Agosto entrou no calendário político brasileiro como “mês de desgosto”. Dois fatos marcantes pesaram no julgamento. O primeiro, claro, foi o suicídio do presidente Getúlio Vargas, na madrugada de 24 de agosto de 1954. O segundo, sete anos depois, foi a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, com menos de sete meses de mandato. Acuado por uma onda de denúncias, o presidente eleito em 3 de outubro de 1950, numa volta apoteótica, parecia que estava prestes a sucumbir politicamente depois que membros de sua guarda pessoal, chefiada por Gregório Fortunato, estiveram envolvidos no atentado a Carlos Lacerda, que acabou matando o major Rubem Vaz que lhe dava escolta. O episódio recrudesceu o ódio da chamada “República do Galeão”, reunindo oficiais da Aeronáutica em torno do brigadeiro Eduardo Gomes.
O ressentimento era antigo. O patrono da Força Aérea era tido como “pule de dez” na eleição de 1945, com a destituição forçada de Vargas após a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial acelerar a redemocratização do país. Mas Vargas apoiou seu ex-ministro da Guerra, Eurico de Gaspar Dutra, candidato pelo PSD, que derrotou o brigadeiro, candidato pela UDN, por 55% a 34%. Em 1950, embalado pelo jingle “Bota o Retrato do Velho Outra Vez”, Vargas (pelo PTB) bateu Eduardo Gomes por 48,73% a 29,66%. Cristiano Machado, do PSD, teve 21,49% dos votos. Mas as circunstâncias trágicas da morte de Vargas e, sobretudo, a exploração política de sua “Carta Testamento”, que coroava a campanha nacionalista do governo, que criara o monopólio estatal do petróleo em 3 de outubro de 1953, dando origem à Petrobrás em maio de 1954, mudaram o curso da história e ajudaram a eleger o governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, que apoiou Vargas nos momentos mais difíceis.
Assombrado pelos fantasmas do Palácio do Catete e, sobretudo, pela instabilidade que a facilidade de uma mobilização popular poderia acuar os governantes, JK mudou a face do Brasil ao decidir mudar a sede da capital para o Planalto Central, em Brasília. Os fatos de 8 de janeiro, precedidos por vários ensaios de golpe ao longo do governo Bolsonaro mostram que nem em uma cidade planejada como Brasília consegue-se manter controle das pressões da opinião pública sobre as sedes dos três poderes da República e a Esplanada dos Ministérios. Se as forças de segurança se omitem na sua função principal, como descobrira a Polícia Federal e confirma a CPMI de 8 de janeiro, fica difícil manter os três poderes imunes a uma tentativa física de assalto e depredação. Menos mal, que o alvo fundamental dos golpistas, o Estado Democrático de Direito, não foi atingido. Ao contrário. A reação institucional dos representantes dos três poderes só fortaleceu a Democracia.
Fim do recesso, pressão no Orçamento
Mas as razões para que agosto seja um mês de instabilidade política seguem presentes, pelo efeito calendário. É uma questão histórica. Agosto é o mês de retomada dos trabalhos do Poder Legislativo (Câmara e Senado Federal) e do Poder Judiciário após o recesso de julho. A temporada política do Congresso começa a se esvaziar desde a última semana de junho quando as festas juninas levam os políticos a seus redutos eleitorais. De lá, nas conversas com os caciques políticos locais, voltam cheios de reivindicações. Boa parte está ligada a questões agrícolas (em agosto-setembro são tomadas as decisões para as grandes safras que serão plantadas para a colheita no começo do ano seguinte). A supersafra deste ano, que está ajudando a derrubar a inflação, junto com a nova política de preços da Petrobras (mas o Banco Central, num excesso de vaidade, ignora, procurando reservar para a política monetária, que endividou mais de 60 milhões de brasileiros, os bônus da queda da inflação). As pressões por verbas para o crédito rural e obras pontuais coincidem justamente em agosto com a entrega pelo Poder Executivo – até a data limite de 31 de agosto – da proposta de Orçamento Geral da União ao ano seguinte.
