Participação de Deltan Dallagnol no Roda Viva mostra repetição de discurso vitimista e apego desesperado a uma operação usada como partido político no país.
O INDEFERIMENTO DO REGISTRO eleitoral do ex-procurador Deltan Dallagnol pelo TSE e o afastamento cautelar do juiz Eduardo Appio da 13ª Vara Federal de Curitiba pelo TRF-4 mostram que, entra ano, sai ano, e a Lava Jato continua sendo um fio desencapado na política brasileira. A decisão do TSE vem sendo denunciada por Dallagnol e pelo ex-juiz e atual senador Sergio Moro como “vingança política”, orquestrada, à moda das antigas denúncias com powerpoint, por ninguém menos que o presidente Lula.
Essa tese pode render pontos com o público antipetista mais radical, segmento da população que, em sua atuação na Lava Jato, Dallagnol e Moro ajudaram a alimentar, para depois ser convertida em base eleitoral. Mas ela não resiste a um exame mais detalhado da decisão do tribunal, que, aplicando teorias usadas recorrentemente na jurisprudência eleitoral, enxergou no pedido de exoneração do ex-procurador uma mal disfarçada tentativa de fraude à Lei da Ficha Limpa.
Dúvidas legítimas sobre o acerto da decisão do TSE foram superadas pelo artigo de Luiz Peccinin e Priscilla Bartolomeu, intitulado “O que Deltan esconde sobre sua cassação”. Entre outros fatos, os autores registram que, cinco dias antes da exoneração de Dallagnol, o Conselho Nacional do Ministério Público , o CNMP, recebeu inquérito administrativo concluído e com acusação pronta para a abertura de Processo Administrativo Disciplinar, o PAD, contra o ex-procurador. Bastava que esse inquérito tivesse seu curso natural e Dallagnol estaria impossibilitado de concorrer. Cai por terra a ideia, tão repetida nos dias que se seguiram à decisão do TSE, de que a identificação de fraude na conduta do ex-procurador teria sido um exercício de “futurologia” por parte do TSE.Assine nossa newsletter gratuitaConteúdo exclusivo. Direto na sua caixa de entradaAceito receber e-mails e concordo com a Política de Privacidade e os Termos de Uso.
É evidente que a decisão do tribunal, como qualquer outra, tem um pano de fundo político. Mas este envolve menos a “reação” de Lula e forças partidárias e mais um “chega pra lá” do próprio sistema de justiça, para o qual, já desde algum tempo, Dallagnol e Moro deixaram de representar um ativo e passaram a representar um ônus.
A cada vez que vem a público uma amostra das práticas políticas esdrúxulas da dupla, como a divulgação, por Dallagnol, de fake news sobre o PL 2630 (segundo o ex-procurador, o projeto proibiria postagens na internet sobre a Bíblia) ou sua alegada incapacidade de avaliar a gestão da pandemia pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, não há quem não pergunte como puderam ter ocupado assento no Ministério Público e na magistratura.
O indeferimento do registro de Dallagnol, portanto, deve ser lido numa chave dúplice: de um lado, resulta da aplicação regular da lei eleitoral; de outro, representa uma tentativa atrasada e por via transversa, da justiça, de acertar as contas com quem, por negligência e corporativismo da própria justiça, cometeu abusos, saiu impune e deixou a fatura da vergonha para os que ficaram.
Um peso com Moro, outro com Appio
A atuação do juiz Eduardo Appio também vinha se delineando como tentativa de promover semelhante acerto de contas. Desde que assumiu a condução da 13ª Vara Federal de Curitiba, Appio agiu deliberadamente para expor fragilidades da Lava Jato. Entre outras coisas, Appio passou a ordenar diligências em torno das antigas alegações de Rodrigo Tacla Duran, ex-advogado da Odebrecht, que alegava ter sido vítima de extorsão para não ser preso na operação. Até mesmo Dallagnol, que caminha para perder o foro privilegiado tão logo a Câmara conclua a análise dos aspectos formais do indeferimento do seu registro, já estava escalado para depor perante Appio sobre essas acusações.
As condutas de Appio à frente dos casos da Lava Jato estavam longe de ser exemplares. À semelhança dos lavajatistas que visava expor, o agora afastado juiz agia de forma claramente voluntarista e parecia gostar dos holofotes. Dito isso, a resposta que recebeu do TRF-4 revela que, quando se trata de Lava Jato, o Tribunal não tem pudor de utilizar dois pesos e duas medidas.
