Maria das Graças pediu para ser curadora do acusado de esfaquear Bolsonaro, mas a magistrada Cíntia Letteriello preferiu nomear um defensor público
A juíza Cíntia Letteriello, titular da 2a. Vara de Família e Sucessões de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, negou a curatela provisória de Adélio Bispo de Oliveira a Maria das Graças Ramos de Oliveira, que é irmã do acusado de esfaquear Jair Bolsonaro, em 6 de setembro de 2018.
A decisão foi tomada pela juíza em 17 de abril deste ano, no mesmo dia em que a juíza realizou entrevista com Adélio na sala de videoconferência da Penitenciária Federal de Campo Grande, onde ele se encontra preso desde setembro de 2018.
Estavam presentes, além da juíza, o defensor público William Coelho Abdonor e o representante do Ministério Público Kristiam Gomes Simões. Não estavam presentes Maria das Graças nem seus advogados, Edna Teixeira e Alfredo Marques.
Maria das Graças, Edna e Alfredo não moram em Campo Grande, mas poderiam participar de maneira remota. Não seria a primeira vez. Edna e Alfredo acompanharam online a audiência presencial que Maria das Graças teve com a magistrada, em março deste ano.
Na ocasião, os três reafirmaram à juíza as razões que levaram Maria das Graças a solicitar a curatela do irmão, já que, considerado inimputável pela 3a. Vara Federal de Juiz de Fora, ele tinha até alguns meses antes o advogado criminalista Zanone Júnior como seu curador processual.
Além disso, conta com a Defensoria Pública da União na defesa dele, sem que nenhum membro da família tenha sido consultado sobre a situação de Adélio, mesmo com a decisão da Justiça Federal de que o irmão não responde criminalmente por seus atos.
Maria das Graças tenta desde janeiro de 2022 se aproximar do irmão, com a ajuda deste jornalista. Durante quatro meses, tentou realizar o cadastro na Penitenciária Federal para visitar Adélio, com a mediação da Defensoria Pública da União.
Teve reunião online com o defensor Sílvio Rogério Grotto de Oliveira, em que participei, como representante legal de Maria das Graças (nomeado pelo defensor). A irmã de Adélio enviou todos os documentos solicitados pelo defensor público, para realização do cadastro.
Ainda assim, seu cadastro não foi formalizado. Meses depois, o defensor comunicou que estava mudando de setor e transferiu a demanda para um colega. Era julho de 2022, e eu já havia comunicado o ouvidor da Defensoria sobre a falta de resposta do órgão quanto ao pedido de Maria das Graças para a realização do cadastro na Penitenciária.
Foi quando a advogada Edna Teixeira, que é de Fortaleza e já trabalhou no Judiciário do Ceará, entrou em contato comigo durante uma live no Space Twitter. Eu dava entrevista sobre um tema de que não me recordo, e Edna tinha lido artigo meu sobre o caso Adélio e a luta da irmã para visitá-lo.
A apresentadora do Space Twitter disse que o tema da entrevista era outro, mas insisti para falar com Edna, ao vivo. Foi quando ela disse que, como advogada, poderia entrar no caso, por razões humanitárias, e eu então passei o meu contato. Falei com Edna por telefone e, alguns dias depois, viabilizei o contato dela com Maria das Graças, que lhe passou uma procuração.
Edna chamou para ajudá-la no caso o advogado Alfredo Marques, que eu não conhecia. Os dois, então, providenciaram o cadastro, que só foi deferido após o primeiro turno das eleições presidenciais, em outubro. Em dezembro, Maria das Graças pode realizar a primeira visita virtual.
Após o encontro com o irmão, Maria das Graças me deu entrevista e, chorando, revelou suas impressões. Era a primeira vez, em quatro anos e três meses, que Adélio falava com alguém de seu círculo familiar. Até então, seus contatos se limitavam a autoridades, carcereiros e, eventualmente, a outros presos, durante banho de sol.
Maria das Graças voltaria a falar com o irmão de maneira virtual outra vez, ela em Montes Claros, Minas Gerais, onde reside, e Adélio em Campo Grande. Poderiam ter sido três as visitas virtuais, mas, em uma delas, o Departamento Penitenciário deixou de enviar a senha de acesso.
Em março, foi autorizada a visita presencial, e eu levei Maria das Graças a Campo Grande, com recursos meus. As visitas virtuais duraram vinte minutos, em um caso, e trinta, em outro. A visita presencial demorou mais de três horas.
Depois da visita presencial, Maria das Graças me disse que estava convencida mais do que nunca do acerto de ter constituída Edna Teixeira como sua advogada. Ela perguntou a Adélio se podia levar o pedido de curatela adiante, e ele respondeu que sim.
