ELIFAS ANDREATO, O NOSSO MICHELANGELO

Artista Gráfico

Para o presidente Jair Bolsonaro não houve um golpe militar no país no dia 31 de março de 1964. 

Para o capitão, a ditadura militar brasileira — que chegou a fechar o Congresso Nacional, cassar parlamentares e restringir liberdades civis, inclusive com a morte e tortura de opositores e vigorou de 1964 a 1985 – nunca existiu.

No entanto, para a grande maioria dos brasileiros – exceto os bolsominios, claro – ela existiu e ainda dói em nós. Hoje, em pleno aniversário de 58 anos do Golpe Militar de 1964, perdemos Elifas Andreato, um dos artistas mais combativo do país. 

Com sua morte, muito se falou sobre a arte e o talento do genial artista, mas pouco se falou do Elifas Andreato, militante político.

Elifas Andreato, o design ergráfico que era referência do meu tempo – e uma figura espetacular que tive o prazer de conhecer, mas não a honra de trabalhar com ele -, não foi só um excelente designer gráfico. Foi jornalista, pintor, ilustrador e, claro, ativista político.

Entre os trabalhos genuinamente engajados, Elifas produziu peças de grande qualidade artística, com projeção internacional e reconhecimento no mundo inteiro, como o painel sobre o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, nos porões da ditadura, comandado pelo execrável torturador Brilhante Ustra, ídolo do capitão. Elifas se inspirou na Pietá, de Michelangelo, e em Guernica, do Picasso, para criar sua obra mais icônica que exprime toda a nossa dor.

O traço poético com profundo sentido social definiu os trabalhos de Elifas como um ícone de uma geração que protestava, por meio da arte, contra a ditadura militar vigente. Em 2011, foi homenageado no Prêmio Vladimir Herzog, por ter sido perseguido pela ditadura militar brasileira.

De família pobre, foi analfabeto até a adolescência. Neste período, ainda desinformado e um pouco alienado, foi operário numa fábrica em São Paulo, onde já começava a mostrar talento para a ilustração e a caricatura.

Na década de 60, foi estagiário em agências de publicidade e na Editora Abril, onde começou a conviver com jornalistas que se tornaram seus grandes mestres. Mesmo sem instrução formal de uma escola de artes ou de uma faculdade, tornou-se referência no meio intelectual e artístico do país e professor de Artes na USP. 

Sua convivência no meio intelectual, no fim da década de 1960 e início da de 1970, levou-o à militância política e, consequentemente, à perseguição por parte dos militares. Fez estágio nas revistas ‘Quatro Rodas’, ‘Realidade’, ‘Cláudia’ e ‘Veja’. Mas foi a partir de 1968, quando os militares decretaram o AI-5, que entrou de cabeça na militância política.

Na época, Elifas, junto com a mulher, a fotógrafa Iolanda Huzak, e o repórter Carlos Azevedo, que trabalhava na revista ‘Realidade’, criou o jornal ‘Libertação’ da Ação Popular (AP). Azevedo escrevia o jornal, e Elifas diagramava e ilustrava. O tablóide era produzido em um mimeógrafo na casa de Elifas que também servia de abrigo para militantes clandestinos.

No final da década de 60, fez, juntamente com Azevedo, ‘O Livro Negro da Ditadura Militar’, em estêncil, uma máquina primitiva que tem uma tela fina em que se pode desenhar. Nele, Elifas criou a famosa e icônica caveira com o quepe militar. 

Logo depois, Aldo Arantes, um dos companheiros da clandestinidade “caiu” (expressão que se dava para quem era preso pelos militares) e acabou confessando, sob tortura, quem eram os autores do livro. 

Então, Elifas, Azevedo e Raimundo Pereira – outro jornalista – passaram a ser perseguidos pelo regime. Em 16 de dezembro de 1976, por pouco, Elifas não foi morto, quando a casa onde estavam reunidos os dirigentes do PCdoB, na Rua Pio XI, no bairro da Lapa, em São Paulo, foi cercada por agentes do DOI-Codi, que assassinaram Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Baptista Franco Drummond. 

“Naquela ocasião, acabei não indo à reunião por causa de um problema que tive na Abril e escapei”, disse.

Em 1972, o artista deixou a ‘Editora Abril’, fundou o jornal ‘Opinião’ e passou a colaborar com jornais de oposição ao regime como ‘Movimento’ e a revista ‘Argumento’, no Rio de Janeiro, onde passou a conviver com a censura diretamente dentro das redações. 

“Nós tínhamos, no início, algumas formas de burlar a censura, como fazia ‘O Estado de S. Paulo’, publicando receitas de bolo no lugar das matérias censuradas. O ‘Opinião’, assim como ‘O Pasquim’, era um jornal de oposição. Às vezes, nem dormíamos, pois éramos obrigados a fazer duas ou três capas de uma mesma publicação. 

