Max Weber argumentava, em seu célebre ensaio de sociologia das religiões, que a ética protestante era favorável ao desenvolvimento do capitalismo, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos; encontramos uma hipótese análoga, meio século antes, em certos escritos de Marx (em especial, nos Grundrisse). Todavia, neste mesmo texto, Weber sugere que a ética católica era, ao contrário, fundamentalmente hostil ao espírito do capitalismo.
Em uma nota de rodapé, no contexto de uma polêmica contra os trabalhos de Franz Keller, ele afirma que as tomadas de posição da Igreja Católica em relação ao capitalismo enquanto tal são determinadas por uma “aversão tradicionalista, sentida o mais das vezes de forma confusa, contra o crescente poder impessoal do capital – dificilmente suscetível, por isso mesmo, de eticização”[i]
No decorrer do debate que provocou a publicação de seu livro, Weber propôs um novo conceito: o de uma incompatibilidade (Unvereinbarkeit) entre os ideais aos quais se subscreve o crente católico seriamente convencido” e a “busca ‘comercial’ do ganho”. De fato, esta incompatibilidade não exclui as adaptações, mas, acrescenta o sociólogo, “eu não posso interpretar os numerosos ‘compromissos’ práticos e teóricos senão justamente como ‘compromissos’”[ii]. Em outros termos: se existem compromissos, é porque duas potências hostis se confrontam, e a Unvereinbarkeit continua sendo o tom dominante da relação católica com o espírito do capitalismo.
Ele retorna a esta problemática em diversos outros textos, notadamente em sua História Econômica: “A aversão profunda da ética católica, seguida pela ética luterana, a toda tendência capitalista repousa essencialmente sobre a repugnância que lhes inspira a impessoalidade das relações no interior da economia capitalista. Esta impessoalidade subtrai da igreja e de sua influência moralizadora certas relações humanas, excluindo assim toda infiltração e toda regulamentação ética de sua parte.”[iii]
A hipótese weberiana me parece essencial para compreender diversos fenômenos sociorreligiosos, desde o século XIX até hoje. De fato, esta hostilidade, esta aversão, esta “antipatia” (um outro termo utilizado por Weber) contra o capitalismo assumiu, particularmente no século XIX, um caráter conservador, retrógrado, em uma palavra, reacionário. Estas manifestações não tinham escapado à atenção de Marx e Engels, que as designou ironicamente de “socialismo feudal”.
Eis o que dizem sobre o assunto no Manifesto do Partido Comunista, que as denuncia, mesmo reconhecendo a sua dimensão crítica (antiburguesa): “O socialismo feudal, um misto de lamento, pasquim, eco do passado e vaticínio das ameaças do futuro – por vezes, atingindo a burguesia no coração com veredictos amargos e espirituosamente dilacerantes, mas sempre causando impressão engraçada, graças a sua total incapacidade de compreender o curso da história moderna”[iv].
Tratava-se, provavelmente, de autores tais como o filósofo social romântico e católico Johannes von Baader, firme partidário da Igreja e do Rei que denunciava, no entanto, a condição miserável dos proletairs (seu termo) na Inglaterra e na França, mais cruel e desumana do que a servidão. Criticando a exploração brutal e nada cristã desta classe desprovida pelos interesses do dinheiro (Argyrokratie), ele propõe que o clero católico se torne o defensor e o representante dos proletairs.[v]
Dito isso, vê-se aparecer, no seio do capitalismo, uma corrente anticapitalista de esquerda. Paradoxalmente, o crescimento de uma esquerda católica aparece em relação ao fato de que a Igreja se mostrava cada vez mais disposta a procurar um compromisso com a sociedade burguesa. Depois da mordaz condenação dos princípios liberais no Syllabus (1864), Roma parecia admitir, desde o fim do século XIX, o advento do capitalismo e o estabelecimento de um Estado moderno (“liberal”) burguês como fatos irreversíveis.
A manifestação mais aparente dessa nova estratégia foi a aproximação da Igreja francesa (até então defensora incondicional da monarquia) com a República. O catolicismo intransigente toma a forma de um “catolicismo social” que, ainda que criticando sempre os excessos do “capitalismo liberal”, não mais coloca verdadeiramente em questão a ordem social e a economia existentes. Seguem na mesma direção todos os documentos provenientes da magistratura romana (os encíclicos pontificiais) assim como a doutrina social da Igreja, do Rerum Novarum (1891) até Ratzinger (Bento XVI).