Maria das Graças tem cinco anos a mais que Adélio e, quando seus pais morreram, foi ela quem cuidou de Adélio. Um dos filhos de Maria das Graças, que mora no interior de São Paulo, contou-me que dormia no mesmo quarto do tio, e se inspirou nele quando deixou Montes Claros para trabalhar fora e também quando se batizou em uma igreja evangélica.
Maria das Graças, o marido e os filhos também moraram com Adélio em Uberaba, Minas Gerais, quando este já tinha emprego fixo na cidade e levou a família da irmã para terem melhores oportunidades de trabalho. Enfim, a relação de afeto entre eles é facilmente comprovável.
Mas não foi isso que a juíza Cíntia Letteriello escreveu em sua decisão, e no termo da entrevista de Adélio, que, apesar de ter sido realizada na sala de videoconferência da Penitenciária, não teria registro em vídeo, o que é grave. Entrevista sem a autora do pedido de curatela e sem os seus representantes, de que trataremos adiante.
Pelo que disse Maria das Graças, na visita virtual e também nas presenciais, Adélio reclamou do advogado que o representou durante o processo em que foi sentenciado a cumprir medida de segurança – na linguagem técnica, ele foi absolvido impropriamente. Adélio teria dito que Zanone o trancou na cadeia e jogou a chave fora.
Contou que sabia que foi o advogado quem pediu para transferi-lo para uma unidade onde se aplica o regime disciplinar diferenciado (RDD) e onde estão presos líderes de facção. Segundo a irmã, Adélio até a orientou sobre o que fazer com os recursos que tinha em conta corrente quando foi preso. No processo, consta o saldo de cerca de R$ 3 mil.
Na entrevista que me concedeu na saída da penitenciária, Maria das Graças afirmou que viu lágrimas em Adélio quando ela falou que o considerava um filho. Para quem duvida se o que diz Maria das Graças é verdade, seria interessante que a Penitenciária liberasse o vídeo da visita, já que é monitorada.
A juíza Cíntia Letteriello deve ter poderes para solicitar a gravação, considerando o interesse legítimo de Maria das Graças pela curatela do irmão, mas, independentemente dessa possibilidade, sua decisão de negar o pedido da irmã tem como fundamento um relato oposto ao que foi contado pela familiar de Adélio. Segue um trecho da decisão da juíza Cíntia:
A seguir a MM. Juíza passou a apreciar o pedido de curatela provisória formulado pela requerente proferindo a seguinte decisão: “No tocante ao pedido de nomeação da requerente para exercer o múnus de curadora provisória do curatelando, tenho pelo seu indeferimento. O art. 1.775 do CC/02 estabelece a ordem de preferência de nomeação de curador, porém, a norma não tem caráter absoluto de modo a impor que as pessoas mais próximas ao curatelado exerçam a curatela. Havendo outro familiar, ou até terceiro, que possua melhores condições de exercer o encargo, suprindo as necessidades do interditando, então, a ordem de preferência cede para que se possa atender o princípio do melhor interesse do incapaz. Pois bem. Durante a entrevista, o curatelando afirmou, por diversas vezes, que não deseja que a sua irmã Maria das Graças, ora requerente, obtenha sua curatela, pois acredita que necessita de um “auxílio afetivo” (sic) que outros parentes têm melhor condições de lhe dispensar. Indicou o nome de seu sobrinho Marciton Ramos Neves e de sua irmã Maria Aparecida Ramos de Oliveira (nome de casada) ou Maria Aparecida Bispo de Oliveira. Também, citou o nome de sua sobrinha Jussara Ramos, porém, disse que a autora havia dito na visita que aquela falecera. Quando perguntado por qual motivo, então, teria a sra. Maria das Graças requerido sua curatela, o sr. Adélio afirmou que não sabia o motivo, até porque a autora era a irmã em maior situação de vulnerabilidade financeira, dentre todos os outros irmãos, acrescentando que não sabia informar com que recursos ela teria vindo a Campo Grande para a visita na penitenciária. Desse modo, percebe-se que existem outros parentes, inclusive na mesma ordem de preferência legal (irmãos), os quais poderiam exercer tal munus. Isso posto, concedo o prazo de 5 dias, para que a parte requerida indique a qualificação de Maria Aparecida Ramos de Oliveira (nome de casada) ou Maria Aparecida Bispo de Oliveira, de Marciton Ramos Neves, para que estes possam integrar a relação processual e averiguar quem melhor poderá desempenhar o encargo de curador provisório do requerido. Intime-se”. Saem os presentes intimados. Nada mais.
Quando estive em Montes Claros, em junho de 2021, para a apuração do documentário sobre o evento de Juiz de Fora que mudou a história do Brasil, procurei os parentes de Adélio.
