O tempo vivido ensina conhecimento à gente
No fim do ano passado, o jornalista e criador Ruy Sarinho me deu de presente o livro “Caboclinhos: subsídios para a salvaguarda e pesquisa”. O livro, organizado por Lucas Oliveira, Climério de Oliveira, Washington Guedes e Sandro Guimarães, é uma reunião de artigos de mestres e doutores sobre os caboclinhos. Um presente que agradeço e guardo.
Mas antes das necessárias páginas, eu já olhava os caboclinhos desde a infância, sem entendê-los. Quero dizer, eu via, acompanhava os grupos de índios transformados no carnaval em Água Fria. E mudava a página do olhar, como se eles fossem manifestação estética menor. Se o leitor me perdoa, acrescento esta explicação para a miopia: o tempo vivido ensina conhecimento à gente, ao contrário do ditado popular que reza “papagaio velho não aprende”. Aprende, muito, e renasce.
Foi o que se deu no terceiro dia deste carnaval. Estávamos no Pátio de Santa Cruz, sentados num barzinho que ficava de frente a um palanque da festa. Pouca gente ao redor – a maioria do povo se encontrava em Olinda ou no Recife Antigo. No pátio, no palanque um locutor fazia anúncio das atrações desse dia. Então veio, começou a crescer um som de toques e batidas de flechas no arco. Uma flauta rústica tocava, mas tão bela quanto bolo de mão de farinha de mandioca e feijão. Era como um gosto de charque em bolo de feijão de mãe a tocar nos ouvidos. Fundamental, compreendem?
https://www.youtube.com/watch?v=ipsXRhXF7pg
Então, súbito, ao ouvir a batida do bombo que remete aos terreiros de jurema, Francêsca deu um pulo e foi acompanhara a dança e tirar fotos dos caboclinhos. O grupo, espalhado na grande passarela, primeiro deixava à mostra uma solidão, depois a exibição de uma pobreza de recursos materiais. Como seria possível encher o espaço com o luxo dos belos blocos e fantasias de cores esplendorosas? Como poderiam tocar orquestra de cordas e de sopro? Como poderiam resistir à sedução das brincantes em vestidos de seda e lantejoulas? Os caboclinhos tocam e dançam seminus.
Eu, à pequena distância, guardando a mesa, via as evoluções e o doce, primitivo som. Que foi tomando conta do meu ser. Francêsca tirava fotos com o celular. Mas dentro de mim veio crescendo uma fotografia em palavras, que eram, enfim:
Feliz do escritor que tem a pobreza e a riqueza dos caboclinhos.
Então, fiquei emocionado, com os olhos úmidos. Envergonhado de mim olhei de lado e para trás. Será que viram o meu desejo de ser caboclinho? E guardei o segredo até aqui.
Caboclinho, caboclinho, não é para quem quer a tua pobre e feliz riqueza.
URARIANO MOTTA ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
Autor de “Soledad no Recife”, recriação dos últimos dias de Soledad Barrett, mulher do Cabo Anselmo, entregue pelo traidor à ditadura. Escreveu ainda “O filho renegado de Deus”, Prêmio Guavira de Literatura 2014, e “A mais longa duração da juventude”, romance da geração rebelde do Brasil