No dia 07/10, o mundo foi surpreendido pelo ataque extremista do Hamas à população civil de Israel. Imagens fortes registraram a brutalidade de uma ação ousada, que venceu facilmente as linhas defensivas do Estado Judeu, revelando fragilidades até então invisíveis e ostensivamente negadas pelo líder maior da nação, Benjamin Netanyahu, que balançava no cargo sob escândalos de corrupção. Mais de 20 dias depois dos ataques e em meio à dura contraofensiva de Israel, muitos ainda se perguntam: o que está acontecendo?
Considerando os números divulgados até aqui pelas respectivas autoridades envolvidas, o conflito entre o Hamas e Israel já produziu cerca de 10.000 mortos, a maioria civis. Para que o leitor tenha a dimensão deste número, segundo a ONU, em matéria publicada recentemente pela BBC, havia 9.177 civis mortos na guerra russo-ucraniana até agosto deste ano. Portanto, é fundamental entender o que está acontecendo no Oriente Médio, pois, além do drama humanitário vivido pelas populações locais, inclusive pelos reféns feitos de escudos humanos pelo Hamas, uma escalada do conflito pode trazer consequências imprevisíveis para o mundo.
Neste sentido, os estudos geopolíticos podem nos auxiliar a compreender o que está em jogo no Oriente Médio. Não, caro leitor, não temos uma explicação definitiva ou infalível sobre o conflito judeu-palestino. Também não estamos no terreno da adivinhação, no “mundo dos espíritos” ou com “visão além do alcance”. Mas, em uma análise de três níveis, local, regional e global, podemos, com as informações disponíveis, montar um quadro relativamente abrangente, capaz de guiar reflexões e escolhas em um cenário polarizado, no qual paixões e interesses estão imbricados em um longo conflito étnico-político, que, a depender do referencial adotado, pode remontar à tradição abraâmica.
Em nível local, imediato, o conflito judeu-palestino foi motivado pelo então iminente acordo entre Israel e Arábia Saudita, patrocinado pelos EUA. Diferente de países como Bahrein e Marrocos, com os quais acordos similares foram firmados, os sauditas são ricos, poderosos e fiéis depositários das mais caras relíquias do Islã, como a Caaba, além de abrigar as cidades sagradas de Meca e Medina. Deste modo, se o Profeta tivesse uma nacionalidade, como hoje concebemos, ele seria saudita. Por isso, o acordo entre Arábia Saudita e Israel ampliaria a legitimação do Estado Judeu no Oriente Médio, alijando os palestinos das discussões relativas ao seu próprio destino. Essas são realidades que o Hamas não pôde admitir. Sem desejar dar respostas simples para questões complexas, podemos dizer que foi para recolocar a questão palestina no centro da agenda política internacional e impedir que a Arábia Saudita fizesse um acordo com Israel, que o Hamas perpetrou um dos mais duros ataques já sofridos pelo Estado Judeu em seus 75 anos de existência.
Em nível regional, mediato, o conflito judeu-palestino expressa as disputas teológicas e políticas que existem no coração do Islã. A Arábia Saudita é um país de maioria sunita e disputa a hegemonia do Islã com o Irã, de maioria xiita. O acordo judeu-saudita amplia o poder da Arábia Saudita (apoiada pelos EUA, que possui bases militares em seu território) no Oriente Médio e fortalece sua proeminência religiosa e política, enfraquecendo relativamente o Irã (aliado da Rússia e da China), em tese o arquiteto oculto dos ataques do Hamas contra Israel.
Mas há outras peças nesse tabuleiro. O Hamas é um grupo sunita, oriundo da Irmandade Muçulmana, e que governa a Faixa de Gaza desde a retirada das forças israelenses, há aproximadamente 20 anos. Em sua origem, nos anos 1980, estima-se que o Hamas contou com o incentivo da direita-israelense, que desejava enfraquecer a Autoridade Nacional Palestina (ANP), sob a liderança de Yasser Arafat. Já o Irã, como dito, é um país de maioria xiita, que disputa fé e poder com os sauditas. Ora, se o Hamas é um grupo sunita, por que o Irã o apoia?
O Irã sabe que a doutrina político-militar predominante em Israel está centrada no fato de que toda e qualquer agressão ao Estado Judeu será retaliada com força e intensidade maior do que a própria agressão. Trata-se de um imperativo dissuasório, com o qual Israel busca evitar a reedição das guerras árabes-israelenses, protegendo sua população e sua própria existência. Logo, não é novidade que a resposta judaica a qualquer ataque ao seu território seria brutal. O Hamas sabia disso, mas, pelos motivos acima expostos, “dobrou a aposta” e massacrou civis israelenses. Na conta do Hamas, trata-se de um ato de autosacrifício, que visa a mobilizar a população da Faixa de Gaza e seus apoiadores contra aquilo que consideram o apartheid palestino, povo que, sob o jugo judeu, sofreria uma diáspora forçada, pela apropriação colonial do seu território, quando não um processo de genocídio. Já na conta do Irã, possivelmente estão a destruição do Hamas pelos judeus e a possível ascensão de uma liderança xiita em Gaza. Esta nova liderança poderá ser o Hezbollah. Trata-se de um grupo paramilitar xiita, financiado por governos árabes e por muçulmanos das diásporas, que está enraizado em países como Irã e Líbano, além da Cisjordânia, área sob controle da ANP, hoje considerada corrupta e débil aos olhos dos palestinos da Faixa de Gaza, em particular os mais jovens e radicalizados.
