O retrato que Paulo da Silva Prado nos deixou incluiu-se imediata e pioneiramente na lista das principais obras empenhadas em identificar os elementos determinantes da identidade do Brasil. Essa lista é longa e heterogênea. Os nascidos no século XIX compõem a primeira geração dos renomados intérpretes que se dedicaram a essa tarefa, grupo no qual Paulo Prado está ao lado de Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Vianna. Não foi do mesmo modo que cada um deles abordou a questão da identidade brasileira, assim como também seguiram por caminhos próprios aqueles que, nas gerações seguintes, voltaram, direta ou indiretamente, ao mesmo tema, como Gilberto Freire, Vianna Moog, Caio Prado Júnior, José Honório Rodrigues, Nélson Werneck Sodré, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Raimundo Faoro, Roberto da Matta e José Murilo de Carvalho.
No quadro desses esforços para ir além da superfície formada pela série incontável e aberta dos acontecimentos que compõem a história de um país, no trabalho reflexivo para revelar o que, latente e indistintamente, estrutura-lhe a longa duração, para valer-me da expressão consagrada de Braudel, Paulo Prado distinguiu-se pelo imprevisto, pela originalidade de, no esforço para entender a origem última de nossas deficiências identitárias, voltar-se para o terreno pouco explorado das peculiares disposições afetivas e comportamentais do povo brasileiro. Distribuições que, alega ele, se repetiriam tipicamente na pluralidade regional e étnica de nossa gente e que foram o que levou esse nosso Brasil à breca, ou a pior destino, para falar mais finamente. Mas não foi só isso o que o livro fez e por isso convém que antes de apresentá-lo, digamos uma palavra sobre o muito mais que nele está envolvido, a começar pela notável trajetória pessoal de seu autor e sobre o contexto em que foi elaborado: o Brasil do final do primeiro quartel do século XX.
Em 1928, quando o Retrato teve sua primeira edição, Paulo Prado tinha 59 anos. Encontrava-se, então, em sua mais completa maturidade, carregando não só os dotes de herdeiro de uma das mais tradicionais, abonadas e influentes famílias de São Paulo e do Brasil, a começar por seu pai, o Conselheiro Antônio da Silva Prado ‒ deputado, senador e ministro do Império, abolicionista, intendente e prefeito de São Paulo por doze anos –, mas agregando a isso tanto o duradouro refinamento e a cultura dos sete anos de sua juventude em Paris (1890-1897), quanto os já trinta e um anos de uma exitosa vida empresarial, que incluía a produção e a exportação de café, investimentos em infraestrutura viária, na indústria e mesmo em serviços financeiros, dos quais a imensa fortuna foi uma decorrência natural.
No entanto, esses antecedentes, aos quais conviria ainda agregar o papel modernizador de toda a família Prado nas instituições políticas, no urbanismo e no desenvolvimento cultural de São Paulo, não explicam a escrita do Retrato do Brasil, pois vale aqui, mutatis mutandi, o dito de Sartre: Valéry é certamente um pequeno burguês, mas nem todo pequeno burguês é Valéry. Quer dizer: ser bem nascido, educado, elegante, lido, rico e cosmopolita não dá suficientemente conta do que reservou a Paulo Prado inclusão necessária no rol dos mais reconhecidos intérpretes da civilização brasileira, não obstante seu livro seja, como ele mesmo reconhece, um livro de impressões, ainda que caucionadas por conhecimento historiográfico largo e relevante. Para entender melhor a justificativa do incontornável destaque dado a esse ousado e extravagante ensaio, é preciso examinar o modo inesperado e radicalmente crítico como a história do Brasil foi vista, experimentada e pensada por seu autor no complexo e conturbado ambiente em que se encontrava o país ao término das três primeiras décadas do século XX. Para tanto, ler o livro é indispensável, cabendo a esta apresentação tão só algumas antecipações de seu conteúdo, e alguma indicação sobre o modo de abordá-lo.
