E BOLSONARO, QUEM DIRIA, PERDEU PARA O ARCABOUÇO FISCAL

CHARGE DE AROEIRA

Jair Bolsonaro esperava uma recepção triunfal em Brasília, em sua volta ao Brasil, três meses depois da fuga em 30 de dezembro, quando embarcou, ainda presidente da República, num avião da FAB para Orlando (Estados Unidos), para não passar a faixa a Lula. Os fatos posteriores mostraram que a fuga do país não era só o medo de, ao perder o foro especial do Supremo Tribunal Federal, ser passível de mandados de prisão na Justiça comum por atos quando estava na presidência da República. O fracassado golpe de 8 de janeiro indicou que queria ter álibi preventivo de não estar na cena dos crimes.

Quando anunciou, há duas semanas, que voltaria ao Brasil no dia 30, estava apostando em alguns fatos favoráveis. Como o presidente Lula estaria de viagem à China, com esticada nos Emirados Árabes Unidos no retorno, teria uma semana para ocupar quase sozinho o noticiário no país. Lula teria de fazer muitas façanhas e acordos na China para dominar o noticiário. E sua chegada na véspera das comemorações do golpe militar de 31 de março de 1964, lhe daria espaço junto aos militares e radicais de direita.

Seria a oportunidade perfeita para reunir a tropa que se dispersou no seu mutismo nos meses de novembro e dezembro, depois da derrota para Lula, e mais as tropas mais aguerridas que ficaram de plantão às portas dos quartéis, clamando pela intervenção militar e marchando sobre a Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro, culminando com a invasão e depredação do Palácio do Planalto, sede do Executivo, do Congresso, sede do Executivo, do Supremo Tribunal Federal, sede do poder Judiciário.

(Sabe-se agora que Bolsonaro podia estar mudo e cuidando da erisipela na perna e das feridas da derrota para Lula. Mas a verdade é que não parou de se empenhar, até 30 de dezembro de 2022, para reaver, com as mais deslavadas carteiradas presidenciais, as joias de R$ 16,5 milhões, presenteadas pela Arábia Saudita à primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Elas foram apreendidas pela Alfândega do aeroporto de Guarulhos, em outubro de 2021, escondidas na mochila de um assessor do ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque. O ministro passou incólume com outros regalos destinados ao presidente, avaliados em R$ 500 mil, e que só foram declarados em novembro do ano passado, após o resultado eleitoral. Um 3º pacote de presentes que era para ser incluído no acervo da Presidência da República, mas Jair Bolsonaro absorveu para si, incorrendo no crime de peculato, ajudou a corroer sua imagem de paladino contra a corrupção, e esfriou o ânimo dos apoiadores).

Mas uma pneumonia, que poria a saúde do presidente, de 77 anos, em alto risco em uma viagem de avião com mais de 26 horas, impediu a ida de Lula à China (remarcada para a semana posterior à Páscoa). Lula no Brasil tirou Bolsonaro das manchetes. Sobretudo depois que a Polícia Federal avaliou que a presença de apoiadores do ex-capitão gritando “mito, mito” atrapalharia o fluxo normal de passageiros do 2º maior aeroporto do país e poderia atrasar pousos e decolagens, ameaçando todas as conexões de voos atreladas à escala na capital federal. Muito irritado, Bolsonaro teve de sair por uma porta lateral e limitar a recepção a um auditório no prédio da sede do PL, em Brasília, onde passará a dar experiente para fazer jus ao salário de quase R$ 39 mil, como “presidente de honra” do partido de Valdemar Costa Neto.

O mais constrangedor é que nem precisou de Lula abandonar a prescrição médica de repouso e recolhimento na residência do Palácio da Alvorada para o rebuliço que a volta do ex-presidente poderia causar e ganhar as manchetes e as redes sociais. Bastou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, secundado pela ministra do Planejamento e Gestão, Simone Tebet, apresentar as linhas gerais do arcabouço fiscal, para o tema dominar os “trends topics”, as principais citações e comentários nas redes sociais, nos sites “online”, ser o mais comentado nos noticiários de rádios e TVs e ainda ganhar as manchetes dos jornais no dia seguinte.

