DUAS VITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

Os fatos políticos desta semana reafirmaram duas grandes vitórias da Constituição de 1988 em nome do respeito aos ritos democráticos e à restauração do Estado Democrático de Direito. No próximo dia 5 de outubro, a “Constituição Cidadã”, conforme a definição emocionada do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, cujo belíssimo e vibrante discurso assisti presencialmente no Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, completa seus 48 anos. É um dos mais longevos períodos de plenitude democrática da vida política brasileira.

Mas parece que foi ontem. Ainda reverberam nos ouvidos dos que têm um mínimo de prurido democrático, as palavras do saudoso Dr. Ulysses, o “senhor Diretas”, que em nome do pragmatismo da volta possível ao Estado Democrático de Direito, após a derrota da Campanha pela Eleição Diretas-Já, em 1984, teve de aceitar a candidatura indireta de Tancredo Neves, com a promessa de convocação da Constituinte. Disse o Dr. Ulysses sábias palavras:

– A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de luta e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina – afirmou.

Confesso que, ao reler o texto que trouxe para esta coluna, senti um tremor, um fervor cívico que não tinha alcançado na “juventude” dos meus 38 anos.

A força da Democracia

Os acontecimentos desta semana reforçaram a força da Democracia, cujos amplos propósitos estão definidos na Carta de 1988. O Supremo Tribunal Federal, como representante do Poder Judiciário, tem desempenhado com rigor e altivez seu papel chave de guardião da Constituição e do Estado Democrático de Direito. Vários ministros passaram pelas 11 cadeiras do Supremo deste então. Uns honrando mais que outros(as) as suas responsabilidades. Na semana em que a presidente do STF, ministra Rosa Weber, encerra sua jornada no STF, pois atinge a idade da aposentadoria compulsória (75 anos) no dia 2 de outubro, cedendo a cadeira de presidente, pelos próximos dois anos, ao vice-presidente, ministro Luís Roberto Barroso, o Supremo Tribunal Federal voltou a se postar como guardião da Democracia. A democracia é uma bela flor a qual só damos valor quando a perdemos.

O rigor do STF ao reagir, sob a liderança do ministro Alexandre de Moraes, que aglutinou em torno das investigações sobre as “fake news”, a todas as mais variadas tentativas de supressão do Estado Democrático de Direito, resultou nos inquéritos que a Polícia Federal, por instrução da Procuradoria Geral da República, está conduzindo sobre o papel de cada um dos 1.125 detidos na última das tentativas de provocar o caos político em Brasília, com a invasão e depredação das sedes dos três Poderes da República, no 8 de janeiro – as sedes do Executivo (Palácio do Planalto), do Legislativo (Congresso e plenários da Câmara e Senado) e mais o Judiciário (prédio do Supremo Tribunal Federal) – foi exemplar. Já ocorreram as primeiras e pesadas quatro condenações em julgamentos individuais, com penas até 17 anos. Outros 301 indiciados já manifestaram desejo de acordo no julgamento por voto eletrônico.

Apuração de responsabilidades

Falta, no entanto, o mais importante: separar a responsabilidade daqueles que atuaram como massa de manobra – embora alguns tenham ido longe demais, como os envolvidos na tentativa de explosão, com bomba, de um caminhão tanque de querosene de aviação num sábado de novembro no Aeroporto de Brasília – daqueles que foram os financiadores e mentores dos atos contra a democracia em nome da implantação de uma ditadura militar no país sob o controle das Forças Armadas e, se possível, com Jair Bolsonaro no comando.

As supostas confissões, em acordo de leniência com a Polícia Federal, homologado pelo ministro Alexandre de Moraes, do ajudante de ordens do gabinete da Presidência da República, tenente-coronel Mauro Cid, prometem facilitar, nas investigações e oitivas para confirmar o que disse o militar, o real envolvimento das altas patentes militares. A reunião, convocada por Bolsonaro com o alto comando das forças armadas, teria ocorrido em 24 de novembro. O jornal “Folha de S. Paulo” publicou sábado, em detalhes, alguns dos bastidores das reuniões que antecederam este 24 de novembro. Daria um filme.

Uma revelação engraça – mas sutil – foi o aviso, pelo zap, ao ministro Alexandre Moraes, que há mais de dois anos fazia musculação na Academia do QG do Exército, o famoso “Forte Apache”, diante do qual acampavam hordas de futuros golpistas, de que “a Academia entraria em obras pelos próximos dois meses”. Moraes, que não é bobo, guardou a senha e o login.

Já escrevi aqui há alguns meses para louvar o papel legalista dos generais quatro estrelas Tomás Paiva (atual comandante do Exército), que então chefiava a região militar do Sudeste, Fernando Soares, que comandava o Sul, e Ricard Nunes, que comandava o Nordeste, e fizeram chegar ao então comandante do Exército, general Freire Gomes, entre o 1º e o 2º turno, quando se consumou a derrota de Bolsonaro, que não mobilizariam as tropas numa investida para declarar nulo o resultado das urnas, que supostamente ainda incluía um decreto de prisão do presidente eleito Lula e dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal.

Freire Gomes, que foi substituído por Tomás Paiva no fim de janeiro, após o fracassado golpe de 8 de janeiro, quando alas do Exército fizeram corpo mole e o próprio comandante resistiu a remover os acampamentos dos radicais bolsonaristas que pediam intervenção militar entre novembro e dezembro, foi quem teria transmitido ao presidente da República, comandante em chefe das Forças Armadas, nesta reunião de 24 de novembro, a oposição da maior força do país a um golpe. O ministro da Marinha, almirante Almir Garnier, teria se alistado imediatamente às intenções golpistas de Bolsonaro. Já o brigadeiro Carlos Batista, da Aeronáutica, ficou calado (mas, como diz o ditado, quem cala, consente).

