Derrotado ou vitorioso, se conseguir manobrar contra o Congresso, Javier Milei quer mesmo é governar sem controles, escreve o colunista Moisés Mendes
Os argentinos, viciados em tragédias políticas, construíram o roteiro de mais um dilema com o projeto autoritário de Javier Milei. São evidentes os sinais de que o sujeito se sente acossado e poderá radicalizar com reações previsíveis.
Se não conseguir preservar o núcleo do seu pacote de leis contra o povo, Milei não dirá simplesmente que desiste por ter sido sabotado pelo Congresso, pelos sindicatos e pelo Judiciário.
E se conseguir vencer as resistências e impor seus planos via plebiscito ou decretaço, como pretende, poderá destruir o país e, se tudo der certo para ele e conquistar apoio popular, virar um ditador.
A primeira hipótese, de confirmação da derrota no Congresso, que rejeitou suas leis essa semana na Câmara, combinada com a imposição do poder sindical, de movimentos sociais e piqueteiros, pode gerar o mesmo desfecho: o surgimento de um ditador eleito.
A Argentina dificilmente escapará da arapuca criada pela eleição do fascista. Se pagarem para ver do que Milei é capaz, permitindo a afirmação dos seus planos, os argentinos embarcarão numa viagem de difícil retorno.
Fracassando ou tendo êxito, Milei tentará ser um déspota com voto. A disposição para o enfrentamento ficou clara quando da votação do conjunto da Lei Ônibus na semana passada.
Milei mandou dizer pela internet que os deputados contrários estariam destruindo o país e ao lado das castas e dos corruptos. Venceu, mas apenas parcialmente.
Depois, derrotado na terça-feira, quando do começo da votação de artigos específicos, fez uma lista com nomes e fotos de deputados que considera traidores e delinquentes.
Milei desqualifica o seu centrão, de parlamentares que não eram necessariamente da sua base, mas que prometeram aderir aos seus desatinos. Na hora da verdade, saltaram fora, com o respaldo de 10 governadores de direita.
Agora, passa a afrontar o Congresso, os governadores, o Judiciário e principalmente os sindicatos e os movimentos sociais que já o desafiaram com quatro manifestações de rua desde que assumiu, incluindo uma paralisação.
Traidores e delinquentes dificilmente retornarão à sua base temporária, depois que a Lei Ônibus passar de novo pelas comissões da Câmara, na hipótese cada vez mais improvável de que retorne, toda lanhada, para uma nova tentativa de votação em plenário.
A próxima etapa pode ser tão arriscada quanto o plano fracassado de impor o pacote de leis sem respaldo do Congresso. Milei já mandou avisar de Jerusalém, onde foi rezar e chorar, que está disposto a convocar um plebiscito.
Pretende que a população diga aos parlamentares que deseja as mudanças, principalmente as duas medidas mais atacadas pelos congressistas, as privatizações em massa e a reforma administrativa que pode destruir todas as estruturas de Estado.
Se voltarem às ruas, diante da fragilização do presidente após a derrota de terça-feira-feira, os contingentes de oposição poderão tentar enfraquecê-lo ainda mais ou derrubá-lo, ou produzir um efeito contrário.
Se for cercado ostensivamente pela oposição, se apresentará como vítima de uma sabotagem, no início do governo. Os movimentos correriam o risco da acusação de arrogância. E Milei diria para o resto da vida que a Argentina continua em crise porque ele não conseguiu testar suas crueldades.
A ex-deputada Elisa Carrió, líder da Coalisão Cívica, deu o tom do que já se especula, depois da reação de Milei. Disse, e conseguiu chamada de capa no jornal Clarín, que muitos dos aliados do indivíduo poderão parar na cadeia. Elisa, direitista, é voz forte ligada ao ex-presidente Mauricio Macri, aliado de Milei, mas é também crítica do governo de extrema direita.
Milei não tem limites. Um meme que circula nas redes sociais sugere que os kirchneristas corromperam os radicais (da União Cívica Radical) com sacolas de dinheiro para que votassem contra a Lei Ônibus.
O meme foi compartilhado por Milei, que ataca o kirchnerismo, o que é previsível, mas implode o apoio de parte dos radicais. A UCR emitiu uma nota pedindo que ele se comporte como presidente da República e sugerindo que não conte mais com o partido.
No meio da confusão, considerando-se o que pode ser o ensaio de um governo autoritário, ressurge a pergunta: e como ficam os militares, que pareciam irremediavelmente desmoralizados desde a derrota nas Malvinas e dos julgamentos de 1985, que levaram os generais para a cadeia?
Milei poderá ser um arremedo de ditador sem suporte dos militares? Generais têm condições de tutelá-lo, como tentaram fazer com Bolsonaro no Brasil?
A Argentina viveria de novo sob uma ditadura, mesmo que seja uma ditadura meia-boca? O Judiciário macrista, que persegue Cristina Kirchner, se submeteria resignado ao comando do chorão? Logo teremos respostas.
MOISÉS MENDES ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)