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Abre o Ensaio sobre a tristeza brasileira a frase: Numa terra radiosa vive um povo triste. Fica claro, assim, porque foi dito acima que Paulo Prado distinguiu-se por prestar atenção a certas disposições afetivas e comportamentais de nosso povo. É que, para ser mais explícito, a diferença do que fazem os demais intérpretes da nacionalidade, Paulo Prado não vai seguir os modos mais usuais de inspeção de nossa história. Sua atenção não privilegiará os estudos da economia, das instituições, nem se ocupará do levantamento de figuras típicas da sociedade brasileira, como o fazendeiro, o sertanejo, o caipira, o gaúcho. Tampouco lhe importará descrever, reconstituir minuciosamente formações sociológicas e de antropologia cultural bem especificadas, como farão, posteriormente, Gilberto Freire ao falar da casa grande da senzala, ou, numa outra chave, do estamento,à maneira de Faoro. E alheia a sua preocupação foi também o esforço para mostrar que em nossos hinos, bandeiras, monumentos, feriados comemorativos de eventos institucionais, como a independência ou a proclamação da república, encontra-se o lugar nos qual, nós, nós os brasileiros, apreendemos e subjetivamente fixamos o que, histórica e socialmente, constitui nossa identidade, como José Murilo de Carvalho, muito mais recentemente, veio a fazer.
Em vista de tantas exclusões, perguntarão justificadamente os leitores: mas então, o que é mesmo que fez esse Paulo Prado? Bem, se formos ao índice do livro, o que lemos ali é que, se quisermos entender o que somos, precisamos prestar atenção à paixões, como a Luxuria e a Cobiça, e a certas disposições emocionais, como a Tristeza e o Romantismo, conjunto este que nos constituiria a figura, a triste figura, é bem o caso de dizer, e que é espelhada nos nomes dados aos capítulos que organizam o livro. O partido hermenêutico é, portanto, que, se nos quisermos verdadeiramente compreender, é a certos traços dominantes do caráter nacional, do caráter do povo brasileiro, que devemos atentar. Tais traços não são tomados por Paulo Prado como propriedades inatas, mas como o resultado da inter-relação das diferenciadas características histórico-culturais das populações que convivem ao longo do tempo no mesmo território, com as condições prevalentes no ambiente natural em que se encontram e do contexto institucional das distintas épocas em que viviam e se desenvolveram. De onde decorre que o livro seja, senão historiográfico no sentido mais estrito do termo, de algum modo histórico, esforço de penetração na selva escura da história do Brasil, como se lê no prefácio de Paulística etc.[i], outra das obras de Paulo Prado.
Como dito acima, nos limites desta apresentação vão apenas algumas indicações de como se desdobra esse ensaio de caracterologia sócio-histórica, cabendo advertir, porém, que o privilégio dado pelo resumo à lição principal de cada capítulo, deixa de lado o que há de sedutor e brilhante no livro, a prosa elegante e limpa, a vivacidade dos quadros em que nos vemos retratados, o que há de persuasivo na seleção de testemunhos e fontes em que estão baseados e a corajosa ousadia de apresentar sem rebuços teses de agudo polemismo, construídas como uma espécie de longa epítrope, essa figura de retórica por meio da qual fazemos da insistência sobre um quadro horrível estímulo e razão para que nos disponhamos e esforcemos a mudá-lo.
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Abre o ensaio, A luxuria, capitulo dedicado à apresentação do vício que, segundo o Ensaio, desde o descobrimento, viria a constituir um traço essencial e constante da vida social brasileira. A base para justificação da tese encontra-se em uma erudita, cuidada, fina, mas provavelmente não suficientemente crítica, seleção de relatos e depoimentos de viajantes, religiosos, comerciantes, homens de governo que atestariam a predominância nos primeiros tempos da ocupação do território de costumes sexuais absolutamente dissolutos. Consequência, mais sugerida do que enunciada explicitamente no texto, é que, embora esse desregramento extremo possa ter sido de algum modo modulado depois do momento inaugural, a luxúria permaneceria como uma marca inapagável do caráter brasileiro.
A análise de Paulo Prado destaca três condicionantes para essa liberalidade sexual extremada e perversa, típica das primeiras etapas da vida colonial. Em primeiro lugar, a naturalidade e a liberdade cultural com que a população indígena encarava e tratava o sexo, combinada, como diz o texto, com “a lascívia do branco solto no paraíso da terra estranha”[ii], fatores estes ‒ introduzidos sem traço de hesitações, pudores e cuidados que em nossos dias se imporiam – que, diz-nos ainda o texto, a passividade infantil da negra africana acoraçoou. No primeiro meio século da ocupação colonial, a ausência absoluta de mulheres brancas ‒ quer dizer cristãs, pelo menos externamente submetidas as restrições da moralidade católica ‒ foi outro dos condicionantes desse desregramento geral; depois, pelo menos até o início dos século XVII, a escassez delas continuou a cumprir esse mesmo papel indutor. Em terceiro lugar, teria empurrado nessa mesma direção o perfil social, psicológico e cultural dos que formaram as primeiras levas de povoadores: “a escuma turva das velhas civilizações”, os “corsários, flibusteiros, caçulas das velhas famílias nobres, jogadores arruinados, padres revoltados ou remissos, pobres diabos (…), vagabundos dos portos do Mediterrâneo, anarquistas”, quer dizer: os aventureiros sem pátria e sem raízes, ávidos de gozo e vida livre, como dirá adiante o texto, para os quais as restrições morais dos costumes das terras de origem já pouco valiam e a nada serviam.
