OS IMPASSES DE UM PAÍS DIVIDIDO

CHARGE DE AROEIRA

A penúltima semana de trabalho das duas Casas do Congresso, antes que os (as) deputados (as) e senadores (as) mergulhem, no próximo dia 22, no recesso de Natal e Ano Novo, com a extensão das férias parlamentares de janeiro, para só retomarem o expediente do Legislativo em 1º de fevereiro, foi de atropelo de votações. Mas, ao fim e ao cabo, o governo Lula, que foi eleito com minoria dos partidos nas duas casas, teve algumas estrondosas vitórias para comemorar. A primeira foi a aprovação, dia 13, no Senado, da indicação, feita por Lula, do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para ministro do Supremo Tribunal Federal, por 47 votos, contra 31 e duas abstenções dos 81 senadores (o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, só votaria em caso de empate). A segunda foi a aprovação, dia 15, em 2º turno na Câmara (a matéria já tinha sido aprovada no Senado há uma semana), da Reforma Tributária por 365 a 118 votos contra. A matéria, que simplifica a miríade de impostos no país, tramitava no Congresso há quase 40 anos. Ela vai reduzir a carga tributária em cima de impostos indiretos, avançando, paralelamente, na justiça tributária, com um cerco maior sobre a renda e o patrimônio.

Mas, como nem tudo são flores, o governo amargou duas preocupantes derrotas. No dia seguinte à aprovação de Flávio Dino para o STF, veio o troco das duas Casas. O Marco Temporal das Terras Indígenas sofreu a derrubada do veto do presidente Lula ao Projeto de Lei Complementar do Congresso que, contrariando a Constituição de 1988, estabeleceu que o direito das tribos indígenas às terras só valeria para aquelas ocupadas em outubro de 1988. A rejeição ao veto presidencial exige o voto da maioria absoluta, em sessão conjunta, dos deputados (257 votos) e dos senadores (41). Pois o veto foi derrubado no Senado por 53 votos, com apenas 19 votos a favor da posição do governo (sem abstenção entre os 81 senadores, pois Rodrigo Pacheco não precisou votar). Na Câmara, o veto do presidente Lula foi rejeitado por 321 votos e só 137 deputados apoiaram a manutenção do veto.

A questão é complexa e pode vir a ser dirimida pelo Supremo Tribunal Federal. Em 21 de setembro deste ano, se antecipando à matéria em tramitação no Congresso, com forte apoio da bancada ruralista e de representes de garimpeiros e madeireiros que devastam as unidades de conservação, atribuídas pela União às tribos indígenas, o STF havia declarado que a PEC era inconstitucional. Em oito dias, dentro do prazo legal de 15 dias, a Câmara e o Senado aprovaram um Projeto de Lei para incluir a tese do marco temporal em lei federal. Em outubro, o presidente Lula vetou parcialmente o projeto aprovado no Poder Legislativo, argumentando que a tese já havia sido considerada inconstitucional. Agora o Congresso retrucou, criando impasse entre o Poder Executivo e o Legislativo, a ser elucidado pelo STF.

Bala certeira na calada da noite

O outro troco da Oposição, no detalhamento das emendas da Reforma Tributária, veio na calada da noite da sexta-feira, 15, quando a maior parte dos deputados já estava cuidando de outros afazeres. Vale dizer que o sistema de votação aplicado desde a pandemia da Covid-19, em 2021, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se baseia em acordos dos líderes de cada bancada ou federação e permite o voto remoto, via celular. Foi assim que o PL, o partido que abriga o ex-presidente Jair Bolsonaro, revidou a derrota na votação, antes do anoitecer, da Reforma. O PL, que conta com 96 deputados, tem a maior bancada da Câmara (o PT tem 68 e seu bloco, com o PcdoB/7 e o PV/6, soma apenas 81 votos). Mas não conseguiu barrar a aprovação da Reforma Tributária. Apesar da recomendação expressa de Bolsonaro contra a medida, 16 deputados aprovaram a reforma, dois se abstiveram e 75 seguiram o ex-presidente. O Bloco do PT/PCdoB e PV deu 100% dos 81 votos. A maior dissidência veio do União Brasil (que integra a base de apoio do governo e tem cargos no Ministério): de seus 59 deputados, 19 votaram contra a reforma. Que começa a valer mesmo em 2026, com tempo para adaptação até lá.

