Quando a Lava Jato escancarou as oportunidades de negócios do compliance, inspirou autoridades diretamente envolvidas com a operação
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Peça 1 – O compliance da Eletrobras
No episódio 5o da série Lava Jato Lado B, mostramos como foi montada a indústria do compliance no país, estimulada pela Lava Jato. Compliance é um projeto contratado por empresas junto a escritórios de advocacia para cercar as possibilidades de corrupção. Significa “agir de acordo com uma regra”.
Em cima desse princípio, foi criada uma parafernália visando transformar em um modelo rentável para os escritórios, e caríssimo para as empresas;
A enorme ofensiva anti-corrupção, coordenada pelo Departamento de Justiça (DoJ) norte-americano, seguindo a estratégia geopolítica do Departamento de Estado, consistia em cooptar procuradores e juízes em vários países. E, com base na Lei Anticorrupção norte-americana, desmontar os setores empresariais que competiam com grandes grupos norte-americanos.
A cooptação se dava assim. Em um primeiro momento, as informações fornecidas pelo DoJ davam força política aos Ministérios Públicos nacionais. No segundo momento, abria-se espaço para a chamada “porta giratória”, com procuradores saindo do serviço público para trabalhar com escritórios de compliance, nas próprias empresas investigadas por eles, com remunerações milionárias.
No episódio em questão, mostramos um dos pontos centrais do escândalo brasileiro: a contratação do escritório de Ellen Gracie, ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal, para supervisionar os serviços de compliance na Petrobras e, depois, na Eletrobras.
Ela montou parceria com escritórios americanos, estreitamento ligado ao DoJ, aumentou em várias vezes o objeto a ser investigado e conseguiu, na Eletrobras, o feito dos honorários pagos serem superiores à corrupção apurada. E o escritório contratado por ela era o responsável, também, pelo pagamento de seus honorários.
O caso Eletrobras subiu para o Tribunal de Contas da União (TCU) que atestou um enorme conjunto de irregularidades.
- Dispensa de licitação para a contratação da Hogan Lovells.
- Sobrepreço no pagamentos dos serviços.
- Pagamento de serviços sem comprovação de que foram prestados.
- Contratação direta, sem demonstração prévia dos requisitos para a não licitação dos serviços.
- Redução sem justificativa no escopo do contrato.
- Elevação de preços contratuais acima do limite legalmente autorizado.
- Adoção ilegal de serviços terceirizados.
- Reembolso de despesas do contratado, sem nenhuma forma de controle pela Eletrobras.
- Contratação direta de advogados para uma Comissão Independente de Gestão da Investigação (Cigi), sem comprovação de inexigibilidade na licitação.
- Sobrepreço no pagamento aos membros do Cigi – dentrs os quais, a própria Ellen Gracie.
O relatório apurou um total de R$ 285,6 milhões desviados em 2014 e R$ 16 milhões em 2015.
Mais: em alguns casos, como Angra 3, todas as informações levantadas pelo escritório Hogan Lovells tiveram como base investigações já realizadas por autoridades públicas brasileiras.
Além disso, com exceção da UTE Angra 3, as informações levantadas pelo escritório não permitiram concluir se houve envolvimento de funcionários da Eletrobras nos mal feitos. Os serviços se prestaram exclusivamente para permitir o reconhecimento de perdas contábeis e atender a demandas junto à SEC (a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA).
A investigação arrolou 53 responsáveis pelas irregularidades. Dois deles ocupavam, ao mesmo tempo, os cargos de presidente da Eletrobras e membro do Conselho de Administração; 23 eram membros do Conselho de Administração; 13 integravam a Diretoria Executiva; 5 eram assessores de nível gerencial; 3 eram membros da Cigi – criada justamente com o objetivo de supervisionar as investigações – e 7 eram prestadores de serviços, sendo o escritório Hogan Lovells o principal deles.
Segundo o Ministério Público de Contas,
“o modelo adotado pela Eletrobras e por sua contratada fugiu completamente do padrão usualmente observado em subcontratações, revelando a contratação direta de 7 empresas, que prestaram serviços semelhantes, praticamente sob as mesmas condições, ainda que sob discreta coordenação de uma delas, porém albergadas sob um único contrato guarda-chuva”.