A cobiça dá seguimento a apresentação da segunda das paixões que, nascidas no Brasil colônia, persistiriam como traços constitutivos da identidade brasileira. Neste caso a origem da deformação encontrar-se-ia no generalizado desejo bruto, invariável e praticamente exclusivo de ouro, prata e pedras preciosas e no esforço arriscado e obsessivo para encontrá-los por parte daqueles que , primeiramente, vieram a ocupar este pedaço da terra verde recém-descoberta que, muito depois, viria a ser o Brasil. Quase dois séculos adiante, nos é dito que esse mesmo desejo de riqueza material alcançou seu paroxismo e, então, finalmente, uma recompensa à altura, pois, na virada do século XVII para o XVIII, foram descobertas as minas no rio Doce e na região de Ouro Preto. O desarranjo social então provocado pelos deslocamentos populacionais e por seus efeitos sociais e psicológicos foi a nossa versão dos quadros típicos das corridas ao ouro. Em vista disso, e também do desestímulo ao desenvolvimento produzido pela centralização burocrática e coibitiva das iniciativas do povo da colônia impostas pelo governo de Portugal, Paulo Prado viu-se levado a declarar: “Para o Brasil, esse século XVIII foi também o século do seu martírio”. No entanto, como fizera em estudos anteriores, ele não deixa de enfatizar que no desenfreio das ambições cobiçosas e em meio ao atraso, ao desânimo, à pobreza regressiva e desamparada da maioria do povo, caberia reconhecer a figura admirável dos bandeirantes, especialmente os de São Paulo,[iii] que animados pela coragem, pela obstinação, pela resistência e pelo espírito de empresa, ao mergulharem nas lonjuras e recônditos da terra ainda inexplorada, ao mesmo tempo em que preavam índios, vieram a conquistá-la e a dar origem aos espalhados núcleos de povoação miscigenada que viriam a tornar-se a terra e o povo do Brasil. Povo este no qual os aspectos positivos da ação e do perfil bandeirante ficariam também marcados, ainda que em ponto menor, restrita e subjacentemente,[iv] no caráter de nosso país.
A Tristeza não começa por repetição da frase que abrira o livro: Numa terra radiosa vive um povo triste. Inicia é com um contraste, evocando o desembarque dos peregrinos ingleses em Massachusetts em 22 de dezembro de 1620, cuja austeridade, resiliência ao frio intenso e perigoso, trabalho organizado, senso de autonomia individual e, ao mesmo tempo, espírito comunitário é então contrastado com o modo como “na costa atlântica do continente do sul” ocorreu a chegada dos novos ocupantes. Nestes já faltavam as qualidades “do português heroico do século XV”, moralmente desfigurados e diminuídos que estavam pelo próprio sucesso do domínio imperial, que lhes formara e consolidara o ânimo de pura exploração e a degeneração de costumes que se associa a quem vive da riqueza alheia. Ou para dizê-lo nas palavras do próprio autor: “Por esse povo já gafado do germe de decadência começou a ser colonizado o Brasil.”
A tristeza, que o ensaio apresenta como sendo o estado de alma mais característico de nosso povo, designação síntese de sua identidade, é um capítulo menos simples do que se poderia pensar a partir dessa remissão inicial a uma semente ruim. Articula, na verdade, duas ordens de explicação. A primeira, toma a larga prevalência social da tristeza como consequência combinada dos abusos venéreos ‒ sob a suposição da veracidade do dito latino Triste est omne animal post coitum ‒ com as inevitáveis decepções da cobiça desmedida, consequência natural da alta frequência da “inutilidade do esforço e (do) ressaibo da desilusão”. A segunda das explicações da tristeza brasileira, Paulo Prado a encontra também combinada: por um lado como resultado de uma desafeição original pela terra por parte dos portugueses natos e de mazombos, ambos tendo como anseio dominante o de quanto antes voltar à pátria d’além mar; por outro lado presente no próprio caráter “do mestiço”, que, diz-nos o texto, “já acostumado à contingência do sertão, do perigo, do clima limitava o esforço à ganância de enriquecimento fácil, ou à poligamia desenfreada”.
