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Hoje em dia, um país complexo, uma economia torta como a brasileira, só é vista pelos óculos do mercado financeiro.
O recente ataque difamador contra o economista Márcio Pochmann, indicado para a presidência do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) trouxe à tona as inevitáveis comparações entre o padrão da mídia pós-mensalão e a era bolsonarista.
O padrão de atuação é idêntico:
- Desumanização do adversário como recurso da guerra ideológica.
É a tática que substitui qualquer crítica moderada por ataques visando a destruição da reputação do adversário – tratado como inimigo.
No bolsonarismo, utilizavam-se, em geral, considerações de ordem moral e anticomunismo de guerra fria para desqualificar qualquer argumento do adversário-inimigo.
No padrão ressuscitado agora, cria-se a suposição de que Márcio Pochmann poderia manipular os índices do IBGE. Nada na biografia de Pochmann poderia levar a essa suspeita. E se trataria do chamado crime impossível, porque os sistemas de controle do IBGE, e as diversas alternativas de levantamento de preços do país, impediriam qualquer tentativa.
- Aliança mercado x ultradireita
A difamação contra Pochmann surgiu de Mirian Leitão. Imediatamente foi encampada pelo principal porta-voz da ultradireita na mídia, José Roberto Guzzo que, do alto de seu profundo conhecimento de estatísticas, garantiu que Pochmann não entende nada de números.
A aliança é a mesma que permitiu a ascensão de Paulo Guedes e a ilusão de que o governo Jair Bolsonaro seria razoável. É interessante esse repeteco, para a confirmação didática de como a criminalização da discussão econômica levou à parceria do ultraliberalismo com o bolsonarismo.
- Falsificação das relações de causa-e-efeito.
Do lado do bolsonarismo, as afirmações pretensamente científicas sobre as virtudes da cloroquina e os riscos da vacina.
Do lado da economia, uma infindável manipulação de causa-e-efeito, misturando notícias falsas e suposições absurdas, visando criar o clima de pânico já conhecido, com consequências funestas.
Por exemplo, a atribuição do desastre do governo Dilma ao desenvolvimentismo, como faz Miriam Leitão em O Globo.
Dilma cometeu diversos erros sim, represando preços de combustíveis, distribuindo incentivos a torto e a direito, paralisando a administração pública com um centralismo impraticável. São decisões de governo que nada têm a ver com linhas de pensamento econômico, assim como as jogadas de Paulo Guedes não podem ser atribuídas a modelos econômicos.
O que levou ao desastre de 2015 foi o pacote de Joaquim Levy, o uso abusivo da cartilha mais ortodoxa possível. Desde o ano anterior houve um desaquecimento da economia mundial, com consequências sobre o país. Em vez de preparar o país para a nova etapa, permitindo às empresas e pessoas físicas reduzir o endividamento feito no período de bonança, adotou-se o receituário do mercado: um enorme choque tarifário, cambial e fiscal, seguido de um trancamento total do crédito e elevação brutal da Selic. O mesmo receituário desastroso do plano Real, no início de 1995. E isso depois de Dilma ser sitiada com pautas bombas da Câmara de Eduardo Cunha e uma atoarda jornalística em cima da Lava Jato.
O pacote Joaquim Levy é filho de um bando de terraplanistas de mercado, completamente descolado da análise empírica da economia. E nem se atribua à ortodoxia, mas à análise plana do mercado sobre os problemas da economia.
- Fakenews econômicos procurando espalhar o pânico.
Em 2015, Miriam Leitão espalhou que a Petrobras estava quebrada. Naquele mesmo momento, a empresa levantava no mercado internacional US$ 18,5 bilhões em bônus perpétuo, com uma demanda várias vezes superior à oferta.
O período de 2008-2010 foi de pleno sucesso do país, enfrentando a crise internacional, quando, premido pelo Senhor Crise, Lula abriu mão do receituário de mercado – até então adotado – e valeu-se de gastos públicos e do uso dos bancos públicos para levantar a economia. Para desqualificar os resultados, há um enorme esforço intelectual para atribuir os problemas de 2016 a 2022 ao sucesso de 2008-2010.
- Gastos públicos e receita fiscal.
O período de maior superávit primário ocorreu no primeiro governo Lula, com média anual de 2,44%; e o de menor superávit com o primeiro governo FHC, de 0,27% do PIB. E nenhum dos dois governos produziu crescimento econômico.
Sabe-se que há uma relação direta entre aumento de gastos públicos e receitas fiscais. Justamente por isso, o bom senso indica que, em períodos de queda da economia, aumento dos gastos públicos; e de aquecimento da economia, políticas fiscais restritivas ou redução de gastos.
Por aqui, a questão dos gastos públicos é tratada com a mesma superstição dos anti-vacina. Impede-se qualquer discussão racional sobre o tema, através do uso de recursos intelectualmente desonestos – como os argumentos ad terrorem, de fim do mundo próximo se sequer se ousar discutir a solidez dos argumentos da ortodoxia.
Medo da informação
Em seu último artigo, em O Globo, Miriam substituiu os ataques difamatórios de suspeita de manipulação futura dos indicadores, por parte de Pochmann, por termos mais amenos – “Economia é como cristal, mesmo que seja uma ingerência sutil, pode levar à quebra de confiança” – comparando com a desastrada atuação do ex-Secretário de Tesouro Arno Agustin no governo Dilma.
No fundo, a maneira como se colocou em xeque a reputação de Pochmann se deve a uma forma pouco sutil de censura, de impedir que a opinião pública possa receber outras formas de informação e de ver a economia e o país.
Hoje em dia, um país complexo, uma economia torta como a brasileira, só é vista pelos óculos do mercado financeiro. Analisam-se exclusivamente indicadores fiscais planos, as notas das agências de rating, o resultado primário, jamais as externalidades positivas e negativas, os efeitos de médio e longo prazo de medidas econômicas. E as informações primárias do IBGE constituem um material riquíssimo para desdobramento em pesquisas.
Analisa-se uma política econômica pela prova do pudim: quais os resultados concretos no mundo real, em relação ao bem-estar dos cidadãos, às perspectivas de crescimento, de inclusão. O que se espera de Pochmann, no IBGE, é valer-se da competência reconhecida do Instituto para ajudar a entender o país, ajudado nesse trabalho pelos estudos do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), FGV (Fundação Getúlio Vargas), dos consultores da Câmara e do Senado.
Ao colocar, antecipadamente, a suspeita de “ingerência sutil”, o que se quer é desqualificar antecipadamente resultados que venham a questionar verdades dogmáticas dos falsos profetas da mídia econômica.
Afinal, como lembrava Nietzsche, embora todos os conceitos sejam metáforas inventadas pelos humanos (criadas de comum acordo para facilitar a comunicação), os seres humanos esquecem esse fato depois de inventá-los e passam a acreditar que são “verdadeiros” e correspondem à realidade.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)