Tudo precisa ser esclarecido, incluindo a posição dos generais e almirantes que cercavam, em trajes civis, o ex-presidente Bolsonaro no Palácio do Planalto (e depois da derrota, no Alvorada). A saber, o general Braga Neto, que deixou o Ministério da Defesa, em abril, para compor a chapa eleitoral como candidato a vice. Seu sucessor, o ex-comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, que fez a maior carga contra as urnas eletrônicas. O general Augusto Heleno, ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – sem esquecer que o general Heleno já conspirou, em pleno regime militar, com o então ministro do Exército, Sylvio Frota, a quem servia como ajudante de ordens, para depor o presidente da República, general Ernesto Geisel, em outubro de 1977. O feitiço virou contra o feiticeiro. Geisel neutralizou o golpe, convocando os generais do comando do Exército e demitiu o general Frota.

Falta averiguar a responsabilidade do general Luiz Eduardo Ramos, que ocupou os mais variados ministérios. Líder da Brigada de Paraquedista (arma de Bolsonaro ao ser expulso do Exército, em 1988), a brigada sempre liberava uma tropa de choque de se infiltrava vestida de preto em vários comícios e arruaças promovidas por Bolsonaro desde 2021. O objetivo era insuflar o caos, para, com o acionamento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), deixar o país sob o comando das Forças Armadas. E ainda o almirante Flávio Rocha.

Bola fora de Múcio

Diante da reação da sociedade civil e dos poderes que zelam pela Constituição soou muito mal a tentativa apaziguadora do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de creditar ao espírito legalista das Forças Armadas a manutenção da democracia no país. Não, o país não está hoje mergulhado em uma ditadura como uma republiqueta latino-americana porque as forças democráticas da sociedade civil reagiram.

A começar pela imprensa que expôs à farta as arruaças da noite de 12 de dezembro, quando após a promulgação da eleição de Lula e Alkimin pelo STE, homens de preto lideraram um quebra-quebra na Esplanada dos Ministérios, com incêndio de automóveis e ônibus e depredação de uma delegacia do DF, e mais a invasão da portaria da Polícia Federal. O Supremo sempre esteve vigilante, avocando para as asas do ministro Alexandre de Moraes (mais prevenido do que nunca) a extensão destas investigações, face sua conexão com todo o arcabouço de golpe desenhado desde a eleição.

A própria organização da campanha de Luís Inácio Lula da Silva teve papel preventivo contra a tentativa de golpe ao acionar as chancelarias das nações de maior influência política-democrática no mundo – em especial os Estados Unidos, México, Canadá, as nações da União Europeia, o Japão – para que dessem imediato reconhecimento ao vencedor do processo eleitoral, o que desarmou os espíritos. Emissários das Forças Armadas dos EUA disseram aos comandos militares que o governo Biden não apoiaria nada fora da ordem Constitucional e das regras eleitorais. Por isso, Biden e os dirigentes europeus parabenizaram Lula pela vitória minutos após o TSE proclamar o resultado.

Quem era o cabeça?

Cabe, portanto, para a Constituição de 1988 prevalecer, estabelecer e punir a efetiva e inegável responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro no “start” do golpe. Se o golpe tivesse prevalecido, certamente outra determinação da Constituição – o direito natural dos povos indígenas, que estavam no Brasil antes do Descobrimento e na expansão territorial que dobrou a área inicial do Tratado de Tordesilhas -, reafirmada por 9 x 2 pelo Supremo Tribunal Federal, seria letra morta. Se depender dos trogloditas que depredam as terras indígenas e as reservas florestais, seria restabelecido o sistema de donatários de Capitanias Hereditárias, com farta distribuição de sesmarias, sem qualquer preocupação com o meio ambiente e os povos originários.

Bolsonaro alega que sempre jogou “dentro das quatro linhas da Constituição”. O VAR diz que não. Ou melhor, uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) mostra que afora minar as urnas eletrônicas, nem as regras eleitorais foram respeitadas. A administração usou farta distribuição de verbas públicas para aliciar eleitores a votar na reeleição do presidente, com o aumento do Auxílio Emergencial de R$ 400 para 600 mensais, de julho a setembro, além da distribuição de R$ 1 mil a taxistas e caminhoneiros, no mesmo período.

Segundo a CGU, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro liberou 84% de todo o recurso de auxílios financeiros durante o período eleitoral de 2022. No período de agosto a outubro, até o final do 2º turno, a gestão Bolsonaro pagou R$ 9,77 bilhões do total de R$ 11,65 bilhões previstos no ano em empréstimos consignados do Auxílio Brasil, do Auxílio Caminhoneiro e do Auxílio Taxista, impactando 3,7 milhões de pessoas/eleitores.

Para o ministro da CGU, Vinícius de Carvalho, os relatórios indicam, “um claro uso desses instrumentos de maneira inadequada durante o período eleitoral”. Um dos usos mais escandalosos foi a abertura pela Caixa Econômica Federal dos empréstimos consignados aos beneficiados do Auxílio Emergencial (com prazo até 31 de dezembro, assim como o Auxílio Taxista e o ao Caminhoneiro).

Foi uma farra tremenda para cooptar o eleitor (os que iam votar em Lula na Bahia e no Nordeste eram barrados em morosas revistas da Polícia Rodoviária Federal). No caso do Auxílio Taxista, quase oito em cada dez dos 246 mil beneficiários (78%) estavam foram do perfil. Pessoas que nem tinham carteira de motorista receberam o recurso. Só desse benefício foram R$ 1,4 bilhões enviados. No somatório total, foram R$ 1,97 bilhão em potenciais pagamentos indevidos de todos os benefícios. E ainda assim, deu Lula. E a Constituição.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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