Os acadêmicos Misha Klein, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Oklahoma (EUA), e Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ, afirmam que Lula acionou um botão atômico ao (sem falar a palavra Holocausto) comparar a ação das tropas do governo Netanyahu, em Gaza, com a movimentação das tropas nazistas contra judeus, homossexuais, comunistas e minorias étnicas, como os ciganos na Europa, sobretudo no Gueto de Varsóvia, mais comparável a Gaza.
É evidente que o clima de excitação entre os bolsonaristas, que queriam engrossar o engajamento para a manifestação pró Bolsonaro neste domingo, 25 de fevereiro, na Avenida Paulista, acirrou os ânimos nas redes sociais de judeus e não judeus (bolsonaristas) para criticar Lula ao longo da semana.
Por desfaçatez, Bolsonaro e sua turma, alvos do inquérito dos atos de 8 de janeiro de 2023 contra o Estado Democrático de Direito, com a destruição das sedes dos três Poderes da República, batizaram o ato de hoje, oficialmente convocado pelo pastor Silas Malafaia, como em “Defesa do Estado Democrático de Direito”. Se o desfecho da arruaça fosse a decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem), com convocação das Forças Armadas, estaria em vigor no país um “Estado Antidemocrático da Direita” e esta coluna, possivelmente, não poderia ser escrita e muito menos publicada.
A deputada Carla Zambelli (PL-SP), que pode ter o mandato cassado por falta de decoro (na véspera do 2º turno, investiu de revólver em punho contra um eleitor preto de Lula, numa rua de São Paulo, fato que alguns bolsonaristas apontam como uma das causas da derrota em 30 de outubro de 2022), logo criou abaixo-assinado pedindo “impeachment” do presidente da República pelas críticas a Israel e amealhou 139 assinaturas. A esdrúxula ação só seguirá se o presidente da Câmara, Arthur Lila (PP-AL), der prosseguimento à moção.
Mas parece evidente que a intenção de Zambelli não anulou o desgaste que foi o comparecimento, dia 22, perante as diversas delegacias da Polícia Federal em todo o Brasil, da alta cúpula militar do governo Bolsonaro. A comitiva de 23 indiciados foi liderada, em ordem de importância hierárquica, pelo ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. Como não sabem o inteiro teor da delação premiada (ainda em diligências) do ex-ajudante de ordens da Presidência da República, tenente-coronel Mauro Cid Lorena, a maioria ficou calada.
A farsa das urnas eletrônicas
O faz-tudo de Bolsonaro tanto negociava joias recebidas de presente e que pertenciam ao acervo da Presidência, como falsificava cartões de vacina e cuidava da movimentação financeira da família presidencial. No expediente, traçava as tramas do golpe ensaiado pelo ex-presidente desde 2019, e cujos rastros ficaram em seus celulares e computadores, como a famosa reunião de 5 de julho de 2022, que escancarou a trama do golpe entre a alta cúpula do governo, que cogitou melar o jogo antes mesmo da eleição, que julgava perdida (a farsa contra as urnas eletrônicas visava só criar clima hostil).
Primeiro, por duas vezes, Bolsonaro e os demais asseclas tentaram fugir ao constrangimento de terem de gravar as digitais na PF. Alegavam que, como iriam invocar o direito ao silêncio para evitar de criar fatos contra si mesmos, poderiam ser dispensados da oitiva. Como não estavam como depoentes, mas como indiciados, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o procurador geral da República, Paulo Gonet, negaram o feito.
Assim como Bolsonaro, ficaram calados – mas prestando uma atenção tremenda nas perguntas para pescar o que a PF já tinha levantado e queria confirmar nas inquirições – o general Walter Braga Neto, ex-ministro da Defesa e vice na chapa derrotada, o ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, que tanto investiu contra as urnas eletrônicas, mas reconheceu, em 5 de julho, que o teatro era “uma farsa”, e o general Augusto Heleno. O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que controlava a Abin, quase deu com a língua nos dentes na reunião de 5 de julho de 2022, quando começou a narrar os planos de infiltrar agentes da Abin nas campanhas eleitorais (Bolsonaro cortou a fala para discussões posteriores).
