Os Portugueses vivem em permanente representação, tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima inconsciente e a correspondente vontade de a compensar com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo. A reserva e a modéstia que parecem constituir a nossa segunda natureza escondem na maioria de nós uma vontade de exibição que toca as raias da paranóia, exibição trágica, não aquela desinibida, que é característica de sociedades em que o abismo entre o que se é e o que se deve parecer não atinge o grau patológico que existe entre nós.
Os Portugueses não convivem entre si, como uma lenda tenaz o proclama, espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, e a convivência é uma osmose do mesmo ao mesmo, sem enriquecimento mútuo, que nunca um português confessará que aprendeu alguma coisa de um outro, a menos que seja pai ou mãe…
Costuma dizer-se que Portugal é um país tradicionalista. Nada mais falso. A continuidade opera-se ou salvaguarda-se pela inércia ou instinto de conservação social, entre nós como em toda a parte, mas a tradição não é essa continuidade, é a assumpção inovadora do adquirido, o diálogo ou combate no interior dos seus muros, sobretudo uma filiação interior criadora, fenómeno entre todos raro e insólito na cultura portuguesa. É a inserção do alígeno ou alógeno no processo da produção nacional que constitui a norma e institui o seu autor no papel de criador que nós entendemos sempre como invenção do mundo a partir de nada. Do nada que nos anteceda.
De onde procede tão calamitoso comportamento que não é apenas intelectual mas ético? Sem dúvida do divórcio profundo entre a minoria «cultivada», que vive em estado de guerrilha perpétua e só pode exceder a sua vontade de poderio com o recurso dessa efracção em fractura da produção portuguesa sem distância para se poder impor como «interessante», e a massa anónima do povo português que não participa nesse debate.
Depois do 25 de Abril, a possibilidade de participação dessas duas metades desiguais adquiriu um grau maior de verosimilhança, mas sob formas equívocas na sua grande maioria. Não é o povo que partilha agora melhor e com outro fervor da nova produção cultural, mas a franja escolarizada dele que já existia no antigo regime. De novo, aparece uma atenção de outro tipo que visa o povo, que conta inclusive com a sua hipotética colaboração, mas que durante muito tempo só poderá ser participação passiva, e não autodescoberta, quer dizer, autognose. A classe intelectual e o público em geral acedem a um grau superior de autoconsciência, com a descoberta de um Portugal oculto, por excesso de potência até, como excelentes filmes e algumas tentativas teatrais recentes o têm revelado (pensamos no famoso Trás-os-Montes e no teatro de Demarcy — Teresa Mota, Cornucopia, Grupo de Campolide, etc.) mas é necessário não ter ilusões excessivas quanto ao carácter dessa autognose.
Ela não é ainda radicalmente diferente do que representou no século xix o romance de Camilo, de Júlio Dinis ou Eça de Queirós. Destes três exemplos, acaso e contrariamente a uma tradição estabelecida, o mais realista (quer dizer aquele que possui o maior grau de autognose vivida) é o de Júlio Dinis… O Portugal do século xix parece-se mais (por dentro e até por fora) com o de Júlio Dinis do que com o de Eça. Mas só se parecerá consigo mesmo quando o olhar com que se fixará for como é, por exemplo, o caso da literatura e sobretudo do cinema norte-americano — e na Europa, do italiano —, o olhar mesmo do português, ou dos portugueses com a consciência adequada da vida do país em que realmente vivem e morrem — um olhar sujeito, quer dizer, o fim de um Portugal-objecto como é hoje para todos nós, que nos ocupamos da «cultura», a realidade portuguesa.
Eduardo Lourenço, in ‘Labirinto da Saudade – Repensar Portugal (1978)’