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Os congressistas têm assessores especializados nos mais variados temas. O STF deveria ter algo similar para auxiliar os ministros
Com acréscimos em 28 de agosto de 2023
Diz a Constituição, no seu artigo 101:PUBLICIDADE
Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 122, de 2022)
Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
Não menciona formação acadêmica, nem carreira jurídica. Exige apenas “notável saber jurídico”. E, por notável saber jurídico, entende-se apenas o conhecimento jurídico.
No início do século 20, houve uma enorme discussão nacional sobre os direitos dos rábulas. Com o tempo, o termo se tornou depreciativo. Na época, referia-se à pessoa que, não sendo formada em direito, tinha conhecimento suficiente para exercer funções advocatícias.
Foi uma batalha brilhante, na qual o jovem Francisco Escobar enfrentou todo o estado maior da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em defesa dos direitos dos rábulas. Ganhou reputação nacional a ponto de, algum tempo depois, já prefeito de Poços de Caldas, ser chamado por Ruy Barbosa de “cabeça de Salomão”:
- Sabe tudo o que eu sei e sabe o que não sei.
O “que não sei” referia-se aos dotes musicais de Escobar, um gênio absoluto esquecido.
Digo isso a respeito da indicação dos membros do STF. Todos são advogados ou juristas. Deliberam sobre questões que dizem respeito à economia, aos direitos, à evolução da sociedade, à segurança pública, ao equilíbrio dos poderes, às políticas sociais. Tudo supostamente à luz da Constituição.
A diversidade de temas tratados exige conhecimento de antropologia, sociologia, psicologia social, direitos sociais, direitos trabalhistas (em período de grandes mudanças), economia etc. No entanto, o que se vê é uma superficialidade assustadora em relação a temas que mexem com milhões de pessoas, ou direitos que são reconhecidos pelo mundo civilizado.
Dia desses escrevi a respeito do voto do novo Ministro Cristiano Zanin na criminalização do uso da maconha.
Tome o caso da crise humanitária nas tribos indígenas.
No dia 29 de março, o Tribunal de Contas da União (TCU), através do presidente Bruno Dantas, considerou “inaceitável” a crise humanitária em território Yanomami. Para deliberar sobre o tema houve uma audiência pública, com a participação de representantes dos povos indígenas, autoridades governamentais e membros do Tribunal.
No dia 24 de agosto passado, o STF foi analisar uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) ajuizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), denunciando que a Polícia Militar atua “como milícia privada a serviço dos fazendeiros da região”, com ações violentas de desocupação forçada. A entidade pede medidas para proteger comunidades guarani e kaiowá.
Quatro ministros votaram contra, incluindo Cristiano Zanin, na companhia de Gilmar Mendes, André Mendonça e Kassio Nunes Marques. Nenhuma audiência pública, nenhuma oportunidade ou curiosidade em conhecer de perto as condições das tribos. Simplesmente opinaram, Gilmar tendo um histórico anti-indígena e os três restantes um pensamento de direita.
Os constitucionalistas brasileiros
E aí volto a uma indagação que me persegue desde os tempos da indicação de Luís Roberto Barroso para o STF, visto como grande constitucionalista: que tipo de conhecimento deve ter um constitucionalista para ser considerado um grande constitucionalista?
Na época, fui presenteado pelo Ministro Ricardo Lewandowski com um livro do jurista italiano Luigi Ferrajoli. Depois, com o tempo, fui conhecendo o pensamento de juristas como Lenio Streck e Pedro Serrano. E comparei com um rascunho de “ensaio” que Barroso apresentou no Harvard Summit, Era um apanhado dos estudos de Raymundo Faoro sobre o patrimonialismo na formação brasileira, que Barroso “inovou”, ligando o tema ao “jeitinho” brasileiro, com todos os estereótipos negativos sobre o brasileiro. Ou seja, atribuiu uma característica típica das elites, o compadrio com os poderosos, ao modo de ser do brasileiro comum. E usou um jeitinho brasileiro para chamar o rebatizamento do patrimonialismo de “tese”.
Depois, com o tempo Barroso enveredou em discussões sobre leis trabalhistas usando dados falsos de Flávio Rocha, dono da Riachuelo, dizendo, entre outras inverdades, que o Brasil concentrava 95% das ações trabalhistas no mundo e que o Citibank tinha decidido sair do país devido à legislação trabalhista.
Mais tarde, nas discussões sobre julgamentos em terceira instância, valeu-se de estatísticas inconsistentes, desenvolvidas pelo notório Joaquim Falcão, usando o nome da FGV (Fundação Getúlio Vargas). O que Falcão fez foi retirar das estatísticas o procedimento mais usual do STF, incluindo a execução da pena antes da decisão definitiva irrecorrível.
A exclusão foi anotada pelo Ministro Ricardo Lewandowski:
“A Secretaria-Geral do STJ respondeu que, no período entre 1°/1/2009 até 20/6/2016, 8.493 decisões em recursos especiais (REsp) ou recursos especiais com agravo (AREsp) foram proferidas em favor do réu, reformando sentenças condenatórias, de um total de 82.519 casos analisados, o que corresponde à 10,29%. Ou seja, é provável que, no período mencionado, mais de 8 mil pessoas seriam encarceradas injustamente após a condenação em segunda instância, pagando pelo que não deviam”.
Fizeram mais, sob a coordenação polêmica do advogado Joaquim Falcão.