O levantamento da distribuição desse quadro anímico pelas regiões ‒ por Pernambuco, pela Bahia, pelo Rio de Janeiro e mesmo por São Paulo ‒ varia ênfases e distingue as descrições com atenção especial às questões raciais, então muito presentes nas discussões histórico-sociológicas, em registro, porém em tudo diverso de seus renascimento na agenda identitária dos dias atuais. O que naquele então interessava da variação racial não era a denúncia de abusos e da violação de direitos, como hoje vemos, mas simplesmente a avaliação dos bons e maus efeitos do processo de miscigenação sobre o estado geral do país. Mais especificamente, a preocupação principal desse trabalho era reconstituir modo e proporção em que se combinavam em cada lugar, brancos, pretos, mamelucos e mulatos, a análise cuidando, sobretudo, de inventariar os maus resultados provocados no perfil dos brasileiros formados no cadinho étnico em que se fundiu o nosso povo. Na desolação do quadro assim apresentado, Paulo Prado concede apenas que, “disseminadas pelos sertões, de norte a sul”ainda persistiam “as virtudes ancestrais: simplicidade lenta na coragem, resignação na humildade, homens sóbrios e desinteressados, doçura das mulheres.” A conclusão geral será, contudo, que no “ao iniciar-se século de sua Independência” a Colônia “era um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se apenas pelos laços tênues da língua e do culto,”
O romantismo, o mais curto dos capítulos, fecha o corpo do livro. O ensaio combina ali duas críticas: a da retórica política de origem rousseauniana, origem dos excessos democráticos e da submissão do realismo a ideais retoricamente bem apresentados e o análogo amor às miragens do romantismo, combinadas estas com a melancólico sentimento de que a verdadeira vida é ausente, cujo maléfico efeito é o de conduzir não só aos devaneios, mas a dissipação da vida e ao pessimismo. Essa segunda linha é acentuada nas observações conclusivas, nas quais o fato de que nossos principais poetas românticos morreram moços, é tomado como representação da astenia da raça, debilidade atribuída a obsessão com a morte e, novamente aqui, a um erotismo alucinante. O fecho sendo então que “no Brasil, do desvario de nossos poetas e da grandiloquência dos oradores, restou-nos o desequilíbrio que separa o lirismo romântico da positividade da vida moderna e das forças vivas e inteligentes que constituem a realidade social.”
Cabe, por certo, um balanço crítico à vista de tão carregada crítica de nossa história e de nossa gente, desse pessimismo pesado, fortalecido por um diagnóstico consoante o qual nossas deformações, insuficiências e prejuízos não são acidentais, mas essenciais, constitutivos porque enraizados na mistura de linhagens de um povo decadente, em cuja composição étnica as relações inter-raciais são vistas como frequentemente juntando o pior dos troncos miscigenados, e, ademais, depois da Independência, subjetivamente desencaminhado por um constructo ideológico de ideais sem outra densidade que a da retórica romântica. No entanto não cabe fazê-lo sem levar em conta o Post-Scriptum, parte na qual o livro reflete, ainda que muito parcialmente, sobre si e sobre sua circunstância, sobre sua posição ante o tempo em que se inscreve
A autorreflexão do Post-Scriptum começa com uma questão de método, declarando que o Retrato do Brasil foi composto como um quadro impressionista, livre da obsessão com datas, com citações e autos que nada provam, além de “não incidir na prosa tabelioa dos simples arroladores de fatos”, como anota com justiça, não o próprio Paulo Prado, mas Agripino Grieco, um de seus primeiros resenhadores. Mas a impressão de modéstia suscitada pelo reconhecimento dessa limitação de enfoque é logo corrigida pela indicação do que caberia colocar no lugar dela, “o que os alemães chamariam a história