Anos de crise econômica, com elevação do desemprego e avanço do subemprego nesta nova economia do sonho liberal, em que cada um tem a oportunidade de enfrentar em “pé de igualdade” a loteria do mercado.
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A pobreza é um estado de poucas possibilidades. Uma pessoa pobre é reativa; não tem tempo, recursos, nem treino para projetar o futuro. Pobreza produz mais pobreza numa espiral descendente rumo à miséria.
A liberdade dos indivíduos é restringida pela capacidade de responder às circunstâncias de forma a ampliar o seu espaço de escolha. A renda é um determinante central desta capacidade, mas não só. Os ativos que formam o patrimônio das famílias também asseguram um espaço de escolha em meio a turbulências e imprevistos. Duas pessoas com mesmo nível baixo de renda podem enfrentar a pandemia de formas diferentes se uma delas tem um automóvel e a outra não; se uma tem um banheiro a mais do que a outra.
Ativos implicam maior grau de conforto. Ter ativos exige, todavia, investir recursos não gastos em consumo imediato. Numa situação de escassez, a decisão de investir causa, também no plano individual, a poupança necessária; mas, para isso ocorrer, é preciso ter “espaço” no orçamento. A pobreza remove qualquer possibilidade de uma tal poupança. Afinal, a renda mal cobre as necessidades imediatas de proteção e recomposição energética do corpo físico. O futuro e o presente se fundem num horizonte a três palmos de distância à frente. Quanto mais pessoas assumem esta condição, menor se torna a capacidade do setor privado em liderar a recuperação.
Pandemia e Auxílio Emergencial
A pandemia encontrou muitas pessoas em situação de penúria material. Anos de crise econômica, com elevação do desemprego e avanço do subemprego nesta nova economia do sonho liberal, em que cada um tem a oportunidade de enfrentar em “pé de igualdade” a loteria do mercado. A ironia se deve ao fato de que grande parte do avanço social – que se fez nos anos do PT – em termos de redução da pobreza, agora passa a depender do empenho e do mérito pessoal.
Neste mundo de empreendedores micro, cada vez mais pulverizados em atividades de diminuta sofisticação, o vaivém da economia encontra famílias cada vez menos protegidas. Os colchões de amortecimento de choques de renda é cada vez menor, por que as famílias “empreendedoras” tem cada vez menos renda. E com renda menor, os ativos de proteção também escasseiam.
O choque da pandemia engoliu mais de 750 mil empresas e suspendeu a renda dezenas de milhões de pessoas dedicadas ao setor de serviços. Este setor estava programado para o contato pessoa-pessoa. O distanciamento social desativou parte ampla das atividades. Parcela expressiva destas últimas se encontram na economia informal, com baixos rendimentos e nenhuma proteção.
Chamado a atuar, o governo hesitou muito a usar o orçamento público. Pressionado pelo Congresso Nacional, o auxílio emergencial (AE) de R$ 600 elevou a renda da maior parte das pessoas que o receberam. Pesquisas recentes vêm mostrando que AE turbinou a renda dos 30% mais pobres da sociedade, os quais dependem do Bolsa Família para complementar a sua renda. O programa conseguiu repor as perdas causadas pela pandemia para os 50% mais pobres da sociedade. As pessoas muito pobres tiveram ganho de renda. Isso mostra um razoável grau de sucesso na focalização da política pública. No entanto, é perigoso comemorar antes do fim do jogo.
Retomada e Inflação
O auxílio emergencial injetou centenas de bilhões de reais na economia e criou as bases para a retomada da atividade, com melhorias expressivas no varejo e na indústria. Contudo, em vista da redução no valor do auxílio para a metade do original, os índices de confiança vinham melhorando já com certa moderação. Os dados mais recentes mostram que a retomada em “V” pode ter a perna da recuperação podada.
Mas, por que isso é importante para entendermos a pobreza?
Uma retomada persistente leva ao aquecimento do mercado de trabalho e ao aumento nos investimentos empresariais em novas instalações. Os efeitos multiplicadores da renda e do emprego reforçam os resultados positivos sobre a economia; diminuem assim a penúria material das famílias e ampliam o espaço de escolha das mesmas.
Entretanto, o tempo do estômago é mais apressado do que o tempo da economia. Enquanto o investimento não cresce, a combinação de uma retomada sem emprego com fortes choques de oferta na inflação dificulta esta melhoria. Mais inflação significa menor demanda real dos mais pobres sobre os setores varejistas e industriais.
Há dois canais principais pelos quais uma inflação maior sobre os mais pobres tira fôlego da retomada. O primeiro canal é a compensação parcial do efeito positivo do auxílio emergencial sobre o consumo. Relatório do IPEA sobre o efeito da inflação sobre as faixas de renda mostra que a inflação dos alimentos vem perturbando mais quem gasta maior parte do seu orçamento em bens de primeira necessidade. Como mostraram Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Farias aqui no GGN, este não era um resultado inevitável.
O segundo canal tirando fôlego dos setores mais dinâmicos é o redirecionamento de renda das famílias para o setor de serviços que, aos poucos, vai reabrindo suas portas. O setor de serviços tem poucos efeitos dinamizadores do emprego e da renda, por se encontrarem já no final do processo produtivo, muito próximo ao consumo. O que vemos, portanto, é uma redistribuição de uma renda agregada ainda insuficiente para sustentar o crescimento e a confiança empresarial.
Pilares da Recuperação
O crescimento do emprego pode dar mais sustentação à renda, na medida em que os rendimentos cresçam acima da inflação. Mais emprego depende de mais investimentos. No entanto, a redução pela metade do valor do auxílio trava o canal da demanda, inibindo o entusiasmo dos empresários com o futuro. Por isso, não se pode esperar que a retomada venha de microempreendedores heroicos. É preciso ir além!
Como já defendemos muitas vezes aqui, apenas uma iniciativa estatal de liderança pode elevar o nível da água em que flutuam os barquinhos do setor privado. A renovação de algum programa mais amplo de renda básica é questão inegociável. Ademais, o investimento público em setores-chave – como infraestrutura, saneamento, educação, saúde e tecnologia – pode criar as condições de estabilidade da demanda que contaminarão positivamente as expectativas dos empresários privados de todos os setores da economia.
Um pacto deve ser coordenado com o setor empresarial e a sociedade civil. Para isso ocorrer, seria preciso um ministro da Economia que, em vez de gerar temores irresponsáveis, elevasse a confiança da sociedade para atravessar esta tormenta pandêmica. Com a tríade Bolsonaro-Guedes-Salles, o Brasil encenará a experiência do Titanic: o naufrágio de um navio com barcos salva-vidas apenas para o andar de cima.
Se nada for feito, a convulsão social pode se tornar incontrolável e causar a hiperinflação que tanto tememos. Se Guedes não consegue encontrar uma solução, seria melhor para o país que ele admitisse sua incapacidade perante esta crise e desse lugar a quem pode dirigir a economia de forma mais hábil.
É hora de se despedir do capitão, Guedes. Tchau, querido!
ANDRÉ RONCAGLIA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
André Roncaglia é professor de economia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador associado do CEBRAP. Escreveu com Paulo Gala o livro “Brasil, uma economia que não aprende”. Twitter: @andreroncaglia e Youtube: andreroncaglia.
* agradeço ao Gustavo Serra e à Isabella Lofrano pela ajuda na reflexão deste texto. Erros remanescentes são meus.