Se em julho estavam tão loquazes e falantes – a ponto de instigar, como fez Braga Neto – ataques a generais e altos comandantes das Forças Armadas que recusaram praticar o golpe, segundo suas postagens em redes sociais, agora, nada menos que 16 ficaram calados. Só sete responderam às perguntas, ajudando a PF a montar peças do quebra-cabeças. Diz um velho ditado que “quem cala consente”. O silêncio não evitou a produção de provas. Só mostrou que quem tinha coragem de chamar de “cagão” a quem seguiu pela legalidade, agora teve “cagaço” de produzir provas e se complicar ainda mais.
Israel não é aqui
Os dois pesquisadores citados no início apontam que na noite de 3 de abril de 2017, quando o então pré-candidato, ex-capitão e deputado federal (PP-RJ), Jair Bolsonaro, fez discurso na sede da Hebraica, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, ele lançou a pedra fundamental da relação entre a extrema-direita e a comunidade judaica no país. Houve desproporção entre a representatividade da colônia judaica e do coletivo de seitas religiosas que emulam simpatia por Israel. Na fala, Bolsonaro antecipou o que seria sua política genocida contra os indígenas e foi racista, dizendo que visitara um quilombo onde negros, obesos pela ociosidade, podiam ser pesados em arrobas (medida de peso de gado).
E uma das primeiras ações em política externa do governo Bolsonaro, além de tentar indicar seu filho 03, o deputado Eduardo Bolsonaro (então do PSL-SP e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara) como embaixador do Brasil em Washington, com as credenciais de “falar inglês e saber fritar (sic) hamburguer”, foi anunciar, em Tel Aviv, após encontro com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a mudança da embaixada brasileira para Jerusalém”, cidade histórica e multi-religiosa de católicos, judeus e muçulmanos.
Um peso e duas medidas
Como ficou claro na reprimenda humilhante que o ministro das Relações Exteriores do governo Netanyahu, Israel Katz, submeteu esta semana ao governo Lula, na figura do embaixador Frederico Meyer, com visita pública ao Museu do Holocausto, em Tel Aviv, onde fez discurso virulento em hebraico, contrariando os cânones diplomáticos, cinco anos depois, as sedes da embaixada brasileira e a do governo de Israel continuam sendo em Tel Aviv.
O fato é que, com o apoio de seitas religiosas evangélicas brasileiras que usam a estrela de Davi como símbolo e recorrem a passagens do Antigo Testamento como fonte de doutrina, a aliança entre os bolsonaristas e a direita de Israel, encarnada por Netanyahu, transcendeu à dimensão da colônia judaica no país. Onde nem todos (assim como em Israel) apoiam o primeiro-ministro.
Netanyahu, acusado por falhas gravíssimas de seu governo, ao não prever os ataques terroristas do Hamas no sábado, 7 de outubro de 2023, usa o revide ao Hamas para unir o povo de Israel, sobretudo os colonos assentados em terras palestinas, e resiste às manobras pelo cessar fogo. É que um cessar fogo prolongado abre espaço para o julgamento, no Kenesset (o Parlamento de Israel), sobre a responsabilidade política do seu governo.
Quando Lula avançou na retórica contra a desproporção da ação militar de Israel e invocou as ações de Hitler contra os judeus e outras minorias na Segunda Guerra, Netanyahu disse que “Lula cruzou a linha vermelha”. Mas nada disse quando a Declaração dos Chanceleres do G-20, reunidos no Rio de Janeiro, proposta pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, e com endosso do Secretário de Estado dos Estados Unidos, o judeu Antony Blinken, defendeu os esforços pela Paz.
Blinken ressalvou que a libertação dos reféns, ainda em poder do Hamas, é condição “sine qua non” para um cessar fogo, apoiado pela União Europeia. A posição antibélica do Brasil foi estendida em conversa de Lula com chanceler russo Serguei Lavrov, para tentar um cessar-fogo também na Ucrânia. Salvo a indústria bélica, todo mundo só tem a ganhar com a Paz.
