Documentário da Al Jazeera censurado após pressão de Israel mostra como o lobby do país exerce influência em Washington.
OS DEFENSORES DO GOVERNO DE ISRAEL não querem que você saiba que ele tem um grande flanco aberto: o apoio dos Estados Unidos.
E é por isso que, quando um jornalista disfarçado da Al Jazeera se infiltrou em organizações influentes do lobby israelense junto ao governo americano, acabou provocando um incidente diplomático internacional.
A atual campanha de Israel de assassinato em massa e punição coletiva de civis em Gaza terminaria em um instante com a palavra de um homem: o presidente dos EUA, Joe Biden. O apoio incondicional da superpotência global é essencial para perpetuar a ocupação israelense e sua máquina de guerra diante da esmagadora oposição internacional. Como resultado, surgiu um grande setor para perpetuar essa aliança por meio do lobby político e midiático, além da articulação de um ativismo nada orgânico. Assine nossa newsletter gratuitaConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entradaAceito receber e-mails e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso.
Em 2016, James Kleinfeld, um jovem britânico judeu, se infiltrou entre os principais atores do lobby pró-Israel fingindo ser um ativista sionista francês chamado Tony. Ele rapidamente ganhou a confiança de líderes influentes.
Ele os filmou falando francamente sobre como manipulam a opinião pública, fabricam escândalos de antissemitismo, criam protestos astroturf (ou seja, pagam pessoas para participar de protestos, fazendo com que pareçam espontâneos e populares), coletam informações de inteligência em nome do governo israelense sobre cidadãos norte-americanos comuns e criam sites anônimos para atacá-los com difamações e táticas sujas.
Certas atividades reveladas por Kleinfeld podem ser vistas como comportamento criminoso, incluindo espionagem para um governo estrangeiro e violação da legislação de arrecadação de fundos para campanhas eleitorais.
Uma investigação secreta simultânea sobre o lobby de Israel no Reino Unido foi publicada pela Al Jazeera em janeiro de 2017. Essa série incluía imagens obtidas por Kleinfeld em Washington de ativistas britânicos, o que levou os americanos a descobrirem sua verdadeira identidade.
Quando os grupos de lobby perceberam que Kleinfeld era um repórter clandestino e não um jovem militante sionista, houve um pânico interno e, em seguida, um plano foi posto em prática.
Figuras proeminentes das comunidades pró-Israel dos Estados Unidos viajaram para Doha, a capital do Catar, e se reuniram com o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, o emir do país. Discutiram com ele a censura da série de documentários. Esses emissários incluíram Alan Dershowitz, advogado pessoal de Donald Trump e do falecido investidor pedófilo Jeffrey Epstein.
Assine agora o abaixo-assinado para que a Globo e o resto da grande mídia parem de desumanizar civis palestinos
Ameaças à segurança nacional do Catar também foram, supostamente, feitas por proeminentes lobistas pró-Israel: as forças militares dos EUA sairiam de sua base no Catar — o único financiador da Al Jazeera — se o documentário fosse ao ar. O governo do Catar negou exercer qualquer influência sobre a rede, que afirma ser totalmente independente do ponto de vista editorial.
No final, o documentário, “The Lobby – USA”, nunca foi publicado pela Al Jazeera, e “preocupações com a segurança nacional” teriam sido um dos motivos apresentados internamente para justificar a decisão. O filme foi rapidamente vazado para a Electronic Intifada, uma redação digital pró-Palestina, que o publicou no YouTube em 2018.
James Kleinfeld e a equipe da Unidade de Investigação da Al Jazeera deveriam ter ganhado o prêmio Pulitzer por “The Lobby – USA”. Em vez disso, o documentário foi censurado e virou o foco de um incidente diplomático internacional. Os jornalistas, por sua vez, foram alvos de intimidação e difamação.
É assim que o lobby opera. Foi isso que Kleinfeld e sua equipe se propuseram a revelar, sem nunca esperar se tornar a próxima vítima de sua imensa máquina de influência, que reverbera até no Brasil.
Na última semana, mostramos como nossa grande mídia tem um viés pró-Israel e sistematicamente ignora as vozes palestinas. Muito já foi escrito sobre esse assunto, mas achamos que não há melhor fonte para entender o funcionamento interno do lobby por trás desse fenômeno do que “The Lobby – USA”.
Hoje, o Intercept Brasil está publicando pela primeira vez uma tradução em português do primeiro episódio da série “The Lobby – USA”. Os outros três episódios serão publicados nos próximos dias. Recomendo enfaticamente que você assista a todos os quatro episódios.
Al Jazeera é atacada por cobertura do conflito Israel-Palestina
A Al Jazeera, fundada em 1996, é uma emissora estatal da nação do minúsculo estado árabe do Catar que opera em árabe e inglês, com uma subsidiária que publica em vários idiomas dos Bálcãs.
A rede tem sido uma fonte importante de reportagens sobre Israel e Palestina, sem a autocensura generalizada que permeia o restante da grande mídia em inglês. É por isso que o canal foi bloqueado pelos principais provedores de televisão a cabo nos Estados Unidos.
Os jornalistas da Al Jazeera também foram alvos diretos de ataques militares e políticos de Israel e dos Estados Unidos desde os primeiros dias da chamada “guerra global ao terror”. O FBI apreendeu um servidor da Al Jazeera no estado americano do Texas em setembro de 2001.
Seu escritório em Cabul foi destruído em um ataque de mísseis dos EUA no início da invasão do Afeganistão, em novembro daquele ano. O canal foi banido por Arábia Saudita, Kuwait e Bahrein em 2002 por causa de sua cobertura.