Quando não censuravam uma ilustração, censuravam parte ou mesmo textos inteiros, então tínhamos de criar anúncios no lugar deles, por exemplo. Mas várias vezes conseguimos ludibriar a censura.

Naquela época, a gráfica que utilizávamos era a do ‘Jornal do Brasil’, que ficava na Lapa, bairro boêmio do Rio. As prostitutas e os travestis acabaram tornando-se nossos protetores. Toda vez que a polícia chegava, eles davam um jeito de nos avisar do perigo.

Quando o jornal saía, um censor verificava se aquilo que tinha sido aprovado era o que havia sido impresso.

Quando D. Paulo Evaristo Arns resolveu rezar uma missa em homenagem ao estudante Alexandre Vanucchi, morto pela repressão militar, decidimos produzir uma reportagem sobre isso. 

Eu desenhei D. Paulo a traço na redação e, na gráfica, apliquei a cor vermelha que aparece na roupa do cardeal. Quando o censor viu aquilo impresso, a primeira coisa que ele fez foi me dar um tapa na cara! Ele se sentiu ludibriado com aquilo, pois tinha aprovado um desenho preto e branco. 

Então, ele me pegou pelos fundilhos e, juntamente com Raimundo Pereira e Tarik de Souza, jogou-me num camburão. Ficamos presos umas três horas. Era humilhante o que eles faziam. Além de baterem, o interrogatório era extremamente violento e repleto de insultos.

A partir desse momento, a censura sobre nós ficou muito mais acirrada. Certa vez, Tarik de Souza produziu uma matéria falando de uma gravação da música ‘Atrás da Porta’, de Francis Hime e Chico Buarque, feita pela Elis Regina. A censura cortou o nome de Chico Buarque, pois o dele era proibido. Então, foi publicado ‘Atrás da Porta’, de Francis Hime.

Em 1968, um grupo de extrema direita chamado Comando de Caça aos Comunistas invadiu um teatro onde a peça ‘Roda Viva’, de Chico Buarque, era encenada, destruiu o cenário e espancou os atores.

Passei a fazer cartazes de teatro. Como quase sempre os espetáculos eram censurados, os cartazes passavam pelo mesmo crivo. Quando o diretor Fernando Peixoto montou a peça ‘Mortos sem Sepultura’, do Jean-Paul Sartre, que se passa durante a Segunda Guerra, fiz um cartaz com um sujeito num pau-de-arara e, para disfarçar, botei um soldado alemão na frente. A censura viu aquilo, foi ao teatro e apreendeu os cartazes.

Quando me perguntaram o porquê do pau-de-arara no cartaz, aleguei que se tratava de uma peça de um autor francês, que se passava na França durante a Segunda Guerra. E o censor respondeu: “vamos recolher, porque pau-de-arara é uma invenção brasileira”.

Quando Vladimir Herzog foi assassinado, todas as pessoas envolvidas na militância e os simpatizantes ficaram apavorados. Herzog era um jornalista que trabalhava no ‘Jornal da Cultura’, tinha endereço e era conhecido. 

Foi o período mais marcante para todo esse grupo ao qual eu pertencia. Nós também começamos a ser perseguidos, mas felizmente a repercussão do assassinato dele, já no governo Geisel, provocou a demissão do comandante do Segundo Exército, e as coisas aos poucos foram amenizando-se. 

Naquele momento, quando fundei o Jornal ‘Opinião’, descobri que a ditadura montou um país que começava a ser retratado pela Rede Globo como o país ideal, o país do milagre. Então, a realidade que a fotografia não oficial registrava era muito inconveniente, havendo grande censura nessa área. 

Percebemos nisso a chance para resgatar os ilustradores, caricaturistas e chargistas. Loredano, Castor, Chico Caruso, Angeli, Laerte, todos começaram ali. Era a oportunidade de, com esperteza, fazer ressurgir a ilustração na imprensa brasileira”, disse.

Elifas Vicente Andreato foi especialmente reconhecido como ilustrador de inúmeras capas de discos de vinil nos anos 70, incluindo grandes nomes da Música Popular Brasileira, como Chico Buarque de Holanda, Elis Regina, Adoniran Barbosa, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Toquinho e Vinícius de Moraes, entre outros.

Elifas Andreato foi para as capas dos discos, o mesmo que José Luiz Benício foi para os cartazes de cinema. Nasceu em Rolândia, no Paraná, no dia 22 de janeiro de 1946 e morreu em São Paulo, no dia 29 de março de 2022. 

EDIEL RIBEIRO ” BLOG BRASIL 24&” ( BRASIL)

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