‘O Banco Central está derretendo’
Acostumado a exibir a altivez da Independência do Banco Central – muitas vezes confundida com arrogância e soberba na fase de transição do governo Bolsonaro para Lula, e escolhido por influência do então ministro da Economia, Paulo Guedes, grato ao avô, o ex-ministro Roberto de Oliveira Campos, a quem Guedes assessorou em mandatos no Congresso – Roberto Campos Neto produziu esta semana uma declaração no mínimo estranha para lamentar os efeitos da greve dos funcionários do Banco Central, que está atrasando a divulgação de dados, acompanhados atentamente pelos agentes econômicos.
Em conversa com a jornalista Miriam Leitão, presente à posse do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, no Supremo Tribunal Federal, Campos Neto disse que “o Banco Central está derretendo”, com perda de sete funcionários por dia, atraídos pelo mercado financeiro, face à defasagem salarial. No edital para o concurso que o Banco Central realiza em maio com 100 vagas, o salário inicial na Autoridade Monetária é de R$ 21 mil. E o novo teto salarial da instituição (e de todo o funcionalismo), acompanhando o salário dos ministros do STF, é R$ 44 mil, desde fevereiro, fora bônus e outros adicionais que elevam a remuneração efetiva.
Mas não há termos de comparação entre uma carreira na Autoridade Monetária e no sistema financeiro privado. No Banco Central, como aliás, no BNDES, no Banco do Brasil, e ainda na Caixa Econômica Federal e no Banco do Nordeste, salvo diretores e presidentes e vice nomeados por motivações políticas, como na CEF, só se entra por concurso público. E a estabilidade do emprego é quase vitalícia, a menos que o funcionário(a) cometa falta gravíssima que dê justa causa. No sistema privado, os salários do topo são altos e as bonificações elevadas. Mas há sempre risco de demissão como no Bradesco, Santander e Itaú, para ficar só nos três maiores bancos privados.
A independência relativa do BC
Quando era presidente, em visita à Europa, pressionado por jornalistas (que não podiam se aproximar no Brasil), o general Ernesto Geisel disse que “a democracia era relativa”. O presidente Lula foi muito criticado no ano passado quando defendeu o reingresso da Venezuela na Celac (a comunidade dos países da América Latina e Caribe). Apesar das atitudes ditatoriais de Nicolás Maduro, Lula queria estimular a Venezuela a realizar eleições democráticas em 2024, mas afirmou que o “conceito de democracia era relativo”. Maduro não seguiu o conselho de Lula. E está usando a disputa pelas terras ricas em petróleo e minérios de Essequibo (território da Guiana) para angariar apoios e superar a oposição, já muito cerceada em seus movimentos.
Pela Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, o Banco Central do Brasil ganhou independência perante o Poder Executivo. Mas, apesar de a Constituição de 1988 ter exigido o corte do cordão umbilical que unia o Banco do Brasil ao Banco Central do Brasil (criado em 31.12.1964 e operando em meados do ano seguinte) e ao Tesouro Nacional – obra executada ao longo de 1988 por equipe chefiada pelo então Secretário do Tesouro, Pedro Parente -, o BC ainda tem dependência financeira do Tesouro Nacional.
O parágrafo único do art. 8º da Lei nº 4.595, de 1964, com a redação do Decreto-Lei nº 2.376, de 25 de novembro de 1987, previa que “os resultados obtidos pelo Banco Central, consideradas as receitas e despesas de todas as suas operações, serão, a partir de 1° de janeiro de 1988, apurados pelo regime de competência e transferidos para o Tesouro Nacional, após compensados eventuais prejuízos de exercícios anteriores”. O artigo 7º da Lei de Responsabilidade Fiscal definiu que “o resultado do BCB, apurado após a constituição ou reversão de reservas, constitui receita do Tesouro Nacional, e será transferido até o décimo dia útil subsequente à aprovação dos balanços semestrais. Já o resultado negativo constituirá obrigação do Tesouro para com o BCB e será consignado em dotação específica no orçamento”.
