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A geopolítica por trás da dolarização da Argentina III
A dolarização da Argentina seria, portanto, um enclave hegemônico na aliança alternativa à imposta no fim da II Guerra
Antes de entrar no assunto, é preciso ter em mente de que, quando se fala em qualquer aspecto da vida social, o poder é o centro da discussão. Da forma mais primária, fala-se do pátrio/mátrio poder que é o exercido na família. Os mineiros dizem que “fulano pode muito”, se for rico, e “cicrano pode pouco”, se for pobre. Quando o assunto é o dinheiro, a referência é o poder aquisitivo da moeda. A opção pelo curso legal de uma moeda estrangeira representa abrir mão de uma parcela importantíssima da soberania nacional, consequentemente, do poder do Estado, cuja chefia de governo Milei pretende deter para si. Como ninguém abre mão gratuitamente de qualquer parcela de seu poder, sendo a dolarização a corrosão da maior parte do poder de mando do presidente, é preciso que haja um grupo muito forte, muito mais forte do que ele próprio, a beneficiar-se de medida tão extrema. Essa fonte de poder não está necessariamente em território argentino.
A campanha pelo Brexit, que tirou o Reino Unido da União europeia em 2016, o que só se veio concretizar quase quatro anos depois, teve o conservadorismo como pedra de toque. Assim foram os movimentos que ocasionaram o golpe de 2016 no Brasil, na Ucrânia em 2014 e a eleição de Trump em 2016. É que “fazer a América grande de novo” não dependia somente de medidas internas, porém, retrocedendo a reorganização mundial aos anos 1970. A partir daquele ano, em paridade do poder de compra, os Estados Unidos, com seus US$19 trilhões, já eram a terceira economia mundial, perdendo para a China, com US$21 trilhões, e União Europeia, com US$20 trilhões, tudo em números redondos Retirar o Reino Unido, com seus US$3 trilhões, da União Europeia já era capaz de restituir aos americanos, num bloco à parte, o título de primeira economia em âmbito global. Ocorre que mais uma força surgia, os BRICS, naquele momento, já superando largamente as duas maiores economias do mundo. Era preciso esfacelar esse bloco, daí a importância da guinada à direita do país que, embora sendo a sexta economia do mundo e a terceira entre os BRICS, detinha um papel importante na organização do grupo. O Brasil tornou-se alvo, mesmo sem considerar o evidente alcance de seus recursos naturais, especialmente o pré-sal.
Esboroar grupos econômicos, principalmente os com possibilidade de adotar moeda própria para transações internacionais, tornou-se imprescindível para manter o dólar como pivô da arbitragem no comércio mundial, além da possibilidade de aplicar sansões econômicas a quem não se sujeitar aos desejos do império. Hoje, com a adesão de mais sete países ao bloco, o PIB em paridade do poder de compra do grupo foi guindado a US$60 trilhões, 2,5 vezes o americano, como indica a tabela abaixo. Os números, aliás, contradizem a assertiva, propalada por grande parte da imprensa, de que os BRICS resumem-se à China. Usar o PIB nominal para medir os BRICS é um contrassenso em essência, posto que é justamente no poderio do dólar que se pretende dar a volta.
A tabela acima apresenta os países do BRICS, seu PIB PPC, a participação percentual de cada país no grupo e o total de reservas internacionais de cada um deles. Cabe frisar que nem todas as reservas estão disponíveis por serem alvo de sansões econômicas por parte dos Estados Unidos e da Otan, como são os casos da Rússia e do Irã.
Guardando as devidas proporções, o Brasil está para a América do Sul, assim como a China está para os BRICS. A dolarização da Argentina seria, portanto, um enclave hegemônico na aliança alternativa à imposta no fim da II Guerra. O comércio entre Argentina e Brasil que é pujante, especialmente em industrializados, teria que continuar como está, ou talvez pior, devido às consequências funestas da dolarização sobre o país vizinho.
LUIZ MELCHERT ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.