Foi precisamente no momento da “reconciliação” – real ou aparente – da Igreja com o mundo moderno que apareceu uma nova forma de socialismo católico, notadamente na França, que se tornaria uma minoria consequente na cultura católica francesa. Na virada do século, vê-se florescer simultaneamente as formas mais reacionárias do anticapitalismo católico – Charles Maurras, o movimento da Ação Francesa e a ala regressiva da Igreja, que assumiriam uma parte ativa na sinistra campanha antissemita contra Dreyfus – e uma forma de anticapitalismo não menos “intransigente”, mas agora de esquerda, cujo primeiro representante foi o escritor dreyfusiano filosemita e socialista libertário, Charles Péguy, que tornou-se católico em 1907 apesar de jamais ter sido recebido pela Igreja. Esta corrente não era isenta de ambiguidades, mas seu engajamento fundamental era à esquerda.
A partir do fim do século XIX, e mais ainda depois da Revolução Russa, era evidente que o inimigo principal do Vaticano não era mais o “liberalismo” burguês, mas definitivamente o movimento operário socialista e, em particular, o “comunismo ateu”. Pio XII vai se distinguir neste combate, excomungando os comunistas na Itália (1948) e interditando, na França, a atividade de padres operários, excessivamente próximos da CGT (anos 1950). Woytila, João Paulo II, o papa polonês, reassumirá esta iniciativa em um novo contexto histórico.
Apesar da hostilidade romana, a esquerda católica continua a se desenvolver na Europa e ainda mais na América Latina, com o crescimento, a partir de 1960, da Teologia da Libertação. Uma das características principais desta corrente, representada por movimentos estudantis, operários e rurais, por comunidades de base, teólogos, mas também de bispos, é a condenação intransigente, moral e política, do capitalismo, em termos nos quais a influência do marxismo é visível.
Veja-se, por exemplo, a conclusão do documento Marginalização de um povo: o grito das igrejas, assinado pelos bispos e superiores de ordens religiosas da região Centro Oeste do Brasil: “É preciso vencer o capitalismo: ele é o maior mal, o pecado acumulado, a raiz podre, a árvore que produz todos os frutos que conhecemos tão bem: a pobreza, a fome, a doença, a morte. Por isso, é preciso que a propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terra, comércio, bancos) seja superada.”[vi]
Se Paulo VI manifestou certa tolerância face à teologia da libertação, o mesmo não foi o caso dos dois pontífices seguintes: João Paulo II e Bento XVI perseguiram ativamente seus representantes, chegando a impor ao teólogo Leonardo Boff um ano de “silêncio obsequioso”.
Jorge Bergoglio, o Papa Francisco
O que esperar do Cardeal Jorge Bergoglio, eleito Pontifex Maximum em março de 2013? De fato, ele era um latino americano, o que já significava uma mudança. Mas ele fora escolhido pelo mesmo conclave que havia empossado o conservador Ratzinger, e vinha da Argentina, um país onde a Igreja não prima pelo progressismo – tendo vários de seus dignatários cooperado ativamente com a sanguinária ditadura militar. Este não foi o caso de Bergoglio – segundo certas testemunhas, ele teria até mesmo ajudado perseguidos pela Junta a se esconder ou a sair do país – mas ele também não era opositor ao regime: um “pecado por omissão”, poder-se-ia dizer. Se alguns cristãos de esquerda como Adolfo Perez Esquivel (Prêmio Nobel da Paz) sempre o apoiaram, outros o consideravam como um opositor de direita ao governo dos “peronistas de esquerda” Nestor e Christina Kirchner.
Seja o que for, uma vez eleito, Francisco – o nome que ele escolheu, em referência a São Francisco, o amigo dos pobres e dos pássaros – se distinguiu imediatamente pelas tomadas de posição engajadas e corajosas. Em certo sentido ele faz lembrar do papa Roncalli, João XXIII: eleito como “papa de transição” para assegurar a continuidade da tradição, que deu início à transformação mais profunda na Igreja em séculos: o Concílio Vaticano II (1962-65). Aliás, Bergoglio tinha pensado, num primeiro momento, em assumir o nome de “João XXIV”, em honra a seu predecessor dos anos 1960.