Como lembra um assessor da época:
“A turma da FGV gostava de brincar com números. Eles lançaram uma estatística mostrando o tempo que cada ministro demorava com o processo, fizeram um ranking com ampla divulgação. Havia um enorme FURO que não era a notícia, mas na metodologia, ou falta dela: eles não contabilizaram o tempo que o processo ficava na PGR (as vezes anos) que obviamente não era culpa do Ministro-Relator. Esse caso que você citou não foi diferente.
Nos tantos casos, não se tratava propriamente de desinformação. A desinformação fica mais explícita em temas sociais, envolvendo minorias, em temas econômicos – como a decisão de permitir a venda de subsidiárias das estatais, sem nenhuma informação sobre a lógica econômica das empresas afetadas, como se subsidiária fosse um apêndice irrelevante.
O princípio do não-retrocesso
Essa superficialidade assustadora foi demonstrada da revogação da legislação trabalhista.
O não retrocesso é um princípio constitucional implícito que impede o legislador de retirar ou diminuir direitos fundamentais já obtidos.
O princípio é aplicável aos direitos fundamentais de natureza social, como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados. Esses direitos são fundamentais para a dignidade e o bem-estar da pessoa humana, e sua redução pode causar danos irreversíveis.
O princípio do não retrocesso não impede a reforma das leis que regulamentam os direitos fundamentais. No entanto, a reforma deve garantir a manutenção do núcleo essencial dos direitos, ou seja, o mínimo necessário para que eles sejam efetivamente exercidos.
Analise-se o que o Supremo fez com a legislação trabalhista. Considerou que a legislação em vigor não era mais adequada às novas formas de trabalho. Qual seria o caminho? Pensar em novas formas de direito, adequadas ao novo cenário de trabalho, para substituir os direitos revogados. Aliás, apossou-se do papel do Congresso.
Há uma discussão em andamento no Congresso. Já as decisões do STF foram tomadas sem uma discussão mais aprofundada. Simplesmente eliminaram todos os direitos trabalhistas, sufocaram a capacidade de defesa jurídica do empregado. E o que colocaram no lugar? Nada. Não ouviram especialistas, não conversaram com as plataformas, ignoraram as centrais sindicais. A quem ouviram? Provavelmente o Velho da Havan e o Meyer Nigri, da Tecnisa.
O home schooling
Mas não há tema que demonstre mais o constitucionalismo vazio do que a discussão sobre home schooling – ou ensino em casa. O STF vetou por 10 votos a 1. O único voto a favor foi de Barroso.
Uma análise de seu voto mostra o seguinte: o direito à educação não é dos filhos, é dos pais. De certo modo, repete juízes que concederam a mães religiosas o “direito” dos filhos não receberem transfusão de sangue ou serem vacinados.
Dados compilados pelo Ministério da Saúde e divulgados em 18 de maio passado pelo Ministério da Saúde, no Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, mostraram os seguintes dados: 70,9% dos abusos contra crianças foram cometidos em casa, contra 4% na escola.
Uma criança submetida a abusos em casa, terá na escola uma possibilidade de se defender, dos professores identificarem as agressões. E trancada em casa, vítima de familiares?
Segundo a Childhood Brasil, uma das maneiras de identificar os abusos é através da frequência escolar.
Observar queda injustificada na frequência escolar ou baixo rendimento causado por dificuldade de concentração e aprendizagem. Outro ponto a estar atento é a pouca participação em atividades escolares e a tendência de isolamento social.
Confira, agora, o voto de Barroso.
Sobre os motivos pelos quais os pais podem optar pelo ensino domiciliar estão:
- conduzir diretamente o desenvolvimento dos filhos;
- o fornecimento de instrução moral, científica e religiosa;
- a proteção à integridade física e mental dos educandos;
- o descontentamento com a eficácia da educação pública ou privada;
- o desenvolvimento de um plano de ensino adaptado às peculiaridades das crianças e dos adolescentes;
- a crença na superioridade do método de ensino doméstico;
- e, por fim, a dificuldade financeira ou geográfica de acesso às instituições de ensino tradicionais.
Segundo ele, nenhum pai opta por esse método, que é muito mais trabalhoso, por preguiça ou capricho. E, como sua especialidade é o direito constitucional, conclui:
“o art. 208, § 3º da Constituição Federal se aplica aos pais e responsáveis que adotam o ensino formal. Entretanto, a lei não exclui a educação domiciliar. Sendo assim, não haveria impedimento legal para a prática dessa modalidade educacional”.
O que o motivou foi apenas a loucura libertária que se apossou do país, em moldes muito similares aos da ultradireita americana, contra qualquer forma de regulação, de um acientificismo de doer, sem consultar pedagogos, especialistas. Assim como nos votos de Zanin, não houve uma audiência pública, um estudo apurado sobre o tema.
Ressalve-se que, neste caso, foi um voto isolado do “iluminista”. Mas, de qualquer modo, encontrei todos esses princípios em artigo no Brasil Paralelo, o porta voz da ultradireita libertária.
Qual a saída?
Permitir que outros especialistas também possam ser Ministros do STF? Abrir caminho para rábulas com conhecimento amplo sobre o país? Talvez não se chegue a isso.
Mas, de qualquer forma, o STF tem que se abrir a outras formas de conhecimento. Não pode decidir sobre a vida de milhões de pessoas, sobre princípios civilizatórios, sobre temas econômicos complexos sem ser dotado de formas de conhecimento sobre o tema.
ner.html” width=”336″ height=”280″>Os congressistas têm assessores especializados nos mais variados temas. O STF deveria ter algo similar, que ajudasse a selecionar especialistas de visões variadas para cada tema com implicações amplas na sociedade.
O que não pode mais é o opinionismo.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)