XADREX DA MÍDIA CORPORATIVA E DO FIM DO MUNDO

Esse clima de derrotismo é típico do complexo de vira-latas que acompanha o país desde a Independência, e a uma mídia cheia de negativismo

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Peça 1 – a complexidade jornalística

Ontem conversava com meu amigo, o compositor Eduardo Gudin. Ele estava impressionado – e desgostoso – com a cobertura de fim de mundo da mídia. 

Consiste em definir antecipadamente o diagnóstico e, depois, buscar, no universo multifacetado da política, apenas as peças que ajudem a confirmá-lo.

Tentava encontrar uma explicação, assim como muitos críticos da mídia. Interesses econômicos? Estratégia do dono do jornal? A realidade é um pouco mais complexa.

Às vezes há um excesso de simplificação sobre a maneira como se formam as ondas na mídia, devido à extrema instrumentalização do jornalismo no período do jornalismo de esgoto. 

Mas há muitos fatores em jogo, um dos quais são as ondas, as modas às quais se apegam jornalistas, dentro da competição com outros colegas.

Peça 2 – a feijoada jornalística

Em tempos normais, o jornalismo é uma feijoada. Estimula-se uma competição entre colunistas e repórteres, na qual o juiz é o leitor. A equipe produz paio, língua, costela e cabe à direção – o “Aquário” – definir o sabor da feijoada. Às vezes a mistura é mais ampla, às vezes mais restrita. Mas a lógica é a da feijoada, com a restrição de não poder contrariar o paladar da casa. 

Dentro dessa lógica, o jornalista serve a dois senhores: a linha política da casa (a mais decisiva) e o leitor. Quanto mais espaço conseguir junto ao leitor, mas conseguirá impor seu caráter jornalístico à casa.

Há dois níveis de estilo jornalístico: os que tentam contextualizar e entender os fatos; e os caça-likes – que existiam antes mesmo das redes sociais.

Nesse modelo feijoada, os anos 90 consagraram o estilo caça likes do jornalista-populista, com colunistas comportando-se como políticos atrás da aprovação popular. Se o leitor estava indignado com determinado tema, em vez de esclarecer, o colunista se solidarizava com a indignação. Foi e era dos colunistas-indignados. Mas havia espaço para o contraponto.

Depois, abriu-se um longo e tenebroso calvário para o jornalismo, o período de ódio pré-mensalão e pós-Lava Jato, que começa em 2005 e se estende até alguns anos após o impeachment. Abriu-se mercado para o jornalismo de ódio e para a manipulação escancarada de escândalos

Quase todos aderiram, de jornalistas menos talentosos à nata do jornalismo escrito, inclusive atuais recém-convertidos à democracia, muito atuantes hoje em dia, praticantes de um malabarismo conhecido como movimento Agnaldo Timóteo. Cronistas-ternura, como Nelson Motta, aderiram à violência; cronistas inteligentes, como Arnaldo Jabor, aderiram à truculência primária; jornalistas com história tornaram-se dedo-duros; jornalistas com caráter se retraíram.

Esse modelo sobrevive até o momento em que O Globo troca sua direção e expele os cronistas de ódio da fase anterior. O novo padrão passa a ser o jornalista-britânico, moderno nos hábito, conservador na economia e com texto civilizado. O empoderamento do jornalismo de ódio era tão grande, que Augusto Nunes, então na Jovem Pan, chegou a ameaçar de retaliação a direção de O Globo, devido à demissão do colega Guilherme Fiúza. A partir dali, Nelson Motta voltou a ser doçura, os expoentes do período de ódio tornaram-se democratas desde criancinha e a apoteose mental de Augusto Nunes encolheu. 

A UOL foi um caso bem sucedido de entendimento da nova linguagem, da feijoada digital, e de absorção dos melhores quadros expelidos pelo jornalismo impresso, enquanto a Folha minguava na falta de recursos e de imaginação.

Agora, gradativamente a mídia volta ao padrão pré-mensalão, com duas mudanças significativas.

Nível de inteligência

A primeira mudança expressiva é a redução nítida do nível de inteligência das redações, fruto de uma geração que se formou no silenciamento degradante do jornalismo de esgoto.

Em um documentário sobre mídia, em preparação, há dois depoimentos de analistas de mídia – Caio Túlio Costa e Eugênio Bucci – apontando para a queda do nível de inteligência das redações.