A primeira viagem do novo pontífice para fora de Roma ocorreu em julho de 2013, no porto italiano de Lampedusa, onde chegavam centenas de imigrantes clandestinos, ao passo que muitos deles tinham se afogado no Mediterrâneo. Em sua homília, ele não temeu assumir a contracorrente do governo italiano – e de boa parte da opinião pública – ao denunciar a “globalização da indiferença” que nos deixa “insensíveis aos gritos dos outros”, isto é, ao destino “dos imigrantes mortos no mar, nestes barcos que, no lugar de serem um caminho da esperança, foram uma rota para a morte”. Ele retornaria em várias ocasiões a esta crítica da desumanidade da política europeia quanto aos imigrantes.
Quanto a América Latina, uma transformação notável também aconteceu. Em setembro de 2013, Francisco encontrou-se com Gustavo Gutierrez, o fundador da teologia da libertação, e o jornal do Vaticano, Osservatore romano, publicou pela primeira vez um artigo favorável a este pensador. Outro gesto também simbólico foi a beatificação de Dom Romero, arquiduque de El Salvador, assassinado em 1980 pelos militares por ter denunciado a repressão contra a população[1] – um herói celebrado pela esquerda católica latino-americana, mas ignorado pelos Pontífices precedentes. Na ocasião de sua visita à Bolívia, em julho de 2015, Bergoglio prestou uma imensa e vibrante homenagem à memória de seu companheiro[2] jesuíta, Luis Espinal de Camps, um padre missionário espanhol, poeta e cineasta, morto sob a ditadura de Luis Garcia Meza, a 21 de março de 1980, em razão de seu engajamento nas lutas sociais. Em seu encontro com Evo Morales, o presidente socialista boliviano ofereceu-lhe uma escultura feita pelo mártir jesuíta: uma cruz posta sobre uma foice e um martelo em madeira.
Em sua visita à Bolívia, Francisco visitou um Encontro Mundial de Movimentos Sociais na cidade de Santa Cruz. Seu discurso, na ocasião, ilustra a “profunda aversão” ao capitalismo da qual falava Max Weber, mas em um nível jamais alcançado por qualquer um de seus predecessores. Segue uma passagem, que se tornou célebre, desta intervenção: “Está-se a castigar a terra, os povos e as pessoas de forma quase selvagem. E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia – um dos primeiros teólogos da Igreja – chamava de “o esterco do diabo”: reina a ambição desenfreada de dinheiro. É este o esterco do diabo. O serviço ao bem comum fica em segundo plano. Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco a nossa casa comum, a irmã e mãe terra.”[vii]
A iniciativa de Francisco encontra, como era previsível, uma importante resistência por parte dos setores mais conservadores da Igreja. Um de seus opositores mais ativos é o Cardeal norte-americano Raymond Burke, um defensor entusiasta de Donald Trump, que também entrou em contato, na ocasião de uma viagem à Itália, com Matteo Salvini, o chefe da Legga del Norte… Alguns de seus adversários acusam o novo pontífice de ser um herético, ou mesmo um… marxista disfarçado.
A Rush Linebaugh, um jornalista católico (norte-americano) reacionário, tendo o qualificado de “Papa marxista”, Francisco respondeu recusando polidamente o adjetivo, complementando que ele não estava ofendido pois “conhecia vários marxistas que eram pessoas de bem”. De fato, em 2014 o Papa recebeu em audiência dois eminentes representantes da esquerda europeia: Alexis Tsipras, então dirigente da oposição ao governo de direita de Atenas, e Walter Baier, o coordenador da rede Transform, composta por fundações culturais ligadas ao Partido da Esquerda Europeia (como a Fundação Rosa Luxemburgo da Alemanha). Nesta ocasião, decidiu-se iniciar um processo de diálogo entre marxistas e cristãos, que tomou a forma de vários encontros. Que culminaram, em 2018, em uma Universidade de Verão comum na ilha de Syros, na Grécia.
