UM JANEIRO PARA A HISTÓRIA

CHARGE DE NANDO MOTTA

Passado o primeiro aniversário do sinistro 8 de janeiro, quando se assistiu à destruição de bens dos três poderes, restou, com todas as evidências, que o terrorismo e o golpismo já não têm parte na índole dos brasileiros. O resultado foi que o governo e instituições capitalizaram esse sentimento nacional, inteiramente contrário àquelas hostilidades, que deixaram, no rastro de doze meses, prisões de dezenas de manifestantes, muitos deles com a vida para sempre desorganizada. Bem avaliado, foi um teatro em que dividiram as cenas incautos ou inocentes (in)úteis. As cortinas já estão fechadas.

Provavelmente, no próximo ano serão outras as preocupações, o incidente de janeiro esquecido, poucos estarão interessados em soprar as cinzas do incêndio. Ofensas e dúvidas arquivadas, mesmo as que agora são lembradas por governantes ofendidos, depois de celebrarem a vitória da democracia e festejado a ruptura de temido golpismo. Lembremo-nos que temos o hábito de esquecer com facilidade.

Mas, transcorridos os fatos, restam algumas questões, nada festivas, que temos obrigação e dever de evoluir para uma segunda fase do episódio, partindo agora para a responsabilidade de pesquisadores e políticos independentes, a quem se confia uma séria análise do que ocorreu naquele dia e nas suas vésperas. É chegado o momento de a História colocar o dedo, abandonando a superficialidade com que os acontecimentos têm sido tratados. O país precisa de estudos mais atentos e profundos, para que se removam interpretações inspiradas em avaliações não suficientes. Começando por identificar e mostrar a cara dos verdadeiros responsáveis pelos planos de tomada do poder, se é que realmente existiam, como tem duvidado o jurista Ives Gandra. Não apenas o indiciamento de manifestantes que saíram quebrando o que tinham pela frente, mas os que, até agora não revelados, planejaram e inspiraram o plano sinistro. Quem ou quais os mentores? E os políticos que em silêncio arquitetaram aquilo? Não basta uma acusação vagamente anônima de que tudo foi obra de bolsonaristas. Também vagas e confusas continuam as suspeitas de omissões da parte de forças militares, que podiam ter eliminado ou limitado os estragos.

Em que lugar – a História vai querer saber – estariam guardados os tanques e canhões para o golpe?, porque sem eles teria sido delírio e maluquice tentar derrubar o governo recém-instalado. A que generais e coronéis estava confiada a guarda dos arsenais em domingo de lazer?, se é que, de fato, preparavam o Brasil para o grande incêndio das instituições. Naquela altura de um acontecimento tão grave, as Forças Armadas já deveriam estar mobilizadas. Ou será que seus chefes, ao contrário do governo, tinham o anunciado golpe na conta apenas de uma balela? Não há dúvida de que um projeto para derrubar o governo contaria, em primeiro plano, com a calorosa acolhida dos quartéis. Sem seu patrocínio, nada feito. E, exitoso o projeto de profundo arranhão da democracia, a quem caberia assumir o governo, para nos dizer o quê? Ninguém sabe, porque nunca apareceu o chefe.

O primeiro depoimento esclarecedor os historiadores precisam colher, por se trata da autoridade de responsabilidade mais sensível no caso, é o ministro da Defesa, José Múcio, que faz reservas ao açodamento com que se apregoa o fantasma do golpe. Ninguém o supera em importância para esclarecer, sabendo-se que estão sob sua ordem generais, almirantes e brigadeiros.

O país precisa insistir em detalhes do levante que aconteceria e não aconteceu. Um completo esclarecimento da origem de detalhes desconhecidos, porque tudo, até agora, está resumido em discursos políticos.

Não menos grave, surgiu, não se sabe exatamente de onde, a notícia de que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal, estava condenado a ser preso durante a quartelada, enforcado na Praça dos Três Poderes, em poste até então inexistente. Tamanha denúncia, se efetivamente procede, exige apuração rigorosíssima, cabendo ouvir, preliminarmente, o próprio ministro, que deu ciência de um ato de violência da mais alta escala de terrorismo. Peça-se ao ministro que revele a identidade de seus suspeitos algozes.

Verdadeiros ou encenados, os registros têm de sair agora do campo das homenagens e pronunciamentos laudatórios, e cair no colo dos historiadores. São de tamanha gravidade, que se torna indispensável a apuração séria, com a preocupação de separar o real e a fantasia; o que, efetivamente, esteve atrás daquela lamentável manifestação; colocar sobre a mesa o que são provas materiais e intelectuais da pretendida conspiração; estabelecer linha divisória entre fatos concretos e armações para servir a interesses, o que, aliás, levou 14 governadores a não se solidarizarem com a festa comemorativa de Brasília.

Porque os acontecimentos daquele dia estão a exigir cuidadosa perícia, sem achismo e definições dúbias, a começar pela imediata identificação dos verdadeiros responsáveis. É uma obrigação que temos com a História.

ALVARO CALDAS ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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