MITOS E MENTIRAS AGRÍCOLAS

CHARGE DE FABIANO

Quando o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, Pero Vaz de Caminha, escreveu ao Rei D. Manuel descrevendo a “Terra Brasilis” que havia sido descoberta, depois da descrição de sua gente, de suas características geográficas, e das primeiras impressões sobre a fauna e a flora, ao abordar a abundância de água boa e limpa, Caminha asseverou: “(…) a terra em si é de bom clima, fresco e temperado, como os de Entre D’Ouro e Minho, nesta época do ano. As águas são muitas; infinitas. De tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por causa das águas que tem!”.

Mais de cinco séculos de história mostraram que quase todas as espécies de lavouras e criações exóticas se adaptaram às terras brasileiras. Sobretudo as mais indicadas ao clima temperado e sub-tropical, que os colonizadores portugueses (e holandeses, que dominaram Pernambuco e parte do Nordeste) foram introduzindo no país. A rigor, das grandes lavouras, o Brasil só não é autossuficiente em trigo, aveia e cevada, próprias para climas frios. Mas a Embrapa já está cuidando de garantir espécies para cultivo no cerrado.

Dos 20 produtos de origem vegetal ou animal cultivados e explorados no Brasil e que o colocaram na liderança entre os maiores produtores e exportadores do mundo, chega a ser curioso que um dos raros produtos nativos do Brasil e da América – a mandioca – tenha a Nigéria como líder em produção (somos o 5º).

Lideramos na produção e exportação de soja, cana de açúcar, café, suco de laranja, somos o 2º na exportação de milho e algodão, o 1º na exportação de carne bovina e de frango e um dos cinco grandes em carne suína (em parte com aproveitamento do farelo de soja e de milho na engorda de aves e suínos).

Com sucessivos recordes de produção – sujeita a influências climáticas, a pragas e endemias que atacam periodicamente as lavouras e a criação, graças às novas tecnologias e ao conhecimento dos agrônomos e veterinários brasileiros – o país se transformou em um dos celeiros agrícolas do mundo.

O gargalo do abastecimento

Pena que o aumento da produção (obra principalmente do empreendedorismo dos fazendeiros nacionais) não tenha sido acompanhada pela ação governamental no provimento de silos para estocagem da produção na lavoura, de meios de transporte entre os locais de produção e portos de embarque (o problema se agravou quando a geada do café em São Paulo e Paraná deslocou o eixo da produção de grãos, bovinos e suínos para o Centro-Oeste). O mais grave foi não se dar a devida atenção ao abastecimento interno.

O nome completo da pasta agrícola, hoje ocupada pelo ministro Carlos Fávaro que sucedeu a Teresa Cristina, no governo Bolsonaro, é Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Infelizmente, a pasta que perdeu recentemente um de seus ícones, o ex-ministro Alyson Paulinelli (1974079), criador da Embrapa, que desenvolveu sementes e tecnologia para a produção agrícola no cerrado e estimulou, a partir de 1975, o Levantamento Sistemático (mensal) da Produção Agrícola do IBGE, para medir se a oferta de produtos acompanhava a demanda, não cuidou do abastecimento no governo Bolsonaro. O que sempre critiquei na gestão da celebrada Teresa Cristina.

Quem produz são os agricultores. Aos governos cabe organizar a infraestrutura, dar estímulos creditícios (sobretudo no financiamento do BNDES às modernas máquinas agrícolas) e tecnológicos, ter zelo no controle das doenças e na fiscalização fitossanitária, além de facilitar a abertura de novos mercados para os produtos brasileiros, sempre sujeitos a ondas protecionistas.

À exceção do ciclo do ouro, os principais ciclos econômicos do Brasil foram todos feitos com a exploração agrícola ou animal de espécies oriundas de outras regiões do globo. A cana-de-açúcar, 1ª “commodity” brasileira, veio da Índia, assim como a manga, a jaca, o sorgo. O café, a 2ª lavoura em regime de “plantation”, com mão de obra escrava negra, tem origem na Etiópia, mas foi contrabandeada por Francisco José Palheta, da Guiana Francesa.