O que vem a ser? Da feijoada midiática, nasce uma linha editorial, que depende muito do grau de informação do Aquário – não apenas informação sobre fatos, mas sobre o espírito do tempo. Em outras eras, essa informação resultava da interação nas reuniões de pauta, da convivência dos jornalistas na redação e do confronto de posições entre os diversos jornalistas.

No período do jornalismo de esgoto – inaugurado em 2005 -, houve um isolamento cada vez maior do Aquário com efeitos nítidos 

  • Perda de legitimidade em relação ao corpo de jornalistas, pelo enquadramento da pauta em teses esdrúxulas e pela submissão humilhante à linha editorial golpista.
  • Esse enquadramento favoreceu o carreirismo nas redações, eliminando a criatividade e a competição saudável entre os jornalistas. Os jornalistas sérios se encolheram, os sem caráter subiram.
  • O período deixou um legado de jornalistas sem caráter público e, pior, sem espaço para questionamentos internos – um dos grandes fatores de arejamento da linha dos jornais.

É significativo o episódio da visita de Maduro (presidente da Venezuela) ao Brasil.

O colunista da Folha, após um período populista, deu-se conta de que seu diferencial é a capacidade analítica. Mas seu aggiornamento não foi acompanhado pelo jornal, por óbvia redução da inteligência da redação.

Um esclarecimento: chamo de caráter público a maneira como o leitor reconhece o jornalista; e caráter privado, o caráter do jornalista no ambiente interno das redações.

O caça likes

Volta-se ao padrão pré jornalismo de esgoto, com a imprensa abrindo espaço para o florescimento do caráter público dos jornalistas. Recria-se a feijoada, uma nova competição mas, agora, o veredito dos leitores é imediato, através dos likes das redes sociais. Imagine-se que nível pode ter uma competição tendo como métricas as likes de Internet.

Aqui, um dia normal de O Globo, o maior jornal do país. 

Ou as mais lidas da Folha.

Mais ainda.

No modelo anterior, havia o hábito da leitura de um jornal diário. O jornal garantia tiragem com as seções mais lights – esporte, cultura, cotidiano -, e preservava política e economia para temas mais pesados. 

Esse hábito permitia uma interação produtiva entre o jornalista e o público. Era possível a mediação, com o jornalista analisando cada medida do governo per si. Elogiando e criticando, o público assimilava os critérios de julgamento, permitindo um jornalismo com menor polarização, embora aproveitado por poucos quadros. 

Agora, além do caça-likes, cada notícia ou nota tem vida própria. O jornalista é julgado instantânea e isoladamente, por cada nota produzida. É o populismo se inserindo por todos os poros da mídia.

Com a notícia escrita fragmentada, o hábito de acompanhamento diário desviou-se para o jornalismo televisivo, os canais fechados. Historicamente, sempre a mídia escrita foi mais profunda que a televisiva. Hoje, em meio ao festival de análises superficiais, é possível encontrar boas análises em uma CNN, no período diurno, ou Globonews – intercalada com o jornalismo de obviedades. São as exceções. Mas nem essas exceções existem na imprensa escrita.

Nesse campo, como definir a cobertura das políticas públicas? Analisar conteúdo, méritos ou vícios, demanda conhecimento, paciência, tempo. E a leitura fica restrita a um público qualificado – mas obviamente minoritário.

Para conseguir likes, há a necessidade de buscar outros modelos de abordagem dos fatos em um novo quadro, de redes sociais, em que não existe privacidade, todas as discussões públicas são reduzidas a papos de boteco e exposição de intimidades das figuras públicas.

Analisar as implicações geopolíticas das viagens internacionais de Lula é restrito a um público de bom nível; falar da compra da gravata de Lula pela Janja.

Peça 3 – o modelo Sonia Abrão

O modelo desenvolvido, então, passa a ser o padrão Sonia Abrão, a colunista de variedades. O jornalista trata de explorar detalhes irrelevantes de celebridades, decisões comuns aos leitores, permitindo, pela mediocrização, o fácil entendimento e o fácil julgamento de cada fato reportado. A personalidade pública fica do tamanho e no alcance da capacidade de julgamento do cidadão comum.

A cobertura passa a tatear formas de obter likes, pequenos truques, tics de cobertura que acabam acolhidos pelo Aquário devido ao emburrecimento coletivo das redações.