pragmática do Brasil”, cuja execução implicaria, contudo, exatamente o que o ensaio, ainda que de modo impressionista, procura fazer: o estudo das três raças – o colonizador português, as populações indígenas e o negro africano – que produziram “o novo tipo étnico que será o habitante do Brasil”. Reconhecendo, mas deixando em segundo plano o estudo das desigualdades socioeconômicas e culturais associadas à escravização de indígenas e negros, Paulo Prado faz a pergunta que os capítulos anteriores já haviam respondido: “que influência pode ter no futuro essa mistura de raças?”. Sua resposta repetirá que consequências disso teriam sido o “mais anárquico e desordenado individualismo” e a “indolência e passividade das populações”, ainda que, neste último caso, essas características tenham facilitado”a preservação da unidade política”, feito produzido, também paradoxalmente, pelos “vícios e defeitos da burocracia estatal portuguesa.”[v]
Para encaminhar a conclusão do livro, o Post-ScrIptum permite-se, porém, mudar de registro e lançar o olhar sobre o tempo em que é escrito, sobre o estado do Brasil naquela terceira década do século XX. A descrição do que, então, Paulo Prado enxerga continua acerbamente crítica. Começa com a observação de que “dos agrupamentos humanos de mediana importância, o nosso país é talvez o mais atrasado (…). Não progride: vive e cresce, como cresce e vive uma criança doente.” Nossa população, distribuída no território em grupos humanos incertos, vivendo à solta na terra comum, sobretudo no litoral ‒ em sinal claro da desorganização da ocupação territorial e do mau aproveitamento dos recursos da terra – continua a ter semi-ignorado o interior do país, que permanece entregue à indolência, às doenças, às crendices e submetido à tradição do mandonismo local. Por sua vez, o que há de mais desenvolvido no Brasil, as “manchas de civilização material nos planaltos da serra do Mar, da Mantiqueira e nos campos do sul”, são vistas como frágeis e dependentes, pois exploradas pelo capital estrangeiro, debilitadas também pela inércia da administração pública, cujo foco principal é a extensão e a eficácia da cobrança de impostos. Somado a isso, diz-nos ainda o texto, o que se vê de vivo na ordem privada continua debilitado e contra impelido pela regra geral de priorização e preferência dadas às importações e à correlata imitação do estrangeiro, cujas consequências macroeconômicas são o endividamento em moedas fortes e as repetidas crises cambiais. Finalizando esse quadro infeliz, diz-nos ainda o retrato, há uma hipertrofia da atenção à esfera politica como se a ela se reduzissem os enormes e desatendidos problemas do país. “Para tão grandes males” conclui, então, o Post-Scriptum e com ele o livro, só duas soluções poderão evitar o desmembramento do Brasil: a guerra ou a revolução, de modo que, lê-se na última linha, só resta como pensamento de reconforto, “a confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado”.
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Diante desse Retrato do Brasil, cuja escrita foi por todos logo reconhecida como extraordinariamente sóbria, elegante e envolvente, mas cujo retratado nos é apresentado com uma figura monstruosamente deformada e feia, cabe ver como ele foi recebido.
A verdade é que a repercussão imediata do livro foi enorme e a recepção crítica grande, rica, diversa e polêmica. Em algumas vozes contundentemente negativa, em outras, entusiasmadas com o estilo e admiradas com o que de verdade viam no ensaio e também em acordo com seu propósito e oportunidade. No entanto, em todas as resenhas e exames do livro, não faltaram, além da admiração pelo texto, os apontamentos de parcialidades, omissões, anacronismo do enfoque metodológico e mesmo equívocos de fundo com relação ao modo como livro representa a realidade brasileira.