Para não amargar uma derrota acachapante na Reforma, o PL acionou a Bancada da Bala e conseguiu, na votação de emendas supressivas da RT, excluir o comércio de armas da lista dos chamados “produtos do pecado”, os causadores de morticínios, taxados com alíquotas mais elevadas, como cigarros e bebidas. Na votação em 1º turno das emendas supressivas, a proposta da Bancada da Bala, com maciço apoio do PL, precisava de um mínimo de 308 votos para ser derrubada. Na primeira votação, ainda com bom “quórum” de deputados, o destaque fora rejeitado por 326 votos. No segundo turno de votação, com o plenário esvaziado (no modo presencial e remoto, via celular), só 293 deputados confirmaram o veto, enquanto 198 defenderam retirar as armas da relação do pecado, incluindo a bancada dos evangélicos, e o instrumento que mais causa mortes e luto nas famílias foi isento do pecado e tido como “artigo do bem”. Só faltou o coro de aleluia e de balas traçantes.

A aritmética da Política

A pauta do Congresso teve outras vitórias importantes do governo, sobretudo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, incansável articulador político na surdina. Enquanto negociava a retomada da Reforma Tributária, pegando carona nos projetos dos deputados Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e Baleia Rossi (MDB-SP), com a nomeação do economista Bernard Appy para conduzir exclusivamente o tema no Ministério, Haddad foi conseguindo cobrir furos na legislação tributária que faziam o Erário perder bilhões anualmente com a exclusão de tributação sobre fundos individuais exclusivos de bilionários no mercado financeiro doméstico e de fundos “off-shores” em paraísos fiscais. Conseguiu aprovar, parcialmente, a taxação sobre a distribuição de juros sobre o capital próprio de bancos e empresas (foi deixada margem à remuneração que incentive o reinvestimento). Cercou o mercado livre das apostas esportivas (bancados por empresas sem transparência instaladas nos paraísos fiscais mais obscuros – muitos já fizeram acordos com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, mas justamente a maioria dos sites de apostas que operam no Brasil estão fora da lista de acordos do DoJ). Esta semana restam as pendências na aprovação do Orçamento Geral da União para 2024, com horizonte mais definido para estimar o déficit público do ano que vem.

Mas as diversas quedas-de-braço nas votações importantes confirmaram que, se o governo Lula ainda não tem uma base sólida nem no Senado nem na Câmara, por seu turno o cacife da oposição não é suficiente para fustigar o governo. A votação da indicação de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal, neste aspecto, foi exemplar. Dino (eleito senador pelo PSB-MA, em 2022, após ter sido governador por dois mandatos no Maranhão, e nem exerceu o mandato porque foi convocado para o Ministério) resistiu às repetidas provocações dos senadores da oposição, sobretudo os mais alinhados a Bolsonaro. Mas o número de votos contrários à primeira indicação do presidente Lula, em seu terceiro mandato, ao STF ficou em 31 (menos que os 32 votos contrários à última indicação de Jair Bolsonaro para o Supremo): o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública (mesmo cargo já ocupado por Dino e o atual senador Sérgio Moro), André Mendonça, que teve, em dezembro de 2021, os mesmos 47 votos a favor de Dino, e 32 votos contra dos senadores. De 2021 para cá 27 novos senadores foram eleitos para oito anos de mandato.