Dallagnol e Moro passaram a representar um ônus ao sistema de justiça.
Quando teve de examinar a conduta de Moro, que gravou e vazou ilegalmente áudios entre o agora atual presidente Lula e a ex-presidenta Dilma, o TRF-4 disse que a Lava Jato era uma operação “excepcional”, que não precisava seguir “regramento genérico, destinado aos casos comuns”. No caso de Appio, a gravação de chamada telefônica com voz parecida com a do juiz bastou para que ele fosse afastado do cargo e tivesse seu laptop, desktop e celular confiscados antes mesmo de poder apresentar sua defesa. Moro teve todo o tempo do mundo para destruir os diálogos impróprios que manteve com Dallagnol, revelados pelo The Intercept Brasil. Aliás, jamais foi investigado por suas condutas expostas pela Vaza Jato. À semelhança do que faz o CNMP com promotores, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entende que a exoneração de juízes extingue investigações por violações funcionais.
Comissão da Verdade na Lava Jato
Nos dois casos, é ilusão achar que as decisões dos tribunais vão colocar um ponto final às polêmicas em torno da operação. Dallagnol não apenas não vai se resignar com a abreviação de seu mandato, como seguirá aproveitando o espaço que lhe é dado pela mídia para desinformar a população, caluniar juízes de tribunais superiores, pregar a desobediência à lei e naturalizar as irregularidades que praticou.
Em entrevistas à Folha de São Paulo, a O Globo, e ao Roda Viva, entre outros, o ex-procurador insistiu que não violou a Lei da Ficha Limpa, já que, quando de sua exoneração, “não havia nenhum PAD pendente contra si” (a tese adotada pelo TSE, porém, nunca foi de que o ex-procurador violou a letra da lei, mas sim que agiu conforme a letra da lei para frustrá-la). Disse ainda, sem apresentar nenhuma prova, que o relator do caso no TSE “entregou [sua] cabeça em troca da perspectiva de fortalecer sua candidatura ao Supremo”. Disse esperar que a Câmara negue cumprimento à decisão do TSE, mantendo-o no cargo. E justificou a indústria de palestras que montou em seu gabinete, revelada pela Vaza Jato, usando um mix de capitalismo e Bíblia.
Já o afastamento de Appio, mesmo que venha a ser comprovada conduta imprópria do juiz, deixará para sempre no ar o cheiro de atuação política do TRF-4, para quem a obediência às leis só parece ter valor se servir à proteção da Lava Jato e de lavajatistas.
Dallagnol seguirá aproveitando o espaço dado pela mídia para desinformar a população.
Se tudo permanecer como está, o Brasil seguirá nessa espiral improdutiva: julgadores tentarão remediar os desmandos da Lava Jato, com maior ou menor aderência ao direito e voluntarismo. Já os lavajatistas vão se dizer perseguidos, enquanto manipulam a lei, agem para deslegitimar as instituições e acumulam um histórico de abusos que poucos ousam negar.
Escapar disso vai requerer um esforço institucional da magistratura e do Ministério Público de passar a limpo a operação, submetendo-a, como disse há pouco o jornalista Kennedy Alencar, a uma verdadeira “comissão da verdade”.
Essa medida pode até não resultar em punições, já que muitas das transgressões de juízes e promotores na Lava Jato caminham para a prescrição administrativa. Ainda assim ela teria duas inegáveis virtudes: fecharia a porta tanto para o cinismo de Dallagnol quanto para o voluntarismo de Appio; e ajudaria o país a encarar de frente o imenso passivo deixado pela operação, que envolve delações imprestáveis, acordos de leniência disfuncionais, sobretudo, e a transformação paradoxal da justiça numa terra de ninguém.
OLHA ESSE DADO todos os dias milhões de brasileiros são impactados pelo trabalho do Intercept. Nossas reportagens já foram usadas em projetos de lei, resultaram na punição de abusadores e foram utilizadas para responsabilizar grandes empresas. Nós incomodamos juízes corruptos, grileiros, mineradoras, políticos e generais.
FÁBIO SÁ E SILVA ” THE INTERCEPT” * BRASIL)