Já em dezembro de 1928, imediatamente após a publicação do livro, Alceu Amoroso Lima, entre nós, o mais importante pensador católico do século XX, à época ainda não convertido, intitulou sua resenha assim: Retrato ou Caricatura?[vi] Sua resposta foi que é próprio dos panfletos, exagerar nas tintas e eliminar todos os entretons, de modo que, a seu juízo, o que Paulo Pardo fizera, fora uma caricatura, construída, embora, com o espírito de um patriotismo sadio e, por isso, merecedora de atenção e admiração, ainda que crítica. Para quem se aproximava então do catolicismo, a condenação dos efeitos perniciosos da luxúria, tão enfatizados no ensaio, com certeza estava entre os pontos mais importantes do livro. Dos modernistas de 22, Oswald de Andrade, embora ressalte que o livro teria acordado muita gente ao gritar que o Brasil existia, e a despeito de que também louve-o por ter trazido à opinião publica brasileira o sinal de que havia uma revolução mundial em andamento, não hesita em acusá-lo de julgar a luxúria com a moral dos conventos inacianos, nem em afirmar que quem conhecesse o autor veria no livro uma traição a si mesmo.[vii] Oswaldo Costa na revista de Oswald de Andrade, a Antropofagia, radicaliza o ponto ao dizer que, “na época de Freud”, Paulo Prado se fantasia de visitador do Santo Ofício, toma a palmatória, abre o catecismo e prega moral ao brasileiro da fuzarca, insistindo em meter na cabeça dele o desespero do europeu podre de civilização.”[viii] Mário de Andrade é mais sinuoso, seu artigo tem por título Inteligência Fazendeira, ignora o conteúdo do retrato. e diz que seu mérito é ter anunciado a chuva que viria, quer dizer, a grande crise dos anos 30.[ix]Ainda em 1928, Agripino Grieco na mais elegante das resenhas e, ao mesmo tempo, levando a sério o conteúdo do livro, admira “o civilizado, o fino epicurista das letras que é seu autor”, assim como “a distinção, a polidez da frase”, e, atribuindo ao ensaio o caráter de obra de arte, não lhe reconhece força demonstrativa. Este teria o estatuto de uma hipótese inverossímil, pois o parecer de Agripino é que “somos azedos não por motivo racial, mas social e econômico, por sentirmos fracos, não só na cidade, onde não conseguimos fazer face à invasão estrangeira, aos capitais monopolistas (…), mas também no interior, onde sofremos por fazer parte do mais desprotegido dos proletariados, o proletariado rural (…).”[x]
Mais tarde, a parte de muitas outras manifestações sobre o Retrato do Brasil, viriam a ele os historiadores. Em 1949 Werneck Sodré publica uma circunstanciada avaliação do livro, louva-lhe o profundo conhecimento de nossa história, o tom acusatório do estado lamentável e inaceitável em que a seu tempo fora levado o país, elogia também sua sensibilidade em antecipar a grande crise de 1929, mas insiste em que a luxúria, a cobiça e o romantismo não foram causa, mas sim efeito da estrutura econômica e social do país. Wilson Martins, em 1969, em sua História da Literatura Brasileira, atribui ao livro grande valor, considerando que embora se deva considerá-lo como uma obra de arte, das quais “não cabe discordar, mas tão só aceitar ou rejeitar”, credita-lhe não só a honra de ter aberto “a estrada real para os estudos brasileiros”, mas a de ter criado “em alto estilo, o ensaísmo propriamente moderno.”[xi] Em 1978, Francisco Iglésias, historiador profissional, aponta o caráter não científico da obra, o uso pouco crítico das fontes, temerariamente arriscando-se na generalização de evidências tiradas dos processos da Inquisição nos quais o foco da atenção justamente incluía privilegiadamente casos de luxúria e cobiça. Censura-lhe, além disso, o psicologismo, mas não deixa de reconhecer que o Retrato do Brasil é “livro harmonioso, admiravelmente escrito, um dos momentos altos na bibliografia brasileira.”[xii] Nesse mesmo ano em que Iglésias escreveu, Fernando Henrique Cardoso, que, por certo, não é exatamente historiador, publicou o seu Fotógrafo Amador, uma página na revista Senhor Vogue.[xiii] Ali, depois de notar que Gilberto Freire, ao culturalizar as análises sobre a constituição da identidade brasileira, rompera “com o que havia de preconceito sobre as ‘raças inferiores‘”e de observar que não obstante fosse o Retrato “a consagração do subjetivismo romântico” Fernando Henrique insinua que, nesta medida, dever-se-ia tomá-lo como uma versão desastrada da “transfiguração do feio em belo” do orgulho do que, embora defeituoso, fosse nosso, traço maior da Semana de 1922, cujo emblema éMacunaíma. Ao final do século XX, em 1997, Fernando A. Novais, ao ensejo da nona edição do livro, em uma coluna na Folha de São Paulo, o exalta como ‘um momento privilegiado dessa retomada de consciência de nós mesmos (…)”, preocupação esta que constituiria justamente o traço dominante da cultura brasileira a partir do fim da década de 20 e cujo principal mérito foi o de abrir-nos para a visão crítica de nós próprios.[xiv]Por fim, quase agora, em 2022, em “A ideologia modernista – a Semana de 22 e sua consagração”[xv], Luis Augusto Fischer reabre o processo de avaliação crítica do Retrato do Brasil e lhe faz a menos condescendente, na verdade mais impiedosa e radical das acusações: “Paulo Prado se esconde atrás de citações de viajantes para reproduzir, neste ponto, os seguintes horrores, que são racistas mas são, talvez pior ainda, do tipo que culpa o oprimido pela opressão, a estuprada pelo estupro, o escravizado pela escravidão.”