Essa mistura de pressões sobre o Orçamento faz o caldeirão político ferver neste mês. Em agosto de 1979, Mário Henrique Simonsen, que fora um hábil ministro da Fazenda no governo Geisel, reequilibrando as contas externas esgarçadas pela escalada dos preços do petróleo, em 1973, que criou um rombo na sempre equilibrada balança comercial, foi convencido a assumir o Ministério do Planejamento no governo Figueiredo com o mote de arrumar as contas fiscais. Para isso, defendeu o crescimento menos acelerado da economia (e dos gastos públicos). Era um crescimento da faixa de 3% a 5% (excelente nos dias de hoje). Mas o país, sobretudo os empresários, viviam uma viuvez do “milagre brasileiro”, com taxas de expansão de dois dígitos. Havia conceitos tão bisonhos que me recordo de um texto enviado de São Paulo, por um operoso repórter da poderosa sucursal do Jornal do Brasil, no qual o dirigente de um sindicato empresarial paulista se queixava do “crescimento zero”, pois, após crescer 11% no anterior, a previsão era de um crescimento de 10% no ano em curso. Uma taxa de crescimento de 10% sobre 11% resultava em 22,1% de crescimento acumulado em dois anos. Por não entender de juros compostos, provavelmente o tal empresário deve ter se encalacrado nos bancos, mesmo desfrutando de juros subsidiados no crédito rural (todo industrial ou banqueiro paulista tinha uma fachada rural para trocar recursos) ou nos guichês do BNDE (sem o S, de Social, criado por Sarney).
Num ambiente de incompreensões destes, as pressões de fritura interna e de fogo amigo dos ministros da Agricultura, Delfim Neto, e do Interior, Mário Andreazza, eram imensas. Delfim prometia “encher a panela do povo”, numa situação complexa após a erradicação dos cafezais de São Paulo e Paraná nas geadas de 1975 ter desorganizado a produção de alimentos básicos (milho, feijão, mandioca) cultivada pelos colonos nas “ruas” do café. O colonato, que ruía, fora introduzido no país, com famílias de imigrantes na 2ª metade do século 19, quando já se sabia que a escravidão da mão de obra negra estava com os dias contados pelas leis inglesas. Mas Delfim queria verbas no Orçamento Monetário (que era muito maior que o Orçamento Geral da União). Andreazza, com ambições de suceder ao general Figueiredo no Colégio Eleitoral de 1984-85, queria utilizar o BNH para fazer populismo. Mais do que obras de saneamento e de habitação negociadas com prefeitos pelo país afora, queria agradar a classe média, reduzindo as prestações da casa própria. Simonsen, percebendo que a soma das demandas mal cabia em dois PIBs, quando mais no OGU, pediu o boné em 19 de agosto.
Delfim assumiu o leme e, como se não houvesse o amanhã, instou os empresários a botarem “o pau na máquina”. A economia cresceu artificialmente em 1980 e capotou na recessão de 1981. Depois veio a crise da dívida externa de 1982 e o país teve crescimento de menos de 1% no governo Figueiredo (muito menos que a prudência recomendada por Simonsen). Em meio à crise da dívida e da explosão da inflação, porque a “panela do povo” continuava vazia, a inflação explodiu acima de 100%. Andreazza quis fazer caridade com o chapéu alheio reduzindo por dois anos em 50% o reajuste da casa própria. Quebrou o BNH, extinto por Sarney. E o esqueleto dos bilhões espetados no Fundo de Compensação das Variações Salariais do Sistema Financeiro da Habitação só foi tirado do armário no Plano Real, já no governo de Fernando Henrique Cardoso. Esqueletos fiscais foram surgindo e isso obrigou à elevação da arrecadação tributária.
Não há segredo. O Orçamento Público nada mais é do que a repartição (supostamente bem programada) das receitas fiscais/tributárias. O cenário de crescimento razoável e inflação sob controle é o ideal. Com o crescimento turbinado e inflação galopante (por causas externas, como a escalada dos preços do petróleo, combustíveis, fertilizantes e alimentos após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022), a arrecadação disparou. No desespero eleitoral e sob folga de recursos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, deixou a ortodoxia monetária (e o Banco Central) de lado e foi operar sem anestesia para salvar as chances de reeleição de Bolsonaro, cortando impostos de combustíveis, energia elétrica e comunicações. Mas, mesmo com a bilionária distribuição de recursos a camadas do eleitorado, deu Lula.