Maria das Graças foi a única que deu entrevista e falou sobre o que considerava profundamente injusto: o advogado Zanone não atendia a seus telefonemas, para saber notícias do irmão.
Passei a falar com Maria das Graças por telefone, numa relação entre jornalista e fonte, e vi que sua vulnerabilidade social era o que a impedia de tentar interceder pelo irmão. Escrevi sobre a condição dela algumas vezes e, sempre no limite ético do jornalismo, procurei ajudá-la na busca por contato com o irmão.
Havia e há, é claro, o interesse jornalístico de buscar informações sobre o que motivou Adélio a cruzar com Bolsonaro naquele 6 de setembro de 2018. Na elaboração do documentário, vi que a narrativa oficial não se sustentava.
Adélio não era o militante de esquerda que foi apresentado. Pelo contrário. Sua página no Facebook tinha postagem em que defendia um projeto de lei com a coautoria de Jair Bolsonaro, então deputado federal, o de redução da maioridade penal para 16 anos.
Ele também defendia outra bandeira de Bolsonaro: a presença de militares no sistema educacional do Brasil. Adélio também tinha estado no clube de tiro .38 dois meses antes do evento de Juiz de Fora.
Adélio morava num quartinho sem banheiro em Florianópolis pelo qual pagava 250 reais por mês, e o curso de tiro que teria feito custava quase o triplo desse aluguel. Ele também não tinha arma, e Carlos Bolsonaro estava na capital catarinense no mesmo dia em que Adélio fazia o curso.
O .38 tem logo na entrada o diploma referente à medalha que Carlos Bolsonaro entregou aos donos do local, o que demonstra a proximidade do vereador carioca com o clube que acolheu Adélio para um curso de tiro.
Uma imagem do dia 6 de setembro de 2018 mostra Adélio tentando se aproximar de Carlos Bolsonaro, em Juiz de Fora, quando este aguardava o pai terminar um discurso em cima do carro. Ao ver Adélio, Carlos Bolsonaro se trancouno veículo. Sempre pensei nas probabilidades estatísticas da proximidade entre Carlos Bolsonaro e Adélio em dois locais, num período de 60 dias, considerando a trajetória dos dois.
Adélio nunca tinha estado em Juiz de Fora e, em seu depoimento, contou que desembarcou lá sem saber que Bolsonaro realizaria ato público uma semana depois. Coincidências existem, mas é necessário que uma investigação jornalística mostre se os fatos seriam apenas mera coincidência.
Há também outros eventos que fogem à normalidade. Nada comprova que a faca juntada ao processo seja mesmo o objeto que Adélio levava consigo embrulhado numa folha de jornal. Ela foi entregue à Polícia Federal mais de uma hora depois do evento, pois tinha sido deixada com um vendedor de frutas da cidade.
Na faca, segundo a perícia, foram encontrados elementos do DNA de Bolsonaro (o que poderia ser obtido a qualquer momento, mas não as digitais de Adélio no cabo (nem de nenhuma outra pessoa, já que tinha sido tocada por diferentes indivíduos).
Também não é normal que os seguranças de Bolsonaro tenham sido promovidos ou levados para a Abin depois do episódio em que, aceita a narrativa oficial, falharam miseravelmente no dia 6 de setembro.
Além disso, o médico que Bolsonaro apresentou como o salvador de sua vida, Paulo Gonçalves, que ele homenageou como presidente da república, foi voluntário no procedimento cirúrgico a que ele foi submetido na Santa Casa de Misericórdia. E sua especialidade é angiologia. E ele estava no almoço organizado para Bolsonaro duas horas antes, com a camisa amarela da campanha.
A aproximação de Maria das Graças do irmão é uma possibilidade concreta de tirar Adélio das garras do Estado, que o mantém estranhamente numa unidade prisional, sem tratamento psiquiátrico, como apontou o último laudo. Se ele é paranóico, como apontaram os legistas, teria de ser tratado em uma unidade hospitalar ou receber acompanhamento médico morando com a família.
Na última sexta-feira, Maria das Graças compareceu à Defensoria Pública da União em Montes Claros, para mais uma visita virtual. Mas o encontro online não ocorreu porque Adélio teria se recusado, justamente depois da entrevista judicial.
Por que ele teria mudado o comportamento e rejeitado pela primeira vez o contato com a irmã? É estranho, muito estranho.
Maria das Graças me ligou depois de sair da Defensoria sem poder ver o irmão pela tela do computador. Ela chorava muito.
