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Em 2000 foi relançado o Grande Circo Místico, obra monumental de Chico Buarque e Edu Lobo. Edu me telefonou pedindo o texto de abertura
Em 2.000 foi relançado o Grande Circo Místico, a obra monumental de Chico Buarque e Edu Lobo. Para honra minha, Edu me telefonou pedindo que eu fizesse o texto de abertura.
Aceitei de pronto, conversei com ele sobre o processo de criação, depois, com Chico Buarque. E saiu a crônica abaixo, que era para ter sido lida por Marilia Gabriela na abertura do espetáculo. Mas ela precisou se apresentar no Rio, e o narrador foi Marcelo Bôscoli.
A mística do Grande Circo
Crônica de 5.11.2000
Tenho uma filha que se chama Beatriz. Quando Beatriz era apenas um passarinho prestes a nascer, em noites particularmente solitárias eu colocava o CD de “O Grande Circo Místico” no meu aparelho. A 350 km dali, a mãe de Beatriz fazia o mesmo. A voz de Milton Nascimento ia montando a estrada e moldando a bailarina, que ainda nem era Beatriz, mas apenas o passarinho prestes a nascer. E, depois que nasceu Beatriz, não a minha, mas a da canção, outras Beatrizes passaram a nascer em todos os Brasis, acompanhadas pelos versos de Chico Buarque de Holanda e pela canção de Edu Lobo. “Será que ela é moça / Será que ela é triste / Será que é o contrário / Será que é pintura / O rosto da atriz “.
A música “Beatriz” nasceu 15 anos antes da minha Beatriz, para o balé “O Grande Circo Místico”, encomendado pelo teatro Guayra de Curitiba. Algum tempo antes Edu Lobo havia composto para o balé o instrumental “Jogos de Dança”. Na segunda encomenda, pensou em algo que fosse mais que música instrumental e convidou Chico Buarque para letrista. Nahum Alves de Souza trouxe a idéia: basear-se em “O Grande Circo Místico”, de Jorge de Lima, um circo quase de sonho, de artistas que levitavam.
A poesia de Jorge de Lima era de 1938, inspirada em fato real acontecido no século passado na Áustria. Começava com: “O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps / Resolveu que seu filho também fosse médico / Mas o rapaz, fazendo relações com a equilibrista Agnes / Com ela se casou, fundando a dinastia do Circo Knieps”.
Do poema tiraram apenas a idéia e o nome de alguns personagens. Chico reinventou as histórias e, refundado, o “Grande Circo Místico” veio à luz no ano da graça de 1983, trazendo embaixo de suas lonas, de suas primas e bordões, o maior conjunto de obras-primas que a música brasileira já produziu para uma disco só.
Os dois autores começaram sua vida musical no teatro, Edu Lobo musicando “Arena Conta Zumbi”, de Gianfrancesco Guarnieri, e Chico Buarque, “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. O teatro sempre os fascinou, assim como o trabalho sob pressão. A adrenalina, o “deadline” são essenciais.
Primeiro, Chico e Edu sentavam para trocar idéias sobre o personagem e a música mais adequada. Edu ia para casa, preparava a melodia e enviava para Chico. Com a melodia gravada, Chico saía de walkman para andar a pé ou de carro, buscando o verso inicial, o sêmen que dispara a criação. Podia ser uma hora, podia ser uma semana, mas, encontrado o tema, o restante da letra vinha rapidamente. Depois, se sentavam para o arremate final, com poucas mudanças, um refrão repetido aqui, uma ênfase um pouco diferente da melodia ali, para se adequar à lógica da letra.
Foi assim que nasceu Lili Braun. Na poesia de Jorge de Lima era apenas uma menção; no balé, virou um blues. E assim foram nascendo a “Valsa dos Clowns”, a “Opereta do Casamento”, a “Ciranda da Bailarina”.
Beatriz foi concebida de uma só vez, em tarde de pura magia, mas levou algum tempo para ganhar forma definitiva. Edu sempre compôs cantarolando e se acompanhando ao violão. Em “O Grande Circo Místico”, pela primeira vez utilizou o piano. Nele, a melodia sai menos intuitivamente do que no violão, mas é mais inteligente, porque não limitada à extensão da voz. Primeiro vão se dispondo os acordes, um a um, como quem constrói uma pista musical. Depois, vai se buscar a melodia que se encaixe na estrada harmônica.
Cada pai experimenta o nascimento de mais um filho de maneira diferente. Chico é o pai coruja, Edu, o pai inseguro, que nunca está absolutamente certo de que fez uma boa composição e sempre precisa da opinião de terceiros para se garantir. Foi por isso que, ao mostrar “Beatriz” para Chico, não entendeu de pronto quando o parceiro ficou algo catatônico, olhando o vácuo como quem se depara com a Estrela de Belém e o Anjo da Anunciação. Levou algum tempo, depois de “Beatriz” composta, para se dar conta de que haviam criado uma das mais belas peças de toda a história da música brasileira.
E “Beatriz” revestiu-se de tal magia que, quando os autores me encomendaram o texto de abertura da remontagem do balé -que será relançado na próxima sexta feira, em São Paulo-, tenho cá comigo que sabiam que eu também tenho a minha Beatriz.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)