foi se adequando ao tamanho da revista, prpocurando o equilíbrio financeiro. Entrei em 1o de setembro, na primeira abertura de estágio da revista, junto com os queridos Dailor Varella e Ângela Ziroldo.

Depois de três meses de estágio, recebi o honroso convite para substituir Tárik  de Souza, que tirara férias da editoria de Música. O Editor de Artes e Espetáculos era Carmo Chagas.

A estrutura de redação da Veja era meio estranha, provavelmente copiando o Time.

Havia as editorias-mãe. Por exemplo, Artes e Espetáculos. Debaixo delas, as subeditoriais. No caso, Música, Teatro, Artes Plásticas e Comportamento e Gente.

Depois, uma reportagem Geral subordinada a um Chefe de Reportagem, por sua vez ligado a um Secretário de Redação, mas atendendo às pautas dos editores.

Creio que o modelo visava, através dos repórteres generalistas, suprir a visão mais técnica e fechada das editorias especializadas.

Creio ter me saído bem na música. Cometi alguns atrevimento, com críticas dos recém lançados Ivan Lins e Tim Maia, outra crítica de um show do Chico Buarque na Boate Dobrão, uma reportagem sobre o grande violonista José Lanzac, o maior do país nos anos 20, mas que morrera esquecido em São João da Boa Vista.

Já tinha um bom conhecimento de estrutura de composição, noções básicas de harmonia e assimilei rapidamente o estilo ferino da editoria, cujo modelo máximo era José Ramos Tinhorão como redator da seção Gente.

No final do mês Talvani me aborda no corredor.

— Nassif, amanhã quero falar com você, mas na condição de amigo.

No dia seguinte, mal cheguei na redação ele me chamou para uma reunião em uma das salas fechadas.

— Quem está falando com você não é seu chefe, mas seu amigo. Amanhã vou te fazer uma proposta de salário de Cr $ 500. É o dobro do que você está ganhando, mas não é justo. Não aceite nada abaixo de Cr $ 1.500,00.

Não entendi nada, mas segui as recomendações.

Talvani era do Rio Grande do Norte. Eram três irmãos jornalistas, que brigavam como o diabo entre si. Cuidávamos de nunca tomar partido.

No dia seguinte ele me chama de novo:

— Nassif, tenho aqui uma proposta para te efetivar, de Cr$ 500.

Conforme o combinado, recusei e exigi Cr$ 1.500.

E ele:

— Bom, lamento muito. Vou tentar encontrar um emprego para você na Folha ou no Estado.

Não entendi nada. Mas como tinha acabado de chegar do interior, não quis discutir. No interior aprendemos a não discutir com loucos.

Fui até a mesa do Carmo e me despedi.

Ele:

— Mas porque está indo embora?

Contei a conversa com o Talvani.

— Tire esta semana e vá para Santos namorar. Segunda o Tárik volta e iremos conversar com o Sérgio Pompeu.

Sérgio era um dos redatores-chefe, ao lado do Luiz Garcia, e o ponto de equilíbrio emocional de Mino na redação.

Na segunda voltei, fui com o Carmo e o Tárik na sala do Sérgio e rapidamente fechou questão em torno dos Cr$ 1.500.

Saí aliviado da reunião e topei com Talvani no corredor. Nem tive oportunidade de lhe agradecer a dica.

—  Nassif, veio nos visitar?

— Não, vim trabalhar. O Sérgio aceitou minha proposta.

Talvani ficou indignado. Foi até a sala do Sérgio, bateu boca dizendo-se desautorizado. Mas na terça feira não teve remédio. Passei a trabalhar como efetivo, sob a chefia dele.

Até então estava alocado para Música e Comportamento. Ele me avisou que a moleza acabara. Dali por diante, seria só pedreira.

No meio das pedreiras, surgiu uma pauta agradável da Economia. Os editores eram Paulo Henrique Amorim e Emilio Matsumoto. Uma pauta sobre o circo Orlando Orfei.

Era um personagem fantástico, aliás, morto há algumas semanas.

Talvani me passou a pauta e me ordenou que não pedisse fotógrafo para o chefe dos fotógrafos. Ele mesmo queria fotografar.

Esqueci e pedi fotógrafo, não por birra mas porque sempre fui meio esquecido de detalhes.

Fui à tarde para entrevistar Orfei, à noite no circo e na manhã seguinte na redação, para redigir a matéria. Ainda não me havia acostumado com o burburinho da redação, por isso me escondia na baia de Artes e Espetáculos para escrever.

Estava imerso entre leões, tigres, bailarinas e domadores quando ouço o grito de Talvani:

— Nassif, venha aqui!

Fui, atravessei a baia central e parei de pé em frente sua mesa. Ele estava indignado pelo fato de eu ter solicitado fotógrafo.

— Quem você pensa que é para ficar na baia de Artes e Espetáculos? Você é um foca, ouviu?, um foca.

Voltei para a baia e tentei prosseguir com a matéria, mas não dava. As teclas embaralhavam-se na minha frente, não conseguia enxergar nada.

Levantei, sai da baia, entrei de novo na baia da Geral, como um autômato, chutei uma cadeira que estava na minha frente e parei em frente o Talvani, ele sentado, eu de pé:

— Olha aqui, vá gritar com suas negas. Quem tem chefe é índio. Nunca mais grite comigo.

E voltei bufando.

Ainda nem me acalmara, quando Talvani entrou na baia da editoria.

— Vim aqui para pedir desculpas.

E eu, ainda com sangue fervendo:

— Não aceito!

— Como, não aceita?

— Não aceito. Você me ofendeu em público e vem pedir desculpas em particular?

Talvani levantou-se, meio sem graça, e voltou para a sua baia.

Aí caiu a minha ficha. Besta, precisando do emprego e faço essa besteira de não aceitar desculpas de chefe.

Não se passaram cinco minutos e Talvani me chamou de novo. Lá fui eu, esperando a demissão. Cheguei na sua mesa, ele tinha convocado todos os repórteres presentes. E, na frente deles, me pediu desculpas.

Dali em diante, foi o melhor chefe de reportagem que encontrei, sempre entusiasmado com o trabalho, os furos, sem entrar no jogo de panelinha dos repórteres mais antigos.

Seu único defeito foi o entusiasmo com minhas musiquinhas, que o levou até a montar um lobby junto a Caetano Velloso, levando uma fita que gravamos em seu apartamento.

Caetano deve ter pensando o mesmo que eu, depois da conversa de amigo com Talvani:

— Esses jornalistas são todos meio megalomaníacos.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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