“Isto não é um necrológio; morreu um personagem, mas, visto que é lenda, Peréio é imortal”, diz Alex Solnik
Pereio foi um personagem que ele criou para si mesmo, mas sobre o qual não tinha controle, um cara que vivia à margem de tudo, sobretudo do sucesso, com o qual se relacionava como Sísifo, rolava uma enorme pedra até o alto da montanha só para ter o prazer de jogá-la de novo para baixo para começar tudo de novo, um cara que não tinha medo de as coisas darem errado, e davam mesmo, e que se recusava a se contentar com prêmios, ganhou muitos graças ao seu talento, era disputado pelos caras do Cinema Novo, seja como coadjuvante, como em Terra em Transe e Os Fuzis, seja como protagonista em O Bravo Guerreiro, a lista é longa, mas foi em Bang-Bang de Andrea Tonacci que ele se mostrou mais parecido com o Pereio real, vivendo em meio a personagens perdedores, abandonados pela sorte, como pedras rolantes, rodeado por bandidos, putas, drogados, um gaúcho valente, brizolista até o fio do cabelo, que adorava fazer brincadeiras que depois viravam lenda, como a de que comia uma cebola inteira antes de dar aqueles beijões de língua na Sonia Braga, em “Eu te amo” (ele nunca confirmou, dava apenas um sorriso maroto quando alguém mencionava), ele não tinha o menor problema em arriscar um maravilhoso contrato com a Glob0 para fazer uma piada, como na ocasião em que, ainda meio dormindo, recebeu um telefonema da produção da novela, avisando que ele estava atrasado para a gravação, e ele não se deu por vencido, não pediu desculpas, não disse que já estava indo, aproveitou para tirar um sarro da situação, perguntou:
“A produção já chegou?” e do outro lado responderam que sim, já chegou, “o iluminador já chegou?”, claro que sim, “o diretor já chegou?”, sim, está esperando, “então cancela a gravação porque eu não vou chegar”, e voltou a dormir, muito engraçado, é claro, mas imagino a cara do Boni ao ouvir o relato, imagino a reação dos colegas atores, como deve ter sido xingado, mas para ele valia mais cultivar a fama de rebelde, daquele que desafia os poderosos, os horários, as convenções, as leis, adorava contar que sabia fazer cocaína, aprendeu com um traficante, e fez muita cocaína numa casa de Santa Teresa, um de seus inúmeros endereços, era um cara hilário na vida real que fazia papéis dramáticos em filmes clássicos, mas também papéis mequetrefes em pornochanchadas, gostava de recitar um poema gaúcho sobre uma mulher feia, “a mais feia da aldeia”, por quem se apaixonou, gostava de usar a palavra “bagaceira” como sinônimo de cafona, num certo período seu vozeirão se tornou a voz do Brasil, ele narrava os mais importantes comerciais, mas se recusou a ser mais um Cid Moreira, rejeitou convites, deu canos.
Antes de morar no Retiro dos Artistas, no Rio, seu refúgio foi uma cobertura bagaceira perto do Teatro Oficina, em São Paulo, onde o visitei várias vezes, um ambiente caótico, sempre à espera de uma amiga que arrume, a geladeira vazia, a lata de lixo superlotada, cédulas amassadas sobre a cama de casal, quando havia, sempre duro, mas aparentemente feliz, sempre uma tirada de humor na ponta da língua, tem aquela famosa história do pum, sabe-se lá se real ou inventada por ele:
“Soltei um pum no elevador e um cara engravatado me deu uma bronca: ‘o senhor soltou um pum na frente da minha mulher’ e eu respondi ‘desculpe, não sabia que era a vez da sua mulher soltar um pum’”.
Nosso último encontro foi numa lanchonete xexelenta em frente ao seu apê, uma hora uma das azeitonas pretas que ele comia saltou da mesa para o chão, aquele chão ensebado, nojento, repulsivo e, talvez para me chocar, o que adorava fazer, ele pegou a azeitona do chão e jogou boca adentro, depois deu aquele sorriso maroto de quem não teme nada, nem a morte.
Isto não é um necrológio; morreu um personagem, mas, posto que é lenda, Peréio é imortal.
ALEX SOLNIK ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)