Nesta quarta-feira, entrei em contato com a juíza Cíntia Letteriello, por meio do WhatsApp oficial da Vara, como orientou sua assessoria. A juíza já me conhecia, já que, antes do comparecimento de Maria das Graças ao fórum de Campo Grande, fui recebido pela magistrada, com quem conversei por cerca de uma hora. Fui eu que pedi que ela recebesse a irmã de Adélio, com o que concordou a juíza, desde que os advogados acompanhassem por via remota.
Mesmo assim, apresentei-me novamente pelo WhatsApp, como mostra a mensagem:
Meu nome é Joaquim, sou repórter do site Brasil 247. Estou fazendo reportagem sobre o processo de curatela de Adélio Bispo de Oliveira. Tive acesso a algumas informações e gostaria de esclarecer algumas dúvidas. Seguem as perguntas:
Soube que em recente entrevista com Adélio Bispo de Oliveira os advogados da autora da ação de curatela não participaram.
Por que não participaram?
A informação que obtive é a de que eles teriam sido intimados pelo Diário da Justiça, porém a intimação fazia referência a páginas do processo a que eles não tinham acesso. Por que não tinham acesso ao processo?
Também tive acesso a uma mensagem de WhatsApp em que o emitente informa que seria enviado link para a entrevista remota. Porém os advogados, segundo uma sequência de mensagens, não receberam o link.
Pergunto a razão do não envio.
Soube que, depois da entrevista, a Dra. Cíntia concedeu a curatela provisória a um defensor público do Estado, embora a irmã seja a autora da demanda.
Tive acesso também ao termo da entrevista em que a Dra. Cíntia relata que Adélio Bispo de Oliveira teria rejeitado a concessão da curatela à sua irmã Maria das Graças Ramos de Oliveira.
Essa rejeição contrariaria manifestação de Adélio feita à própria irmã, por ocasião de sua visita presencial ao presídio, conforme esta disse em entrevista realizada por mim.
Não parece estranho que Adélio tenha dito que não concorda com a concessão da curatela à irmã depois da entrevista judicial em que esta não estava presente?
Não estaria havendo pressão para que ele continue submetido ao poder do Estado quando uma parente próxima pretende assumir sua curatela?
A pressão poderia ocorrer pelos próprios agentes responsáveis por sua custódia, e nesse sentido é importante frisar que, segundo relato de Maria das Graças Ramos de Oliveira, na visita presencial que realizou, agentes da penitenciária a teriam ameaçado de que as visitas seriam dificultadas caso concedesse entrevista a mim.
Essa ameaça, é necessário registrar, viola o direito à liberdade de expressão da irmã de Adélio Bispo de Oliveira.
Informo que, depois da entrevista judicial, Maria das Graças não conseguiu realizar a visita virtual ao irmão, por alegada negativa deste, o que é muito estranho, já que a irmã, antes do evento judicial, tinha visitado o irmão em três oportunidades, duas delas de maneira virtual.
Por fim, pergunto a razão da Dra. Cíntia, que conversou pessoalmente com Maria das Graças Ramos de Oliveira, ter-lhe negado a curatela provisória, apesar do pedido legítimo que esta fez junto ao juízo.
Estou preparando a reportagem para publicação nesta quarta-feira, 24 de maio, às 18 horas.
Desde já, agradeço pela atenção.
A resposta do WhatsApp usado oficialmente pela juíza é estarrecedora:
“Dusahsudejefisnedjxje”, respondeu.
Em seguida, comentei:
“Não entendi a resposta”.
O responsável pelo WhatsApp, que seria a própria juíza, postou:
“Djf de ldj da as hfhfdhg”.
“Continuo sem compreender”, respondi.
O responsável pelo WhatsApp postou:
“Este é um canal exclusivo para atendimento dos advogados constituídos nos autos. Por favor, entre em conta com o(a) seu(sua) advogado(a) para solicitar informações sobre o andamento processual, ou solicite que o(a) advogado(a) entre em contato com o gabinete por meio desse WhatsApp.”
Ponderei:
“Fui orientado por sua assessoria a entrar em contato por este canal, que a senhora responderia. Lamentavelmente, a sua resposta foi uma zombaria, pelo que entendi.”
O responsável pelo WhatsApp digitou:
“A dra Cintia está em audiência. Assim que terminar, vou informá-la do seu contato. Com qual assessora o sr recebeu essa orientação?”
Perguntei:
“Com quem estou falando, por favor?”
Não houve mais resposta.
Tire você mesmo suas conclusões.
.x.x.x.x.
PS: Procurei os advogados de Maria das Graças, e eles disseram que não poderiam dar entrevista sobre o processo. Confirmaram apenas que o link da visita virtual não foi enviado, apesar da mensagem por WhatsApp de que isso seria feito. Também disseram que a intimação pelo Diário Oficial não poderia ser atendida em razão da impossibilidade de acesso ao processo.
JOAQUIM DE CARVALHO ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)