É verdade que, a respeito do direito das mulheres a disporem de seu corpo e da moral sexual em geral – contracepção, aborto, divórcio, homossexualidade – Francisco mantém suas posições conservadoras da doutrina da Igreja. Mas se vê alguns sinais de abertura, da qual o violento conflito, em 2017, com a direção da Ordem de Malta, uma instituição riquíssima e aristocrática da Igreja católica, é um sintoma gritante. O arquiconservador Grande Mestre da Ordem, o Príncipe (!?) Matthew Festing havia exigido a demissão do Chanceler da Ordem, o Barão de Boeslager, pelo terrível pecado de ter distribuído contraceptivos a populações pobres ameaçadas pela epidemia de AIDS na África. O chanceler apelou ao Vaticano, que lhe deu razão contra Festing; este – apoiado pelo cardeal Burke – recusando-se a obedecer, foi deposto de sua posição pelo Vaticano. Isso não é, ainda, a adoção dos contraceptivos pela doutrina moral da Igreja, mas é uma mudança.
Evidentemente, o Papa Francisco não tem nada de marxista, e sua teologia está bem distante da teologia da libertação sob sua forma marxizante. Sua formação intelectual, espiritual e política deve muito à teologia do povo, uma variante argentina não marxista da teoria da libertação, cujos principais inspiradores são Lucio Gera e o teólogo jesuíta Juan Carlos Scannone. A teologia do povo não reivindica a luta de classes, mas reconhece o conflito entre o povo e o “antipovo”, e faz sua a opção prioritária pelos pobres. Ela manifesta menos interesse às questões socioeconômicas que as outras formas da teologia da libertação, e uma maior atenção à cultura, e especialmente à religião popular.
Em um artigo de 2014, “O Papa Francisco e a teologia do povo”, Juan Carlos Scannone insiste, com razão, em tudo o que as primeiras encíclicas do papa, como Evangelium Gaudi (2014), devem a esta teologia popular, difamada por seus críticos de esquerda como “populista” (no sentido argentino, peronista, e não europeu, desse termo). Parece-me, porém, que Bergoglio, em sua crítica ao “ídolo capital” e de todo o “sistema socioeconômico” atual vai além de seus inspiradores argentinos. É o caso, particularmente, de seu último Encíclico, Laudato si’ (2015), que merece uma reflexão marxista.
Laudato si’
A “Encíclica ecológica” do Papa Francisco é um evento de uma importância planetária, do ponto de vista religioso, ético, social e político. Considerando a enorme influência da igreja católica, ela é uma contribuição crucial para o desenvolvimento de uma consciência ecológica crítica. Recebido com entusiasmo pelos verdadeiros defensores do meio ambiente, ela suscitou inquietude e rejeição por parte dos religiosos conservadores, dos representantes do capital e dos ideólogos da “ecologia de mercado”.
Trata-se de um documento de uma grande riqueza e complexidade, que propõe uma nova interpretação da tradição judaico-cristã – em ruptura com o “sonho prometeico de dominação do mundo” – e uma reflexão profundamente radical sobre as causas da crise ecológica. Sob certos aspectos, como por exemplo na associação inseparável do “clamor da terra” e do “clamor dos pobres”, percebe-se que a teologia da libertação – em particular a do ecoteólogo Leonardo Boff – foi uma de suas fontes de inspiração.
Nas breves notas que se seguem, procuro sublinhar uma dimensão da Encíclica que explica as resistências que ela encontrou no establishment econômico e midiático: seu caráter antissistêmico.
Para o Papa Francisco, os desastres ecológicos e a mudança climática não são unicamente o resultado dos comportamentos individuais – ainda que estes também tenham sua parte – mas sim dos “modelos atuais de produção e consumo”viii. Bergoglio não é marxista, e a palavra “capitalismo” não aparece na Encíclica… Mas continua bem claro que para ele os dramáticos problemas ecológicos de nossa época são o resultado das engrenagens da atual economia globalizada – engrenagens constituídas por um sistema global, um “sistema de relações comerciais e de propriedade estruturalmente perverso” (Seção 52 do documento).
Quais são, para Francisco, estas características “estruturalmente perversas”? Acima de tudo, um sistema no qual predominam os “limitados interesses das empresas” (127) e uma “discutível racionalidade econômica” (127), uma racionalidade instrumental cuja única finalidade é maximizar os lucros. Por consequência, “o princípio da maximização do lucro, que tende a isolar-se de todas as outras considerações, é uma distorção conceitual da economia: desde que aumente a produção pouco interessa que isso se consiga à custa dos recursos futuros ou da saúde do meio ambiente” (195).