Deu Lula, mas a base do Congresso, sobretudo na Câmara (sempre sujeita a renovação dos mandatos; no Senado era só uma das três vagas de senador que foi renovada), foi influenciada pela onda bolsonarista. São as acomodações do Orçamento e da base de apoio político do governo na Câmara que consomem as atenções do presidente Lula e lhe causam mais estresse do que as atribulações do colo do fêmur. Lula é um político escolado nas negociações sindicais e nas negociações políticas com os três poderes. Enquanto saboreava em Parintins (AM) a tradicional folia da disputa entre o bloco do Boi Garantido (nas cores vermelha, do PT) e do Caprichoso (na cor azul), o presidente da República já tinha caprichado, previamente, nas negociações políticas para garantir a pista pavimentada para o desfile de seu governo nos próximos três anos e meio, visando a uma eventual reeleição em 2026.
Fufuca para calar as fofocas
Brasília, como toda capital política, vive movida a fofocas. Muitas são verdadeiras. Outras são balões de ensaio. Ou o popular “jogar verde para colher maduro”. Lula já decidiu abrir espaço para acomodar, institucionalmente, na base do governo, dois partidos que tinham se alinhado a Jair Bolsonaro: o Republicanos, da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, e o Partido Progressista. O PP, presidido pelo senador Ciro Nogueira, é dono da 2ª maior bancada da Câmara. Faz o papel histórico do velho PSD. “Hay Gobierno, soy a favor”. Ciro Nogueira que já foi aliado de Dilma e Temer e depois foi chefe da Casa Civil de Jair Bolsonaro, não se esforça muito para estar no mesmo lugar: no centro do poder, pois encarna o espírito do “centrão”. O governo precisa de base estável para aprovar suas propostas (estão aí na prateleira o Arcabouço Fiscal e a Reforma Tributária, que tende a se desdobrar por várias etapas, além de medidas pontuais). Lula não quer viver mais o sufoco de abril, quando a arquitetura de seu governo, com 37 ministérios, quase cai por terra, com a volta das 23 pastas do governo Bolsonaro.
Para sedimentar o apoio dos 41 deputados do Republicanos, que formam o 2º maior bloco da Câmara com o MDB (53), PSD (43), PODE (12) e PSC (3), deve ser chamado para comandar um ministério o deputado pernambucano Silvio Costa Filho. Seu pai tinha ótima relação com Lula. Para reduzir o grau de fofocas interesseiras plantadas pela ala dividida do PP (sempre disposta a descer do muro para ficar com o governo que tem o poder da caneta), está sendo escalado por outro cacique do PP na Câmara, o “pajé” Arhur Lira, do PP-AL), que preside, com mão de ferro, as votações e as pautas da Câmara dos Deputados, o deputado do PP do Maranhão, André Fufuca, líder do partido na Câmara. Que não se perca pelo nome (político), ele é hábil articulador e se dava bem com o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, quando o senador eleito governou o Maranhão, um forte reduto de Lula.
O bônus das agências
Não se sabe se é a experiência da idade (77) ou a sorte do pescador que sabe ter paciência para esperar o peixe fisgar o anzol, o fato é que o presidente Lula, além de contar com o tempo para solidificar decisões, conta com a sorte. Imagina que poderá ter, em breve, quando o Tribunal de Contas da União julgar, a possibilidade de antecipação do fim do mandato em cinco poderosas agências regulatórias. Isso pode ser um grande trunfo para o presidente negociar com a base política a acomodação de atuais e futuros aliados.
São elas a Anatel (de energia elétrica), a Anatel (de telecomunicações), Anvisa (de Vigilância Sanitária, cujo presidente, o almirante Antônio Barra Torres, enquadrou o presidente Jair Bolsonaro na pandemia da Covid-19), a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que controla os planos de saúde de 63 milhões de brasileiros, e ainda a Agência Nacional do Cinema (Ancine), que voltou às luzes da ribalta após o ostracismo do governo Bolsonaro. Com o poder de atender promessas aqui e ali, Lula terá bem mais cacife para negociar com os “caciques” políticos.
Traficância ou Ajudância de Ordens?
Perguntar não ofende. Após as escandalosas revelações das tenebrosas transações feitas pela equipe da Ajudância de Ordens da Presidência da República no governo de Jair Bolsonaro, sob o comando do tenente-coronel Mauro Cid, que não só andou fraudando certificados de vacinação contra a Covid-19 para sua família e o ex-presidente da República e sua filha Laura, como tramava, continuamente inúmeras conspirações golpistas descobertas em seus celulares apreendidos, as habilidades do ex-ajudante de ordens em negociações com joias, relógios e pedras preciosas, deixam o cidadão em dúvida. O cargo era de ajudante de ordens ou de tráfico de ordens?
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)