O REI PORTUGUÊS DA BIRMÂNIA

Meses antes de morrer de tuberculose, muito jovem, aos 46 anos, em janeiro de 1950, um dos mais consagrados escritores europeus do século XX, o inglês George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, publicou o clássico Nineteen Eighty-Four, ou seja, 1984, obra prima do pessimismo aos despóticos regimes, comandados pelo ‘Grande Irmão’, que provocariam a Segunda Guerra (1940 – 1945) – e que haviam permeado quase toda sua trajetória literária de militância esquerdista, porém, profundamente antissoviética. Sobretudo em dois trabalhos anteriores: Homage to Catalonia (Homenagem a Catalunha), lançada em 1938, nos derradeiros meses da Guerra Civil espanhola (1936 – 1939), onde bateu-se, em Barcelona, ao lado dos milicianos trotskistas catalães do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), e Animal Farm (A Revolução dos Bichos), de 1945, na qual usa a sátira para denunciar a tirania comunista de Moscou.

Marcante, igualmente, foi sua trama de estreia, Burmese Days (Dias na Birmânia), editado em 1934, sete anos após o seu retorno a Londres da antiga colônia na Ásia, tendo sido oficial da Polícia Imperial Indiana, lá, de 1922 a 1926, quando o atual país ainda era parte integrante da Índia – como o Paquistão e o Bangladesh. Foi o primeiro grande romance ocidental ambientado na Birmânia, independente desde 1948, passando a se chamar Myanmar, em 2011, por decisão da ditadura militar que dominava a nação. Orwell nascera em Motihari, na região indiana do Golfo de Bengala, próximo à Birmânia, que possui mais de 90 por cento de sua população de fé budista, como o vizinho Nepal – e, ao contrário de Bangladesh, outro confinante, predominantemente muçulmano.

A narrativa birmanesa de Orwell faz referência, à presença dos exploradores portugueses que, no século XVI, conduzidos pelo lisboeta Felipe de Brito (1566 – 1613), pacificou vastas áreas do território e chegou a ser coroado pelos nativos como Rei do Pegu ou do Sirião, isto é, soberano daquelas terras. Inclusive o nome Birmânia foi dado pelos portugueses. Felipe de Brito, que ilustra a coluna, montado em um elefante, aparece na História birmanesa com o título dinástico de Nga Zingar.  

Outra obra em língua inglesa de fôlego enfocando a Birmânia, Cannon Soldiers of Burma, ao pé da letra, Canhoneiros da Birmânia, publicada em 2014, de autoria do pesquisador birmanês James Myint Swe, de 72 anos, projeta luz sobre a influência dos lusos no país asiático – onde aportaram entre 1510 e 1512. O título faz referência aos inúmeros portugueses que, guiados por Felipe de Brito e seus descendentes, lutaram pela Birmânia, muitas vezes como mercenários, contra o domínio dos marajás da Índia. Natural de Ye U, ao Norte, mas formado em Ciência Política na prestigiosa Universidade de Western Ontário, no Canadá, Myint Swe ressalta no seu trabalho a existência, ao Norte, de inteiras populações que reivindicam a origem portuguesa e são denominados pelos próprios compatriotas de ‘o povo de olhos verdes’. É uma nítida alusão à lusitanidade, principalmente nas comunidades ‘beyngys’, de cabelos e peles claras e, ademais, praticantes do Catolicismo – cerca de cinco por cento de 51,5 milhões de habitantes se mantêm fiéis ao Sumo Pontífice de Roma.

Levantamentos realizados pelo estudioso em Goa, metrópole do Império Português do Oriente, à qual estava vinculada a Birmânia, indicam, também, que inúmeros são os birmaneses a preservar, transcorridos mais de 500 anos do desembarque de conquistadores e mercadores de Lisboa, afinidades com o imaginário luso. “Não se sabe ao certo a dimensão dos povos de olhos verdes”, afirmou o autor do livro ao semanário lisboeta Mundo Português: “São aproximadamente 200 a 300 por aldeia, o que nas localidades maiores poderá atingir duas a três mil”. Myint Swe informou que as autoridades de seu país estão a tentar fazer um censo para identificar quantas pessoas vivem naqueles lugarejos. “É extraordinário que, na mesma zona onde os portugueses se estabeleceram, no ano 1633, em Ye U, minha cidade natal, os moradores continuem a sentir-se portugueses”, disse o escritor.

Curiosamente, os propalados modos brandos portugueses devem ter incentivado a pacífica convivência entre seus descendentes católicos de ‘olhos verdes’, liderados nos primeiros tempos pelo Rei Nga Zingar, e a maioria budista – o que despertaria atenção do então policial britânico Orwell. Justamente o oposto do que acontece até hoje com outra minoria, a islâmica, proveniente de Bangladesh, representando de quatro a seis por cento dos habitantes – e que se mantém em permanente hostilidade com os seguidores da filosofia budista. Conflitos que se perdem na noite dos séculos.

ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL / PORTUGAL)

Albino Castro é jornalista e historiador

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