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Agora, praticamente um século depois, à luz de tantas e qualificadas avaliações anteriores, o que ainda se poderá e o que caberá dizer sobre o Ensaio sobre a tristeza brasileira?
Para dar resposta a essa indagação, o melhor talvez seja começar com outra pergunta: será que esse diagnóstico de que somos um povo triste tem alguma plausibilidade, será que, quando olhamos para o nosso país ao já nos aproximarmos do final deste primeiro quartel do século XXI, nos vemos tristes?
Tristes, tristes no sentido próprio e exato do termo, não me parece que sejamos. Mas não creio despropositado dizer que estamos machucados, frustrados, confusos, divididos e bastante desiludidos com nós mesmos. Certamente não cumprimos o vaticínio feito por Dom Pedro I no alvor da nossa Independência: não, não nos tornamos o “assombro do mundo novo e velho”. Longe disso, como se vê nos dados sobre a emigração, no âmbito da qual é crescente a participação de nossos jovens mais promissores. Nossa sociedade continua ainda a disputar o campeonato das mais desiguais do mundo, estado visível na paisagem urbana de nossas cidades onde multiplicam-se os que vivem do lixo, os moradores de rua, os drogados e onde os bairros de classe média e alta são circundados por um favelamento enorme, por essas grandes comunidades, como hoje se diz, no qual o povo honrado e trabalhador, ausente o Estado, é submetido à autoridade clandestina e perversa dos capitães do tráfico de drogas e por milícias, quase tão perniciosas quanto o próprio tráfico. Nossa economia, a despeito do extraordinário sucesso do agronegócio, desindustrializando-se a olhos vistos, mostra-se também absolutamente incapaz de integrar-se com alguma autonomia aos centros de inovação tecnológica do mundo. E a política, essa que Paulo Prado queixava-se de parecer ser a única preocupação social tomada como relevante no país, continua mais ou menos assim. Para que assim não fosse, precisaríamos ter e ver as forças da ordem pública somadas às da esfera privada, comprometidas ambas com a solidariedade social e articuladamente empenhadas na construção de um país à altura do que o mais rico e desenvolvido século que a história humana conheceu faculta.
Por isso, um diagnóstico crítico parcial e cruel como o de Paulo Prado continua a provocar e a desafiar, embora não porque ele dê conta do estado em que hoje se encontra nosso país, tampouco porque seu diagnóstico das causas de nossas insuficiências e penas dê uma visão equilibrada e justa de nosso país, mas porque ele nos chama para olhar o panorama que vemos hoje com a mesma disposição crítica com que ele se voltou para nosso passado. Falta-nos sim quem tenha a verve, a finura de espírito para mostrar como se refletem em nossas paixões, disposições de ânimo e consciência reflexiva, os males estruturais de nosso país. Essa escrita, o retrato do Brasil de 2023, continua por fazer.
Oxalá se e quando essa nova crítica venha à luz, seja ela atenta também às qualidades e virtualidades positivas de nosso povo, que assim como pode ser triste, pode também ser alegre, e com a mesma alternância, vicioso e virtuoso, desalentado e esperançoso. Oxalá venha ela acompanhada também de uma convocação à convergência, à disposição de abrir mão de privilégios indevidos, à paciência sem a qual a perseverança no caminho é impossível e irrealizável a aspiração que, a despeito das raivas e ódios do tempo, in pectore todos temos: a de fazer com que este Brasil, infelizmente rachado por diferenças político-ideológicas, perdido e debilitado por feridas econômicas, sociais e culturais que tão logo pensadas se reabrem, se reencontre e com isso ganhe a força necessária para verdadeiramente saná-las. Talvez então, mesmo se não nos tornarmos o assombro do mundo novo e velho que nos previa Dom Pedro, não tenhamos mais que remoer e envergonhar com as mazelas que, mesmo que exagerada e enviesadamente descritas, como fez Paulo Prado, ainda hoje nos desfiguram e humilham.