Essa distorção, esta perversidade ética e social, não é mais própria a um país do que a outro, mas antes a um “sistema mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética” (56).
A obsessão de um crescimento sem limite, o consumismo, a tecnocracia, a dominação absoluta das finanças e a deificação do mercado são tantas das características perversas do sistema. Em uma lógica destrutiva, tudo se reduz ao mercado e ao “cálculo financeiro dos custos e benefícios” (190). Ora, é preciso compreender que “o ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente” (190). O mercado é incapaz de tomar em consideração os valores qualitativos, éticos, sociais, humanos ou naturais, isto é, “valores que excedem todo e qualquer cálculo” (36).
O poder “absoluto” do capital financeiro especulativo é um aspecto essencial do sistema, como mostrou a recente crise bancária. O comentário da carta encíclica é radical e desmistificador. “A salvação dos bancos a todo custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente cura. A crise financeira dos anos 2007 e 2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação que fizesse repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo” (189).
Esta dinâmica perversa do sistema global que “continua a governar o mundo” é a razão que conduziu as Reuniões das Cúpulas Mundiais sobre o meio ambiente: “há demasiados interesses particulares e, com muita facilidade, o interesse econômico chega a prevalecer sobre o bem comum e manipular a informação para não ver afetados os seus projetos” (54). Desde que os imperativos dos grupos econômicos poderosos predominem “poder-se-á esperar apenas algumas proclamações superficiais, ações filantrópicas isoladas e ainda esforços por mostrar a sensibilidade para com o meio ambiente, enquanto, na realidade, qualquer tentativa das organizações sociais para alterar as coisas será vista como um distúrbio provocado por sonhadores românticos ou como um obstáculo a superar” (54).
Neste contexto, a Encíclica desenvolve uma crítica radical face à irresponsabilidade dos “responsáveis”, isto é, as elites dominantes, as oligarquias interessadas pela conservação do sistema, em relação à crise ecológica: “Muitos daqueles que detêm mais recursos e poder econômico ou político parecem concentrar-se sobretudo em mascarar os problemas ou ocultar os seus sintomas, procurando apenas reduzir alguns impactos negativos de mudanças climáticas. Mas muitos sintomas indicam que tais efeitos poderão ser cada vez piores, se continuarmos com os modelos atuais de produção e consumo” (26).
Face ao dramático processo de destruição dos equilíbrios ecológicos do planeta e a ameaça sem precedentes que representa a mudança climática, o que propõem os governos, ou os representantes internacionais do sistema (Banco Mundial, FMI etc.)? Sua resposta é o suposto “desenvolvimento sustentável”, um conceito cujo conteúdo tornou-se cada vez mais vazio, um verdadeiro flatus vocis como diziam os escolásticos da Idade Média. Francisco não se ilude com esta mistificação tecnocrata: “o discurso do crescimento sustentável torna-se um diversivo e um meio de justificação que absorve valores do discurso ecologista dentro da lógica da finança e da tecnocracia, e a responsabilidade social e ambiental das empresas reduz-se, na maior parte dos casos, a uma série de ações de publicidade e imagem” (194).
As medidas concretas que a oligarquia técnico-financeira dominante propõe são perfeitamente ineficazes, como por exemplo o dito “comércio de emissões de carbono”. A crítica mordaz do papa a esta falsa solução é um dos argumentos mais importantes da Encíclica.
Referindo-se a uma resolução da Conferência Episcopal Boliviana, Bergoglio escreve: “A estratégia de compra e venda de ‘créditos de emissão’ pode levar a uma nova forma de especulação, que não ajudaria a reduzir a emissão global de gases poluentes. Este sistema parece ser uma solução rápida e fácil, com a aparência dum certo compromisso com o meio ambiente, mas que não implica de forma alguma uma mudança radical à altura das circunstâncias. Pelo contrário, pode tornar-se um diversivo que permite sustentar o consumo excessivo de alguns países e sectores” (171). Passagens como essa explicam o pouco de entusiasmo dos círculos “oficiais” e dos adeptos da “ecologia de mercado” (ou do “capitalismo verde”) pela Laudato si’.
