Contribua usando o Google
Um dos maiores pensadores da atualidade pagou definitivamente por seus erros, vendo 60 anos do melhor trabalho intelectual comprometido por comportamento típico de uma civilização machista. Vão negar a ele, agora, até o benefício do perdão?
Quando cheguei a São Paulo, na loucura do trânsito dos anos 70, conheci um tipo de linchador, o justiceiro, aquele que, se vendo dono da razão, não se importa com as consequências de seus atos sobre os infratores. Se o pedestre atravessar um sinal vermelho, passará por cima. Qualquer erro, qualquer pecado, pena máxima.
Aliás, dia desses houve o caso do motorista de aplicativo que atropelou um transeunte. Saiu em pânico do carro, até descobrir que a vítima era um ladrão que acabara de furtar um celular. A partir daí, o atropelador tornou-se vitorioso, celebrando a morte da vítima e ironizando a tragédia, fazendo L para os defensores de direitos humanos.
É o mesmo sentimento que acomete os linchadores de redes sociais, os promotores de cancelamentos.
Fui vítima do primeiro movimento de cancelamento logo após as eleições de 2010. Foi um ano terrível, com meia dúzia de escoteiros enfrentando o exército profissional de José Serra. Levava tiros pela frente e facadas por trás, da EBC e da Secom.
Estava indo a Atibaia, para uma palestra na ONG de uma jogadora de vôlei, quando me ligaram da redação, perguntando se poderiam publicar um comentário de um dos posts, que mencionava a palavra “feminazi”. Nunca tinha ouvido o termo. Achei que fosse apenas mais uma das muitas expressões que pululavam na neo língua das redes sociais. Autorizei a publicação. Em pouco tempo, passei a ser atropelado pelos justiceiros. Como tinha permitido o uso daquele termo? De nada adiantou explicar que eu não tinha a menor ideia sobre o sentido da palavra. “Todo mundo” conhecia o termo, me diziam.
Foi uma semana de pancadaria no Twitter e inúmeros cancelamentos de pessoas que, teoricamente, estavam no mesmo campo político. Ainda não existia o comando “bloquear” para dar um descanso.PUBLICIDADE
A líder do movimento continuou comandando cancelamentos variados, até o dia em que mexeu com pessoas desequilibradas, de outro campo político, os verdadeiros inimigos, não construções retóricas para exercitar sua agressividade, e passou a sofrer ameaças físicas.
A violência dos novos movimentos
Mesmo assim, entendi que se tratava de uma ação compreensível em todo grupo que necessita de afirmar nos primeiros movimentos do jogo político.
Lembrei do comportamento dos primeiros sindicalistas da CUT, os discursos incendiários de Lula, até o momento em que se inserem no jogo político, ganham seu espaço, e passam a substituir a virulência pelas ideias e pela negociação. Não há mais a necessidade de ganhar espaço no grito..
Ocorreu o mesmo com o movimento negro, com os LBGTI+, MST e tantos outros que ajudaram a colorir o quadro político brasileiro, com uma vitalidade que havia desaparecido da política tradicional. Ou seja, a agressividade inicial é sinal de emponderamento, de descobrir o próprio poder, de jogar fora séculos de submissão.
Já o fascínio pela agressividade prosseguiu, e nos ambientes mais inesperados. É um vício. Tempos atrás saí de um grupo que reunia advogados, jornalistas, defensores de direitos humanos, depois que uma advogada da Bahia, do nada, ameaçou me denunciar às feministas por não convidar advogadas mulheres para o TV GGN Justiça. São convidadas, mas não na mesma proporção dos homens.
Uma conversa civilizada, uma dica, me alertaria para preservar o equilíbrio dos convidados. Mas ela queria um álibi, um motivo para se apresentar ao grupo. Apossou-se da ira santa do atropelador e passou a atropelar o macho branco.
É por aí que se entende a agressividade fora de lugar. Na quadra atual, para se considerar incluída no grupo das feministas, ou ser identificada como tal, a senha é a retórica de guerra contra o “macho branco”, de preferência do mesmo campo político, mais suscetível de ser afetado.
É um cerimonial curioso, da mesma natureza de outros grupos, que se valem de senhas, saudações, gritos de guerra, tatuagens, colagens, ataques a torcidas adversárias para firmar sua identidade.
Entre alguns grupos de feministas, a senha é a palavra virulenta, seja qual for a circunstância. E, com todo respeito, isso não é bom para a causa. Não há nada mais legitimador do que a reação indignada de uma mulher contra um abuso ostensivo; e nada mais comprometedor do que o exercício permanente da indignação ou, pior, o linchamento.
O caso Boaventura
Dou essa volta toda para falar do caso Boaventura de Souza Santos. Publiquei no GGN o artigo que ele enviou, de autocrítica sobre sua herança machista. Um dos maiores pensadores progressistas do planeta, com vasta obra em defesa dos vulneráveis, reconhece que não se livrou da herança machista ocidental, errou e pede desculpas. Não ataca as acusadoras, não procura justificar seus atos. Apenas, humildemente, pede desculpas.