Peça 2 – os mecanismos da indústria do compliance
No dia 28 de abril de 2019, GGN mostrou como indústria de compliance e Ministérios Públicos se auto alimentavam
“Não se irá entender a articulação de procuradores e juízes punitivistas ao redor do mundo, unidos em torno da bandeira anticorrupção, se não incluir na analise a milionária indústria do compliance – a tecnologia dos modelos de governabilidade destinados a vacinar uma empresa contra a corrupção e que tem nos grandes escritórios de advocacia e empresas de auditoria os maiores beneficiados.
Em quase todos os países, o jogo é padrão. No início, uma campanha sem quartel dos procuradores contra empresas suspeitas, infundindo terror nos empresários direta ou indiretamente ameaçados pelas investigações. Depois, a campanha pela implementação de sistemas de compliance nas empresas por grandes escritórios de advocacia, abrindo um mercado de trabalho para os procuradores”.
(…) Os Estados Unidos forneceram o modelo. Não é por outro motivo que os maiores beneficiários têm sido grandes escritórios de advocacia e de auditoria norte-americanos (mais à frente, quando o fator Lava Jato se tornar irrelevante, não haverá como o Congresso deixar de abrir uma CPI para analisar os contratos fechados Ellen Gracie com Petrobras e Eletrobras para implantação de sistemas de compliance – consumindo mais recursos do que as suspeitas de propina em cada estatal.
Na matéria, relatamos o caso da procuradora norte-americana Sandra Moser, que supervisionou os processos e acordos com a Petrobras, Odebrecht e Brasken. Em setembro de 2018, assinou, pelo DoJ, o escandaloso class action da Petrobras – pelo qual a empresa se comprometeu a pagar US$ 3 bilhões em indenizações para acionistas que entraram com ações contra a empresa.
Dois meses depois, Sandra deixou o Departamento de Justiça e foi trabalhar no escritório Quinn Emanuel, para cuidar justamente da conta da Odebrecht.
Em 21 de outubro de 2019, mostramos os negócios de Ellen Gracie com Petrobras e Eletrobras.
“Coube a ela a contratação da Baker McKenzie para a Petrobras e a Hogan Lovells para a Eletrobras. Ellen ampliou o escopo inicial das investigações em cinco vezes em relação ao planejamento inicial. Foram contratados mais de cem profissionais.
Segundo levantamento da Broadcast, as investigações foram ampliadas para mais nove empresas. No início, era para ser apenas nas usinas Angra 3, Jirau, Belo Monte e Santo Antônio. Ellen ampliou para as usinas Teles Pires, São Manoel, Mauá 3, Simplícia e Tumarin”.
Em 16 de junho de 2022, contamos a história do ex-procurador da Lava Jato, Carlos Fernando dos Santos Lima.
“O escritório de advocacia W Faria, que ostenta em seu quadro de funcionários o ex-procurador da Lava Jato em Curitiba, Carlos Fernando do Santos Lima, recebeu indevidamente 28 milhões de reais da Eletrobras, segundo uma auditoria realizada por uma das secretarias de controle externo de âmbito nacional do Tribunal de Contas da União, a SecexEstataisRJ”.
(…) A banca que tem como “consultor” o ex-procurador Carlos Fernando, um dos mais influentes da Lava Jato em Curitiba, foi subcontratada pela Hogan Lovells e recebeu 28 milhões de reais pelos serviços terceirizados. A inspeção do TCU classificou o valor como 100% “superfaturado”.
(…) O ministro Bruno Dantas se disse “escandalizado” com os valores apurados na auditoria: a Hogan Lovells fora contratada por mais de 340 milhões de reais “para verificar, em abstrato, um possível dano” de 32 milhões de reais à Eletrobras, disse o ministro.