Se o diagnóstico da Laudato si’ sobre a crise ecológica é de uma clareza e consistência impressionantes, as ações que ele propõe são mais limitadas. Certamente, muitas de suas sugestões são úteis e necessárias, por exemplo: “facilitar as formas de cooperação ou de organização comunitária que defendam os interesses dos pequenos produtores e salvaguardem da predação os ecossistemas locais” (180). É também muito significativo que a Encíclica reconheça a necessidade das sociedades mais desenvolvidas de “abrandar um pouco a marcha, pôr alguns limites razoáveis e até mesmo retroceder antes que seja tarde”. Em outras palavras, “chegou a hora de aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes” (193).
Mas faltam precisamente as “medidas drásticas”, como as propostas por Naomi Klein em seu livro This Changes Everything: Capitalism vs. the Climate: romper, antes que seja tarde demais, com os combustíveis fósseis (carvão, petróleo), deixando-os no subsolo. Não podemos modificar as estruturas perversas do atual modo de produção e consumo sem um conjunto de iniciativas antissistêmicas, que questionem a propriedade privada, como a das grandes multinacionais dos combustíveis fósseis (BP, Shell, Total, etc.). É certo que o papa menciona a utilidade de “grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma “cultura do cuidado” que permeie toda a sociedade” (231, p. 174), mas esse aspecto estratégico é pouco desenvolvido na Encíclica.
Ao reconhecer que “o atual sistema mundial é insustentável” (61), Bergoglio busca uma alternativa global, que ele chama de “cultura ecológica”, uma mudança que “não se pode reduzir a uma série de respostas urgentes e parciais para os problemas que vão surgindo à volta da degradação ambiental, do esgotamento das reservas naturais e da poluição. Deveria ser um olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo, um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (111). Mas há poucas indicações sobre a nova economia e a nova sociedade que correspondem a essa cultura ecológica. Não se trata de pedir ao papa que adote o ecossocialismo, mas a alternativa futura permanece um tanto abstrata.
O Papa Francisco endossa a “opção prioritária pelos pobres” das igrejas latino-americanas. A Encíclica deixa isso claro, como um imperativo planetário: “nas condições atuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres” (158).
Porém, na Encíclica, os pobres não aparecem como os agentes de sua própria emancipação – o projeto mais importante na teologia da libertação. A luta dos pobres, camponeses, indígenas, pela defesa das florestas, da água, da terra, contra as multinacionais e o agrobusiness, bem como o papel dos movimentos sociais, que são precisamente os principais atores da luta climática – Via Campesina, Climate Justice, Fórum Social Mundial – constituem uma realidade social pouco presente na Laudato si’.
No entanto, esse será um tema central nas reuniões do papa com movimentos populares, os primeiros da história da Igreja. Durante a Reunião de Santa Cruz (Bolívia, julho de 2015), Francisco declarou: “Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos três ‘T’ – entendido? – (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!”[ix]
Obviamente, como Bergoglio enfatiza na Encíclica, a tarefa da Igreja não é substituir os partidos políticos, propondo um programa de mudança social. Por seu diagnóstico antissistêmico da crise, associando inseparavelmente a questão social e a proteção do meio ambiente, “o clamor dos pobres” e “o clamor da terra”, Laudato si’ é uma preciosa e inestimável contribuição para a reflexão e a ação no sentido de salvar a natureza e a humanidade da catástrofe.
Aos marxistas, comunistas e ecossocialistas cabe completar esse diagnóstico com propostas radicais de mudança, não apenas do sistema econômico dominante, mas do modelo perverso de civilização imposto globalmente pelo capitalismo. Propostas que incluam não apenas um programa concreto de transição ecológica, mas também a visão de uma outra forma de sociedade, além do reino do dinheiro e da mercadoria, com base nos valores de liberdade, solidariedade, justiça social e respeito pela natureza.
MICHAEL LÖWY ” SITE A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)
Sociólogo e filósofo franco-brasileiro, pesquisador do pensamento marxista, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França
Tradução: Daniel Souza Pavan
Notas
[i]
. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo, trad. José Marcos Mariani de Macedo. Companhia das Letras, São Paulo, 2017; n.p. Nota de fim de livro nº 50.