No Twitter em que divulguei o artigo, havia dois comentários de uma mesma pessoa:
Nem mesmo ‘antigamente’ esses comportamentos eram apropriados. Não são apropriados em qualquer época ou contexto. Esse tipo de violência sempre foi legitimada pelo patriarcado e como ‘legítima’ que é para vocês, machos, vocês normalizam.
Poupe as mulheres, poupe todas as minorias dessa hipocrisia. O que eu vejo é a machosfera em confraria passando pano pra esse sujeito. Nada novo no modus operandi do patriarcado.
Coloquei na resposta ao seu comentário:
Tem razão. Precisamos levar todos os culpados à fogueira. Arrependimento é coisa de macho hipócrita. Quando monto na razão, pego, mato e pico qualquer um que saia da linha.
E ela deu o veredito final:
‘Arrependimento’ é o típico modus operandi de assediadores sexuais. E isso não tem perdão que pague para quem assedia mulheres, quanto mais para quem passa pano.
Ou seja, decretou a pena máxima não apenas para quem cometeu o pecado grave, mas para quem aceitou o pedido de desculpas. É razoável esse tipo de posição, de instrumentalização da condenação?
Anos atrás, minha caçula, a Dora, então com 15 anos, entrou em um grupo de feministas, no Facebook. Boa polemista, logo descobriram sua capacidade de argumentação e passaram a encaminhar para ela artigos de terceiros, para serem desconstruídos. Depois, como havia um espírito de grupo, identificaram uma “infiltrada” e passaram a assediá-la.
Em um período em que o prestígio dos jovens, junto ao seu grupo, era razão direta do número de seguidores, Dora fechou sua conta. Fui perguntar a razão e ela me explicou. Além da indignação com o ataque coletivo a uma pessoa, cansou-se da lacração.
- Papai, em uma discussão, os dois lados têm a aprender. Mas elas só querem lacrar, lacrar.
As armadilhas do machismo
É curioso, isso. Sou de uma família basicamente feminina: 4 filhas, 2 netas, 1 esposa independente e militante de grandes causas, 4 irmãs socialmente responsáveis, 10 tias, a maioria independente. Em casa, minha mãe ensinou a todas as filhas serem companheiras, jamais dependentes do marido.
Meu pai era um homem à moda antiga. Respeitador, jamais ergueu a voz em casa. Mas jamais deu uma oportunidade sequer para minha mãe ser parceira. Depois de mortos, encontrei a correspondência de noivado de ambos. Ela dizia para ele que não queria aprender tênis no Country Club, frequentar festas sociais como queriam suas cunhadas, comuns em uma cidade provinciana mas que emulava os hábitos sociais da corte. O que ela queria, apenas, era ser parceira dele, ajudá-lo nos seus negócios. Com enorme potencial, com curso normal, tornou-se apenas dona de casa e grande educadora dos filhos.
Com minhas filhas, sempre fiz questão de apontar os malefícios de uma união dependente ou abusiva com os “machos brancos” – e eles existem, em abundância. Mostrava exemplos na família, de amigas, pessoas brilhantes, que comprometeram sua carreira devido ao casamento com machos tradicionais. Era o caso da sua própria avó.
Mas, ao mesmo tempo, aprenderam os horrores dos processos de linchamento, do comportamento agressivo de quem se sente autoridade, dono da uma verdade.
. Minha segunda filha, a Luizinha, com apenas 9 anos encarou uma professora agressiva com todos os alunos. Levantou o dedinho, pediu a palavra, e disparou:
- A senhora não pode se comportar assim. Não está certo.
Foi o que nos disseram a orientadora da escola, que deu plena razão à Luizinha, mas solicitou que ela fizesse as pazes com a professora, para normalizar a aula. Luizinha aceitou de pronto. Um mês depois, a professora pediu licença por problemas nervosos, comprovando que seu comportamento em sala de aula não era normal.
Quando ocorre um episódio como o de Boaventura, dois valores familiares entram em colisão. O primeiro, o combate ao machismo; o segundo o combate à intolerância e ao linchamento. A pessoa que cavalga as ondas de linchamento se sente com a mesma autoridade da professora, das autoridades que recorrem a carteiraços, do motorista do Uber: “eu tenho a verdade, eu tenho a força”. E jogam fora um grande fator de humanidade, que é a possibilidade de reabilitação do acusado, pelo exercício do arrependimento.
Sou casado com uma das defensoras mais legítimas da justiça de transição. Seus princípios são a publicidade e a punição dos crimes contra a humanidade. Mataram, estupraram, abusaram de mulheres e merecem a prisão.
Mas se não tivermos a capacidade de entender as diferentes gravidades de crimes, e tratar a todos com a pena máxima, qual a diferença dos juízes que entopem os presídios com jovens acusados de portar quantidades ínfimas de drogas, ou com lavajistas dispostos a criminalizar tudo e todos?
Boaventura errou, sim. Cometeu erros sim, não os erros mais graves pelos quais é acusado. E foi severamente punido, com a divulgação internacional dos episódios e o cancelamento de diversas entidades. Reconheceu os erros, faz autocrítica, pede desculpas. Um dos maiores pensadores da atualidade pagou definitivamente por seus erros, vendo 60 anos do melhor trabalho intelectual comprometido por comportamento típico de uma civilização machista.
Vão negar a ele, agora, até o benefício do perdão?
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)