“Eu me escandalizei”, disse o ministro Bruno Dantas. “Não, ela [Eletrobras] não foi lesada em 32 milhões de reais. Ela foi lesada em 372 milhões [de reais], porque 340 [milhões de reais] ela foi lesada pela Hogan Lovells, e 32 milhões [de reais], pelas empresas que desfalcaram os cofres da estatal.”
Sete anos antes, em 30 de dezembro de 2015, nosso saudoso colunista André Motta Araújo trazia dados impressionante sobre o setor.
“Os departamentos de “compliance” das grandes corporações tomam uma dimensão incrivel, em bom número de empresas é o MAIOR DEPARTAMENTO DA EMPRESA, é uma atividade gerada pelo pavor da empresa ser processada e portanto não se medem custos. Os executivos atraídos para essa atiidade são de perfis “procuradores-investigadores-auditores” tipos chamados “cris-cris” com prazer em procurar pelo em ovo em todas as transações.
Além dos departamentos internos já super custosos vem as consultorias de vários tipos, as de investigação interna e externa, checagem e cópias de arquivos, leitura de e-mails, verificação de contas de hoteis, restaurantes, telefones, que podem ser empresas de auditoria, de investigação tipo Kroll, escritórios de advocacia que exploram esse grande filão de faturamento, também estão se criando consultorias específicas de compliance.
Toda esse grande atividade é ECONOMICAMENTE ESTÉRIL, não agrega valor nem para a empresa e nem para a sociedade”. Os custos somados dessa “indústria” superam dezenas de vezes o potencial de corrupção que visam combater.
Peça 3 – os embalos da Lava Jato para os negócios do setor
Quando a Lava Jato escancarou as oportunidades de negócios do compliance, inspirou especialmente autoridades diretamente envolvidas com a operação, como o juiz federal Marcelo Bretas e o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.
Mostramos esse embricamento em 23 de abril de 2019.
“Um certo Instituto New Law deu o passo mais atrevido na consolidação do lobby da indústria do compliance no Brasil – uma cadeia improdutiva que tem exposto estatais brasileiras a contratos gigantescos com escritórios de advocacia americanos, visando implementar processos contra corrupção.
De 23 a 26 de abril haverá a “Missão Nova York – Anticorrupção e Compliance”, com a ida de 25 autoridades brasileiras para contatos com escritórios de advocacia, empresas de investigação sediadas em Manhatan e universidades.
Do grupo fazem parte o Ministro Luis Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), o juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato Rio de Janeiro, e Maurício Valeixo, diretor geral da Polícia Federal.
Dois dos diretores do Instituto são juízes federais. Aparentemente, há uma perda generalizada de pudor atingindo todas as instâncias”.
Peça 4 – a articulação dos escritórios
O lobby do setor se articula em torno de grandes fóruns globais, com a presença de grandes escritórios de advocacia e de dirigentes de países periféricos. Como é o caso do World Justice Project, que aconteceu em 2019.
As ligações internacionais desses escritórios permitem com que atuem simultaneamente em trabalhos de compliance e, também, de lavagem de dinheiro. É o caso do Baker Mackenzie – contratado pela Petrobras – que acabou envolvido na Operação Pandora, que investigou o Panama Papers, conforme reportagem do GGN de 10 de outubro de 2021.
“Com 4.700 advogados em 46 países e receita de US $ 3,1 bilhões, Baker McKenzie se autodenomina “o escritório de advocacia global original”. É um entre cerca de uma dúzia de escritórios nos Estados Unidos e no Reino Unido que estabeleceram grandes redes internacionais e transformaram a própria profissão de advogado”, segundo reportagem publicada pelo International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ).
Contudo, por trás dos pronunciamentos de transparência, a Baker McKenzie é um dos pilares do mercado de offshores, que favorece os ricos à custa dos tesouros das nações e dos cidadãos comuns. Tal escritório atuou junto a mais de 440 empresas offshore registradas em paraísos fiscais, sendo responsável pela conexão de seus clientes com prestadores de serviços offshore.
Agora, à medida em que a Lava Jato é passada a limpo, a posição do TCU permitirá um início de abertura em um mercado obscuro e que pratica pouca compliance.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)