Com a promulgação da Lei nº 13.820, de 3 de maio de 2019 (governo Bolsonaro), a partir de 1º de julho de 2019, o resultado do BC, que considera todas as suas receitas e despesas, passou ter o seguinte tratamento: I – se positivo, será transferido ao Tesouro após a constituição de reserva pelo valor correspondente ao resultado das operações com reservas e derivativos cambiais, até o 10º dia útil posterior à aprovação do balanço; II – se negativo, será coberto pelo Tesouro, após uso das reservas e do patrimônio institucional, observado o limite mínimo para o patrimônio líquido de 1,5% do ativo total, até o 10° dia útil do exercício subsequente ao da aprovação do balanço.
Em 15 de janeiro deste ano, pelos prejuízos de 2022, o Tesouro Nacional teve de socorrer o Banco Central em R$ 36,5 bilhões. Até setembro do ano passado, o Banco Central apresentou resultado negativo de R$116,218 bilhões. O número de dezembro de 2023 deve ser apreciado no Congresso Nacional a partir de abril, conforme a Lei Complementar nº 179 e a Lei nº 13.820.
Vê-se, assim, que a independência do BC só funciona com o apoio do Congresso, sobretudo do Senado, que aprovou a Lei Complementar 179, e aprova as indicações dos novos diretores com mandatos de três anos. Por sinal, não se entende a lamentação de Campos Neto quanto à perda de quadros do BC. É só salário? (o que não pode ser rompido pelo teto, assim como o das metas de inflação). Ou o BC quer uma nova autonomia para pagar além do teto? A economia derretia em 2023 e empresários e trabalhadores pediam baixa dos juros, mas Campos era insensível e inflexível aos apelos.
Sucessão no BC em junho?
Na minha visão, há mais coisas por trás da suposta debandada. O café na presidência do Banco Central já deve estar sendo servido frio. Não só pela operação padrão-dos funcionários. Mas pela própria percepção de que ao entrar em seu último ano de mandato (que expira em 31 de dezembro de 2024), Roberto Campos Neto já tem menos poder que há um ano. Por sinal, já é um prenúncio de uma nova era no Banco Central.
Desde a indicação de Gabriel Galípolo (ex-secretário executivo da Fazenda) para a diretoria de Política Monetária do Banco Central, a mais poderosa da instituição, em junho de 2023, junto com Ailton Aquino, para a Fiscalização, a correlação de forças no Comitê de Política Monetária (Copom) do BC, começou a mudar. Galípolo forçou, em 2 de agosto de 2023, a aceleração de 0,25% para 0,50% na queda de juros pelo Copom (que poderia já ter vindo em junho). Em janeiro, com dois novos diretores indicados pelo ministro Fernando Haddad, a composição do Copom ficou ainda menos ortodoxa.
E, junto com Campos Neto, saem, em dezembro, dois diretores da ala conservadora (Otávio Damaso e Carolina de Assis Moura). Galípolo é o mais cotado a suceder Campos Neto, cujo sucessor (apontou esta semana o Itaú, em cenários para a área monetária-fiscal) já pode ser conhecido em junho, na reunião do Conselho Monetário Nacional, comandado por Haddad e do qual fazem parte Campos Neto e a ministra do Planejamento, Simone Tebet..
Com o 2º semestre dominado pelas eleições municipais, é bom tratar a sucessão do Banco Central (sujeita à aprovação do nome pelo Senado) com antecedência para o mercado e os agentes econômicos assimilarem o teor da mudança. Na mesma reunião do CMN será decidida a meta de inflação de 2027 (o prazo limite é 30 de junho). Até aqui, as metas de 2024 a 2026 são de 3,0% mais 1,50% de tolerância +4,50%. Ou seja, uma reunião muito importante para a economia e em especial para o mercado financeiro.
Desconfio que os funcionários mais ortodoxos prevendo a mudança do leme são os primeiros a costear o alambrado rumo à banca privada. Por isso, pede especial atenção o maior tempo de quarentena para a desincompatibilização de altos funcionários do governo e agências governamentais para atuarem na área privada. Gerentes do Banco Central acumulam segredos valiosos.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)