O cacau, tido como nativo da Amazônia, no Pará, (embora o consumo de chocolate tenha sido hábito desenvolvido pelos Maias, do México e América Central), acabou introduzido no sul da Bahia, região de Ilhéus, com mão de obra escrava. Enquanto um navio negreiro era reparado num estaleiro do sul da Bahia, bagas de cacau foram contrabandeadas para o porão e chegaram à África, onde foram semeadas e se adaptaram à Costa do Marfim e à Gana. Com a praga da “vassoura de bruxa” na Bahia, a região perdeu a primazia na produção nacional (assumida pelo Pará e, com Rondônia no 3º posto) e o Brasil, 5º consumidor mundial de chocolate, passou a importar cacau dos dois países africanos e ainda da Indonésia, onde foi cultivada pelos holandeses.

Terra responde ao que se planta

A introdução da soja, de origem chinesa, no Rio Grande do Sul, nos anos 60, no governo Brizola, mudou a face da agricultura brasileira. O café era o carro-chefe da agricultura brasileira. Seu cultivo nas ricas terras roxas do planalto de São Paulo e Paraná por famílias de colonos de origem europeia (portugueses, italianos, alemães, poloneses, espanhóis, lituanos, austríacos) tinha criado um sólido regime de parceria e meia que favorecia a produção de milho, feijão, mandioca e amendoim nas “ruas” do café. E parte da produção que cabia aos colonos era usada na engorda de suínos de pequenas criações de animais. O acesso à terra (mesmo alheia) explica a ascensão social destas famílias na vida brasileira, comparativamente aos negros cativos, que vieram de forma avulsa para o Brasil e nunca tiveram acesso à terra acidentada onde cuidavam do café no Vale do Paraíba (SP e RJ) e na Zona da Mata de Minas Gerais.

Quando a geada de 1975, dizimou as lavouras de café no Paraná e em São Paulo, houve uma completa desorganização da produção agrícola no Brasil, com crises no abastecimento até a virada desde 3º milênio. No Paraná, a mecanização e o rodízio das lavouras (milho após a colheita da soja) mantiveram a forte produção agrícola no PIB estadual. Em São Paulo, a ocupação das terras férteis pela monocultura da cana de açúcar e da citricultura, afetou o quadro do abastecimento nacional.

No governo do general Figueiredo (1979-1985), a questão do abastecimento, desorganizado na gestão Geisel pela erradicação dos cafezais e lavouras associadas, ficou tão importante que o ex-ministro da Fazenda, Antônio Delfim Neto, nomeado ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), lançou o lema: “Vamos encher a panela do povo”. O mote não se consumou. Delfim deixou o cargo em agosto de 1979 para substituir Mário Henrique Simonsen, que renunciara ao Ministério do Planejamento (o grande controlador da economia), e seu substituto, Amaury Stabile, que era secretário geral do MAPA, tampouco conseguiu. Logo, a crise da dívida externa (1982 em diante) consumiu as energias do governo.

A conquista do cerrado no Centro-Oeste e Oeste da Bahia nos anos 90 mudou a produção nacional, com Mato Grosso desbancando o Paraná como maior produtor de grãos e na pecuária (tem o maior rebanho de gado de corte). A produção das grandes lavouras e as melhorias genéticas em cruzamentos com gado europeu e técnicas como fertilização “in vitro” e transplante de embriões revolucionaram a produção com abate mais precoce. Nunca mais faltou carne bovina, mesmo sendo o Brasil o maior exportador do mundo.

Parte disso se deveu também ao avanço da produção de carnes de frango e de suínos, com a conversão da grande oferta de milho e soja em proteína animal. Toledo (PR) continuou sendo o maior município produtor de carne de porco, mas várias regiões de Mato Grosso se tornaram grandes criadoras de suínos e de aves, atraindo abatedouros para lá, numa verticalização da agricultura. As embalagens tetrapak do leite longa vida, que tem durabilidade, ajudaram a superar a crise de abastecimento na estiagem, com a reidratação do leite em pó estocado nas épocas da grande produção. Mas os preços ainda sobem.

Onde o MAPA continuou falhando (e a situação ficou dramática em 2020, no 1º ano da pandemia da Covid) foi no abastecimento. O estímulo à exportação (sem o cuidado da formação de estoques para o mercado doméstico) levou o país a ter de importar, em setembro de 2020, arroz que subira mais de 77% para o consumidor) e soja em grão para fazer óleo (depois que as embalagens subiram mais de 100% nos supermercados).

