Contribua usando o Google
O caos que tem se verificado na região atendida pela empresa ao longo dos últimos tempos só reforça a crítica aos processos de privatização.
O processo de privatização do sistema de geração e transmissão de energia elétrica em São Paulo vem de longa data. O desenho institucional do modelo é complexo, envolvendo atribuições e responsabilidades compartilhadas entre as esferas do governo federal e estadual. Em 1981, o então governador nomeado pela ditadura militar, Paulo Maluf, criou uma empresa estatal paulista para se ocupar de todo o sistema elétrico ali existente – a Eletropaulo.
Ao longo dos anos os lobbies pela privatização da mesma foram crescendo e o caminho adotado pelos diversos governos passou pelo fatiamento da mesma. Em 2001 foi criada a AES Eletropaulo, posteriormente comprada pela ENEL em 2018. Assim, o grupo privado foi beneficiado pelo direito de permanecer operando o sistema até 2028, quando formalmente termina o contrato de concessão oferecida pelo governo federal.
A crise mais recente no fornecimento dos serviços essenciais para a população da capital paulista e demais municípios da região metropolitana de São Paulo trouxe para o centro do palco uma situação que já durava muito tempo. Têm sido recorrentes as falhas e interrupções no fornecimento de eletricidade para residências e empresas comerciais e industriais. Além disso, o próprio poder público municipal e estadual tem sido afetado negativamente pelas falhas de responsabilidade exclusiva da operadora privatizada.
Privatização da energia elétrica: o começo de tudo.
O órgão a quem cabe a incumbência da regulação do sistema elétrico em todo o território nacional é a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Ao longo dos últimos anos a agência vem aplicando diversas multas à ENEL, além de outras penalidades por descumprimento de determinações contratuais. A sequência de apagões verificados nos últimos dias é apenas uma das inúmeras ocorrências, com graves consequências para o bem-estar da população e para o funcionamento da economia na região. A insistência da empresa em não providenciar reparações e indenizações aos afetados se soma à postura passiva no sentido de criar procedimentos de prevenção para as sucessivas crises no fornecimento. A direção da ENEL faz cara de paisagem como se não tivesse nada ver com a crise e nada acontece.
O próprio governo estadual adotou medidas de penalização do grupo por conta de eventos que causaram prejuízos à população. Assim por exemplo, Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (PROCON/SP) aplicou multas à ENEL em razão da interrupção no fornecimento de energia elétrica. Porém, na crise atual, até mesmo a postura do prefeito da capital, Ricardo Nunes, também surpreendeu. Na corrida para sua reeleição, o político apoiado por Bolsonaro e pelas correntes políticas nitidamente conservadoras na região, terminou por denunciar a ENEL e passou a exigir do governo federal a suspensão do contrato de concessão.
A atividade de geração e transmissão de energia elétrica é considerada como um serviço público. Cabe ao Estado a regulação do setor e a decisão por conceder a empresas privadas ou estatais o direito de operar no sistema. Assim, o governo federal ainda mantém um importante poder de intervenção no modelo em vigor. Além de revogar ou não renovar uma determinada concessão, a União pode decretar uma intervenção para restabelecer as condições de normalidade no funcionamento do sistema e no fornecimento de serviços de eletricidade. É exatamente disto que trata a Lei nº 12.767/2012. O Capítulo II da mesma é dedicado ao tema: “Da intervenção para adequação do serviço público de energia elétrica”.
Lucros crescem e qualidade do serviço despenca.
A ENEL vem se esforçando ao máximo para desrespeitar os termos de seu contrato de concessão e não tem oferecido nenhuma demonstração de sua vontade e/ou capacidade em cumprir com suas obrigações perante a sociedade no que se refere ao fornecimento de energia elétrica. A empresa atende a um universo de 24 municípios do estado e deveria fornecer seus serviços para uma população de 18 milhões de habitantes. Isso significa que ela é responsável por suprir os serviços de eletricidade para mais de 40% do total da população paulista.
O caos que tem se verificado na região atendida pela empresa ao longo dos últimos tempos só reforça a crítica aos processos de privatização. A situação é particularmente ainda mais grave nos casos de venda de empresas prestadoras de serviços públicos. Trata-se da falácia do aumento de eficiência e da redução de tarifas que supostamente deveriam ocorrer quando da transferência do patrimônio público para a inciativa privada. No entanto, o que se verifica é o exatamente o oposto. As empresas sob a gestão privada buscam elevar sua rentabilidade por meio da redução de suas despesas (investimentos e qualidade dos serviços) e por meio de aumentos exorbitantes nos preços cobrados junto à clientela.
Apesar da piora significativa na qualidade do atendimento de suas funções básicas, os donos e os acionistas não têm muito do que se queixar. Enquanto a ENEL se recusa a prestar apoio e indenização aos seus clientes pela interrupção de fornecimento de energia elétrica, os seus lucros seguem de vento em popa. Apenas ao longo dos 3 primeiros trimestres deste ano, a empresa registro ganhos superiores a R$ 1,1 bilhão, um valor 28% mais elevado do que o lucro apurado para o mesmo período de 2022.
O mito de que a privatização provocaria aumento da concorrência e melhoria para os consumidores tampouco se verifica. Em casos como energia elétrica, saneamento e outros se mantém o monopólio na oferta do serviço. O usuário não tem como se conectar na rede elétrica do concorrente ou buscar o fornecimento de água na tubulação da empresa que lhe ofereça melhores condições. Além disso, mesmo quando existem condições de buscar opções de oferta, como no caso da telefonia celular, o modelo se ancora em regime de oligopólio entre poucas e gigantes operadoras.
Intervenção é a única solução!
Sob tais condições de desrespeito sistemático às cláusulas da concessão, caberia ao Presidente da República exercer seu papel de autoridade e decretar intervenção federal na ENEL São Paulo. Esta é a única maneira de assegurar à população atendida pela empresa a recuperação de sua dignidade e a melhoria das condições do serviço prestado. Esta tem sido, aliás, a tendência verificada em uma série de países que haviam optado, ao longo de décadas atrás, pela estratégia equivocada de privatização das empresas prestadoras de serviços públicos. Em vários países europeus esse processo tem sido revertido e tais grupos passam por um movimento de reestatização. Restabelecer a natureza pública da empresa é a única forma de solucionar a crise da ENEL. E seria uma ótima oportunidade para Lula colocar em prática o que prometeu na campanha eleitoral a respeito da Eletrobrás.
PAULO KLIASS ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.