Mas é em nível global, ou mundial, que o jogo geopolítico se agiganta. Após o fim da Guerra Fria, a potência desafiante dos EUA é a China, não a Rússia, cada vez mais deslocada para a órbita de Pequim, inclusive pelos “equívocos” estratégicos da OTAN, que levaram ao conflito russo-ucraniano. Assim, é importante que o leitor veja o centro da Eurásia, formado pela Europa Oriental e pela Ásia Ocidental (ou Oriente Médio), como o cerne das disputas sino-americanas. Não por outro motivo os dois grandes conflitos atuais, protagonizados por russos e ucanianos, bem como por judeus e palestinos, estão no coração eurasiático.
Neste contexto, qual é o jogo das superpotências? China e EUA disputam palmo a palmo a hegemonia global no século XXI, ao longo do qual a economia chinesa deverá desbancar a estadunidense. Portanto, seja no campo das patentes científico-tecnológicas, seja no campo das finanças ou do comércio, a disputa sino-americana salta aos olhos no âmbito das relações internacionais. No centro da Eurásia, região estratégica para qualquer aspiração hegemônica, a iniciativa comercial de maior destaque é a Nova Rota da Seda, de 2013, que visa (re)conectar a China à Europa, passando pela Eurásia e pela África. Em resposta, os EUA lançaram, em setembro de 2023, uma nova rota comercial, para unir a Índia à Europa, passando pela Eurásia. Por paradoxal que seja, amigo leitor, China e Índia, parceiros no BRICS, como o são Arábia Saudita e Irã, são duros rivais estratégicos na Ásia.
Além disso, China e EUA também disputam hegemonia militar. Não por outro motivo, para além de orçamentos e forças crescentes, as superpotências também se movimentam no conflito entre palestinos e judeus. Ostensivamente, os EUA são os fiadores da contraofensiva israelenses e da existência do Estado Judeu. Igualmente, fazem inúmeros movimentos políticos pró-Israel, como o veto à resolução do Conselho de Segurança da ONU, que, negociada pelo Brasil, visava permitir a chegada de ajuda humanitária aos palestinos e apontar para um cessar-fogo próximo-futuro. Além disso, os EUA fixaram uma expressiva força naval no Mediterrâneo Oriental para apoiar as ações bélicas de Israel contra o Hamas. Por seu turno, discretamente, a China também posicionou forças navais no Golfo de Omã, na embocadura do Golfo Pérsico, onde, em março deste ano, realizou exercícios navais conjuntos com Irã e Rússia. Embora um confronto sino-americano seja hoje uma hipótese descartável, o apoio militar e logístico sino-russo à resistência palestina poderá ser uma realidade, principalmente se países como Líbano, Irã e Turquia estiverem envolvidos num conflito em escalada. Daí o posicionamento estratégico das forças navais chinesas.
Por tudo isso, expressões como “nova guerra fria”, no que tange às disputas entre China e EUA, ou “um novo Vietnã”, no que se refere à iminência de duros conflitos urbanos, homem a homem, entre palestinos e israelenses em Gaza, não são absurdas. Igualmente, conhecer o jogo geopolítico é importante para o leitor entender aquilo que muitas vezes “a TV não mostra”. Mas é ainda mais importante para que se possa escolher cursos coerentes de ação. Afinal, não há alternativa que não seja a paz.
A despeito das razões, dores ou interesses de parte a parte, o conflito judeu-palestino deve cessar, consolidando, no médio prazo, um Estado Palestino que deverá coexistir pacificamente com Israel, a pátria necessária dos judeus. Se é verdade que só o poder limita o poder, a sociedade internacional deve se “armar” pela paz. O Brasil, embora não atingido diretamente pelo conflito em Gaza, já entendeu essa realidade e, por sua diplomacia, tem buscado ajudar no restabelecimento da paz. Para o Brasil e para os brasileiros, mais do que tornar partido ou polarizar o conflito, transpondo-o muitas vezes de forma banal para as tensões domésticas entre “esquerda e direita”, como fazem muitos “especialistas” do zap, zap, interessa promover a paz. Afinal, somos todos humanos e precisamos viver em paz.
Lier Pires Ferreira. PhD em Direito. Professor do Ibmec. Pesquisador do LEPDESP/UERJ e do NuBRICS/UFF.
Renata Medeiros de Araújo. Mestre em Ciência Política. Advogada.