*João Carlos Brum Torres é professor aposentado de filosofia na UFRGS. Autor, entre outros livros, de Transcendentalismo e dialética (L&PM). [https://amzn.to/47RXe61]
Bibliografia
Paulo Prado. Retrato do Brasil: Ensaio Sobre a Tristeza Brasileira. L&PM, 176 págs. [https://amzn.to/4bggEnX]
Notas
[i] V. Paulo Prado, Paulística, etc., Companhia das Letras, Sâo Paulo, 2004, p. 55.
[ii] Lascívia, diz o texto, por tudo favorecida: « os impulsos da raça, a molícia do ambiente físico, a contínua primavera, a ligeireza do vestuário, a cumplicidade do deserto, e, sobretudo, a admiração fácil e admirativa da mulher indígena, mais sensual do que o homem como em todos os povos primitivos e que, em seus amores dava preferência ao europeu (…. »
[iii] No artigo Bandeira, Paulo Prado escreve: « Para essa luta sobre-humana, as circunstâncias do meio, da raça, e da educação tinha preparado e afeiçoado admiravelmente o ‘o herói providencial’ no tipo do bandeirante de São Paulo. (… (T)odos esses fatores conjugados criaram uma admirável exemplar humano, belo como um animal castiço, e que só puderam realizar nessa perfeição física os homens da Renascença italiana, quando César Bórgia seduzia o gênio de Maquiavel. » In Paulística etc. 4ª edição, organizada por Calos Augusto Calis, Companhia da Letras, São Paulo, 2004, p. 147.
[iv] Mas nunca completamente desaparecida, como atestado, segundo Paulo Prado, no renascimento econômico dos dias de hoje, o dia dos tempos em que escrevia, em 1925, conforme dito em seu prefacia à primeira edição de Paulística, etc. Cf., ob. cit., p. 59.
[v] Neste ponto convém notar que muito embora Paulo Prado tenha como um ponto importante do ensaio a questão do caráter étnico do povo brasileiro, ele não a encara a partir das teorias racistas. A propósito, no Post-Scritum, escreve que “A questão da desigualdade das raças, que foi o cavalo de batalha de Gobineau (… é questão que a ciência vai resolvendo no sentido negativo. Todas as raças parecem essencialmente iguais em capacidade mental e adaptação à civilização” Mas inquieta-se com a mestiçagem ao dizer que embora“o mestiço brasileiro”tenha “fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral”, por outro lado observa que “as populações oferecem tal fraqueza físca, organismos tão indefesos contra a doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar-se se este estado de cousas não provém do intensamento cruzamento das raças e sub-raças.”Sobre este último ponto deixa de lado os estudos de saúde pública, sobre as condições sanitárias e de saúde das populações brasileiras desenvolvidos por Roquete Pinto, Osvaldo Cruz, Belisário Pena, Artur Neiva, Miguel Pereira. Confira-se para reconstituição destas questões, Thomas Skidmore, Preto no Branco –Raça e Nacionalidade no pensamento brasileiro. Paz e Terra, 1976, especialmente o capítulo 6.
[vi] V. Retrato ou Caricatura, in Paulo Prado, Retrato do Brasil –Ensaio sobre a tristeza brasileira. 10ª edição, organizada por Carlos Augusto Calil, Companhia das Letras, 2012, p. 152-157. A maioria das remissões feitas às resenhas e comentários ao Retrato do Brasil feitas adiante tomarão como base esta edição de C. A. Calil, que deve ser considerada como uma edição crítica e de referência.
[vii] V. Retoque ao retrato do Brasil, in, id., p. 169-171.
[viii] V. Moquém, também publicado na edição Carlos Augusto Calil, p. 174-176.
[ix] V. Inteligência fazendeira. In, id. p. 172-173.
[x] V. Da Paulística ao Retrato do Brasil. In, id, p. 158-164.
[xi] V. 1928: Retrato do Brasil, in, id. p. 202-210.
[xii] V. Retrato do Brasil, 1928-1978. In, id. p. 211-222.
[xiii] O texto foi recuperado em Fernando Henrique Cardoso, Pensadores que inventaram o Brasil, Companhia das Letras, 2013. Devo ao amigo Lucas Taufer o oportuno alerta para não deixar de incluir a Fernando Henrique nesta lista de comentadores do Retrato do Brasil.
[xiv] V. Raízes da Tristeza, In, id. p. 229-233.
[xv] V. Luis Augusto Fischer, A ideologia modernista a Semana de 22 e sua consagração, Todavia, São Paulo, 2022.
JOÃO CARLOS BRUM TORRES ” PORTAL A TERRA É REDONDA” ( BRASIL)