Alguns dos ingredientes da cobertura atual:

O paradoxo do que não foi feito.

Há um universo amplo de decisões que podem ser tomadas. Qualquer pessoa tem a possibilidade de escolher um leque restrito de decisões – a menos que tenha o dom da ubiquidade. O truque consiste, então, em transformar em notícia a decisão que não foi escolhida.

O princípio do bode expiatório

Consiste em atribuir todos os atos públicos ao Presidente, mesmo que sejam de responsabilidade de instituições autônomas em relação ao Executivo.

Tome-se o exemplo abaixo. A notícia diz que o Tribunal de Contas da União identificou irregularidades 

“O Palácio do Planalto seguiu a recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU) para dar mais transparência às informações sobre o programa. O pente-fino na gestão Bolsonaro vai de buscas a possíveis irregularidades a uma varredura em cargos de confiança para identificar servidores alinhados com o ex-presidente”.

A manchete atribui a iniciativa ao governo Lula.

Ou o exemplo da votação na Câmara, desfigurando a área ambiental. Foi uma decisão autônoma da Câmara, devolvendo o projeto a Lula – que poderá aceitar ou não as mudanças. Antes que se pronunciasse, desabou uma enxurrada de acusações contra Lula. Essa fuzilaria só acabou nos dias seguintes, quando a própria Marina informou que a responsabilidade era da Câmara e Lula trabalharia para reverter.

O paradigma das negociações espúrias

Lula indicou para o Tribunal Superior Eleitoral dois juristas de renome, professores da mais prestigiada faculdade de direito do país, a do Largo São Francisco. Lá, eles são colegas do Ministro Alexandre Moraes e do ex-Ministro Ricardo Lewandowski.

A jornalista não tem a menor ideia sobre os bastidores da escolha. Mas como os indicados são colegas de Moraes, e o TSE vai julgar Bolsonaro e Zambelli – com alta probabilidade de cassar ambos por crimes óbvios – tira-se a conclusão imediata de que houve barganha. E tal nível de análise ganha a primeira página de um jornal tido como sóbrio.

Incapacidade de entender os jogos da geopolítica

Tome-se a recente visita de presidentes da América Latina ao Brasil. Lula organizou um evento com o presidente da Venezuela, Maduro. Desde os tempos de Hugo Chávez o governo Lula, apesar da enorme ojeriza pessoal de Lula em relação a Chávez, mantinha relações diplomáticas por razões óbvias: a Venezuela era o maior comprador de manufaturados brasileiros e a união dos países da América do Sul confere um peso regional muito maior ao país.

Está certo que não precisaria elogiar tanto o país, mas o que o presidente do Chile, Gabriel Boric Font, ganha em sua cruzada diária contra a Venezuela? Nada. No entanto, criticou Lula e obteve larga repercussão na mídia.

O padrão Gerson Camarotti

Uma partida tem 90 minutos; um governo tem 4 anos. Em ambos os casos, narrativas recheadas de conflitos, disputas, reações. Toma-se, então, uma derrota pontual e trata-se qualquer batalha como se fosse o fim da guerra.

Peça 4 – o sonho e a realidade

Por certo, há inúmeros problemas no governo Lula, de articulação política, de dificuldade para enfrentar o pior Congresso da história. Há o desafio da viabilização da economia, e as dúvidas sobre se o tempo político do arcabouço bate com o tempo político de Lula. E há a necessidade premente de Lula entrar no jogo interno.

Mas há muita coisa sendo feita, sem merecer cobertura da mídia. Não há uma linha sobre políticas públicas, sobre a volta das políticas sociais, sobre o novo protagonismo dos movimentos, sobre avanços na redução dos benefícios fiscais espúrios, sobre a taxação de produtos importados. E sequer se fala sobre os seguidos erros de projeção do Banco Central e do Copom.

Esse clima de derrotismo é típico do complexo de vira-latas que acompanha o país desde a Independência, somado a uma mídia que não consegue se livrar do negativismo que a vem marcando desde a redemocratização. E isso em um país em que a Câmara é chefiada pela pior liderança política da história, pelo representante mais deletério do centrão, por um chantagista reconhecido.

Em vez das críticas a Artur Lira, a cobertura se limita a criticar a possibilidade de uma ação de contenção pelo Supremo.

LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

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