A aritmética era importante porque o entorno de Bolsonaro jogou com todas as fichas para ver como o Senado reagiria. O Senado é a Casa Legislativa que, pela Constituição, tem direito de abrir processos de “impeachment”, por maioria de votos. Se Flávio Dino fosse aprovado raspando, com o “quórum” mínimo de 41 votos, o PL e os partidos aliados colocariam as manguinhas de fora para ensaiar pedidos de “impeachment” contra ministros do governo Lula (há vários na mira) e do Supremo Tribunal Federal (os maiores alvos são Alexandre Moraes, que concentra os inquéritos das ações do golpe de 8 de janeiro, das “fake news” e dos ataques às urnas eletrônicas e ao próprio STF, além dos ministros Luiz Roberto Barroso, que preside o colegiado de 11 membros do qual Dino fará parte em 2024, Gilmar Mendes e Edson Fachin).

Mas o inimigo número 1 do PL segue sendo o presidente Luís Inácio Lula da Silva, o único capaz de dar nó em pingo d’água e articular maiorias em votações importantes no Congresso, mesmo dispondo de base mínima e difusa. Se na Câmara a base sólida é de 81 votos, no Senado, o PT conta apenas com nove senadores (PCdo B e PV não têm representantes). O PL elegeu oito novos senadores, e a bancada ficou com 12. Foi superada pelos 15 representantes do PSD, de Gilberto Kassab, que conseguiu adesões nas mudanças de siglas partidárias. E, juntos ao bloco do PT e Rede, o PSD, que integra o governo Lula, ao lado do MDB (10 senadores) e dos quatro senadores do PSB e os três do PDT (todos presentes no Ministério), são a base mínima flutuante do governo. Como isso não é suficiente, Lula teve de atrair para o Ministério representantes do União Brasil (nove senadores), do Republicanos (quatro membros) e abrigou representantes do PP, um partido que esteve presente no governo Bolsonaro, com cargos no segundo escalão e a presidência da Caixa Econômica Federal.

Ainda assim, teve de abrir torneiras para liberar as verbas do Orçamento para as emendas de deputados e senadores (estes vão aproveitar o recesso e as férias para articular apoios a candidaturas a prefeitos em seus redutos eleitorais, com promessas de verbas saídas do Erário). Nada se faz de graça no Congresso. Nem mesmo os membros do PT dão garantia absoluta de lealdade (que o diga o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, habitual vítima do “fogo amigo” das bancadas do PT na Câmara e no Senado). Mas há casos escancarados. O senador Carlos Fávaro (PSD-MT), que sempre foi ligado ao agronegócio e, por isso mesmo, para pacificar a área, foi escolhido pelo presidente Lula para comandar o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, se licenciou do Mapa para reassumir o mandato no Senado e cerrar fileiras pela aprovação do colega de ministério Flávio Dino para o STF, acabou votando contra a posição do governo Lula em suas questões cruciais. Estava entre os 60 votos a favor da derrubada do veto presidencial à prorrogação da reoneração da folha de pagamentos (o governo teve só 13 votos pela manutenção do veto, que atingiu Fernando Haddad). O pior (Fávaro diz ter avisado ao presidente Lula) foi ter votado pela derrubada do veto do Marco Temporal das Terras Indígenas, por suas ligações com o agronegócio.

Das favas ao Fávaro com os escrúpulos

Na reunião que aprovou o famigerado A1-5, em 13 de dezembro de 1968 (completou 55 anos no dia em que Flávio Dino foi aprovado para o Supremo, uma das vítimas da sanha de cassações desencadeada pelo endurecimento da ditadura militar no governo do marechal Costa e Silva), o então ministro da Educação, coronel Jarbas Passarinho, proclamou “às favas com os escrúpulos”, e votou pela aprovação da medida. O único voto contra foi do vice-presidente, o jurista Nilton Campos, que advertiu para o risco de “não se controlar o guarda da esquina” – uma premonição sobre o futuro poder das milícias.

Nesta semana, quem mandou os escrúpulos às favas foi o senador/ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Carlos Fávaro (PSD-MT), que preferiu reforçar o abastecimento de votos nos “currais” eleitorais do agronegócio. Como se sabe, Mato Grosso concentra 41% da produção de grãos do país (parte sobre matas derrubadas do cerrado e da Floresta Amazônica, no norte do Estado) e, como dono do maior rebanho bovino do país, tem o boi como invasor silencioso de reservas florestais reservadas às tribos indígenas.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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