Em 2003, o escritório de Bagdá foi bombardeado pelo governo dos EUA, matando um repórter. A rede foi repetidamente perseguida pelo governo iraquiano, apoiado pelos EUA durante os primeiros anos da ocupação do Iraque. Seu escritório em Gaza foi bombardeado por Israel em maio de 2021.
Um ano depois, um atirador israelense atirou e matou a aclamada correspondente Shireen Abu Akleh na Cisjordânia ocupada, e seu funeral foi atacado pelas forças de segurança israelenses.
Em 2015, reportei no Intercept como a Agência de Segurança Nacional dos EUA rotulou erroneamente Ahmad Muaffaq Zaidan, o principal correspondente da rede no Paquistão, como terrorista da Al Qaeda e espionou seus movimentos e comunicações.
A rede é comparável à BBC, veículo com financiamento do Reino Unido, pois se orgulha de sua independência editorial, mas suas reportagens geralmente refletem as posições geopolíticas de seu único financiador.
Em casos específicos, como a censura do “The Lobby – USA”, essa independência editorial tem causado grandes dores de cabeça ao Catar. Outras coberturas levaram a sérias ameaças políticas à nação, como a crise diplomática que o Catar viveu de 2017 a 2021: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito cortaram relações diplomáticas com o Catar e impuseram sanções econômicas limitadas, devido ao seu apoio a organizações políticas que se opunham a essas nações. Uma das exigências foi o fechamento da Al Jazeera, que não ocorreu.
Estados Unidos dá apoio incondicional e multibilionário a Israel
Os Estados Unidos forneceram 158 bilhões de dólares em ajuda externa a Israel desde 1951 – valor não ajustado pela inflação – e tecnologias militares avançadas. Tão importante quanto isso é o fato de usarem seu poder global para oferecer proteção diplomática essencial a Israel, incluindo o veto a qualquer resolução da ONU que condene o desrespeito arbitrário de Israel às leis internacionais.
Nos últimos dias, Biden prometeu que enviaria mais armas e fundos para Israel e ofereceu apoio incondicional. O Departamento de Estado dos EUA emitiu diretrizes internas ordenando que a equipe não apoiasse, de forma alguma, um pedido de cessar-fogo e paz.
A defesa vai muito além do financiamento da guerra. O Departamento de Comércio dos EUA mantém até mesmo um Escritório de Conformidade Antiboicote criado especificamente para impossibilitar a participação em protestos econômicos não violentos contra Israel apoiados por nações estrangeiras. O escritório aplicará multas a qualquer empresa com operações nos EUA que cooperar.
Uma empresa de propriedade dos EUA foi multada em 88,5 mil dólares em 2010, por exemplo, por declarar em um formulário alfandegário que “embarcação transportadora […] tem permissão para entrar nos portos da Líbia”. Isso porque, na época, a Líbia não permitia que mercadorias ou navios israelenses que haviam parado anteriormente em Israel entrassem nos portos líbios. Portanto, a declaração banal foi considerada um apoio criminoso a um boicote a Israel.
O primeiro episódio da série censurada por Israel
A primeira parte de “The Lobby – USA” revela como representantes do governo israelense e de outros grupos pró-Israel nos EUA atuam para estrangular o movimento pró-Palestina Boicote, Desinvestimento e Sanções em um campus universitário da Califórnia.
O BDS, como é conhecido, foi criado por palestinos e adota práticas não-violentas para militar pelos direitos humanos básicos dos palestinos – como a aplicação de adesivos pedindo boicote a produtos israelense em supermercados. É uma atuação inspirada por ativistas que se levantaram contra o apartheid na África do Sul.
Os estudantes universitários do movimento BDS são considerados uma ameaça tão grande pelo estado de Israel, porém, que viraram alvo de uma “campanha psicológica envolvendo espionagem e difamação”, como resume o narrador da série. Ou, nas palavras dos lobistas, gravadas em segredo, de “uma campanha para desacreditá-los como um grupo de ódio”.
A ofensiva contra o BDS envolve atores graúdos, como a embaixada israelense nos EUA e até ministérios de Israel. “Ninguém sabe realmente o que estamos fazendo. Mas tem sido principalmente pesquisas, monitorar o BDS e relatar tudo ao Ministério das Relações Exteriores”, afirmou Julia Reifkind, então diretora de Assuntos Comunitários da embaixada, gravada em segredo pelo jornalista James Kleinfeld.
Hatem Baziam, um dos fundadores do grupo Estudantes pela Justiça na Palestina, resumiu em uma entrevista: “Estamos lidando com um governo que tem um ministério engajado no ataque sistemático de ativistas fora de suas fronteiras”.
A diretora geral do Ministério de Assuntos Estratégicos de Israel, Sima Vaknin-Gil, foi clara em um evento: “Se você quiser ganhar uma campanha, é necessário ter superioridade informacional. E este é exatamente o valor agregado das capacidades de Israel”, afirmou.
Essa guerra informacional é, muitas vezes, articulada nos bastidores. O The Israel Project, por exemplo, trabalha para que a mídia amplifique e repita suas mensagens e neutralizar narrativas indesejadas.
O governo de Israel, porém, já deixou claras suas intenções de derrotar o BDS e os meios escusos a que recorre para isso: a espionagem de cidadãos norte-americanos. Apesar disso, o governo dos Estados Unidos não parece preocupados e segue dando apoio incondicional a Israel.
“Não ouvimos um pio de nenhum governo ocidental reclamando que Israel está admitindo que vai espionar seus cidadãos”, criticou Omar Barghouti, cofundador do BDS. “Imagine o Irã dizendo que vai espionar cidadãos britânicos ou norte-americanos. Só imagine o que poderia acontecer”.
ANDREW FISHMAN ” THE INTERCEPT” ( BRASIL)