Esse mega desastre é apenas a ponta do iceberg. O MAPA, além de não cuidar do abastecimento (uma de suas atribuições) desdenhou das lavouras dos pequenos produtores e cooperativas (como tubérculos, hortaliças e verduras e frutas). Entra ano sai ano, os dados do IBGE apontam estes segmentos como os de maior elevação no item Alimentos e Bebidas do IPCA. A recriação do Ministério da Agricultura Familiar pode dar mais foco ao problema, mas é preciso mais assistência técnica e mecanização, com microtratores (como fazem os chineses), para o salto de produtividade nestas áreas.

Itaipu e alimentos derrubam IPCA

Em julho, informa o IBGE, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15) apresentou queda de 0,07%, contra alta de 0,04% em junho. No ano, o IPCA-15 acumula alta de 3,09% e, em 12 meses, de 3,19%, abaixo dos 3,40% registrados em junho. O resultado de julho, que o IBGE divulga em 11 de agosto, está sendo estimado em +0,10% na Pesquisa Focus, que o Banco Central divulgou hoje, com um dia de atraso, devido ao jogo da seleção feminina de futebol na 2ª feira. Para agosto o mercado prevê + 0,31% e +0,28% para setembro. O IPCA fecharia o ano em 4,90%, acima do teto da meta de inflação, de 4,75% (3,25% de inflação + tolerância de 1,50%).

No IPCA-15 de julho a baixa foi influenciada principalmente pelas quedas de Habitação (-0,94%), com o bônus do fim dos reajustes cambiais na energia de Itaipu, provocando queda de 3,45% na energia elétrica residencial, e de Alimentação e bebidas (-0,40%) devido às quedas do feijão-carioca (-10,20%), do óleo de soja (-6,14%), do leite longa vida (-2,50%) e das carnes (-2,42%). No lado das altas, batata-inglesa subiu 10,25% e o alho, 3,74%.

Artigos de residência (-0,40%) e Comunicação (-0,17%) também registraram recuo nos preços no IPCA-15 de julho. No lado das altas, o maior impacto (0,13 p.p.) e a maior variação (0,63%) no índice do mês vieram de Transportes, devido ao aumento de 1,99% nos preços da gasolina. O gás veicular teve alta de 0,06%, mas o óleo diesel e o etanol caíram 3,48% e 0,70%, respectivamente. Houve alta ainda de 4,70% nos preços das passagens aéreas, que haviam subido 10,70% em junho. Os demais grupos ficaram entre o 0,04% de Vestuário e o 0,38% de Despesas pessoais.

Desatando os nós da infraestrutura

Uma notícia que me alegrou (e espero que boa parte dos leitores também comemore) foi a informação de que o Ministério dos Transportes vai desatar alguns nós cegos deixados para trás da administração do atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, quando ocupou a pasta da Infraestrutura no governo Bolsonaro. Egresso do DNITT desde o governo Dilma, quando foi chamado para fazer uma “limpeza” no órgão, Tarcísio se notabilizou por anunciar sucessivos leilões de concessões.

As concessões em locais sem muitas exigências de obras de arte eram arrematadas. Já as que envolviam obras e custos mais complexos não saíram do papel. E muitos projetos ficaram pelo caminho, com nós cegos que o operante Tarcísio não conseguiu desatar, quando era do DNITT e nos quatro anos em que foi ministro. O ministro dos Transportes, Renan Filho, promete desatar os nós, renegociando contratos com os antigos concessionários. A ver.

Dois deles me incomodam: a duplicação da nova subida da BR-40 (Rio-Juiz de Fora-Belo Horizonte) na Serra de Petrópolis, paralisada desde 2017, e a criação de mais uma faixa de rolamento na Bt-101, entre Niterói e Itaboraí, parada desde 2019. São duas obras vitais para o Estado do Rio de Janeiro, assim como a duplicação da Rio-Santos (Br-101) entre Itaguaí e Parati, incluídas como apêndices da modernização da Via Dutra (BR-116), da qual se espera, enfim, a criação de uma ligação que substitua a tortuosa e perigosa descida da Serra das Araras, com mais de três décadas de promessas vãs.

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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