Para coroar a semana de frustração nos planos de uma volta por cima, a menção ao golpe militar de 31 de março de 1964, que voltou a ser enaltecida nos quatro anos da gestão Bolsonaro, deixou novamente de fazer parte da “Ordem do Dia” das Forças Armadas. Só os oficiais da reserva fizeram rememorações nos respectivos clubes militares. E a comemoração dos 100 primeiros dias do governo Lula chegou ao fim, sem Jair Bolsonaro conseguir “botar água no chope”: pesquisa DataFolha apontou aprovação de 38% ao governo Lula, contra reprovação de 29%. Ou seja, estavam tecnicamente empatados em 100 dias de governo. Bolsonaro tinha 32% de aprovação e 30% de reprovação, em março de 2019. Porém, vinha de uma vitória sobre Fernando Haddad de 55% a 44%, enquanto a vitória de Lula sobre Bolsonaro em 2022, foi por 51% a 49%. Na comparação entre ambos, Lula perdeu menos.

O diabo mora nos detalhes

Passada a primeira avaliação do arcabouço fiscal, o projeto será apresentado em suas linhas gerais ao Congresso – Câmara e Senado – esta semana, para que as negociações avancem depois da Páscoa. O ministro da Fazenda prometeu detalhar os planos para que seja viável a continuidade dos gastos (respeitado o avanço das receitas). É aí que, como se diz, “o diabo mora nos detalhes”. O governo pretende arrecadar de setores hoje abusivamente isentos de tributos. É o caso dos fundos de investimentos dos grandes milionários, que só pagam IR no resgate, ao contrário dos simples investidores, sujeitos ao “come cotas”. Será engraçado ver um deputado ou um senador fazendo o “lobby” deste flagrante de injustiça fiscal. A outra questão, vem tarde, seria a tributação sobre os sites de apostas (a maioria estrangeiros), que já dominam, como anunciantes, os principais noticiários esportivos da TV e têm sido motivos para o avanço da corrupção entre atletas e dirigentes.

Mas há questões mais espinhosas: mexer nos privilégios dos créditos prêmios de ICMS da Zona Franca de Manaus e dos exportadores. Em outras legislaturas, a “farra dos concentrados de refrigerantes” da ZFM, que beneficia Coca-Cola, Ambev, Heineken e outros gigantes de um lado e os engarrafadores, que usavam os insumos, de outro, uniu três senadores de partidos com fortes divergências dogmáticas. Todos reagiram à decisão do governo Temer de reduzir as alíquotas do IPI (para poupar recursos e subsidiar o diesel na greve dos caminhoneiros). Baixar impostos sempre foi defendido pela classe empresarial e pelos políticos.

Neste caso, se uniram pedindo a volta dos impostos dois senadores do Amazonas (Eduardo Braga, MDB, e Vanessa Grazziotin, do PC do B) e o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Os amazonenses defendiam o “lobby” das gigantes produtoras dos concentrados. Jereissati, dono da Solar refrigerantes – é a 2ª engarrafadora da Coca-Cola no Brasil e hoje atua em 14 estados. Explica-se o paradoxo: o IPI alto gerava crédito-prêmio de ICMS (nem sempre o valor das notas fiscais correspondia ao valor das vendas efetivas). Havia “passeio” de NFs e ganhos bilionários. Estava em jogo uma arbitragem de subsídios entre caminhoneiros e alguns empresários. Ganharam estes.

Este será um debate prévio da reforma tributária, próximo projeto do governo Lula para mudar a escala tributária do país, baseada 70% nos impostos indiretos (alicerçada no consumo), para a maior tributação na renda e no patrimônio dos mais ricos. Os “lobbies” já devem mostrar suas garras agora.

O desgosto do ‘Estadão’ com o país

O jornal “O Estado de S. Paulo”, da família Mesquita, bastião da chamada “direita esclarecida e consciente”, que defendia a “terceira via” – e volta a insistir na sua defesa conclamando “os genuínos democratas à direita e à esquerda” para o país romper a atual polarização -, publicou na coluna “Notas & Informações” de 6ª feira, 31 de março, análise da volta de Bolsonaro ao Brasil.

Me faz lembrar, às avessas, o que disse o senador Fernando Henrique Cardoso (PDSB-SP), quando o então presidente José Sarney fazia uma viagem ao exterior (“a crise viajou para fora do país”):

“O ex-presidente Jair Bolsonaro desembarcou ontem em Brasília trazendo na bagagem o caos. É espantoso que um político tão desqualificado como ele seja tido por seu partido como grande líder. Sem estatura intelectual e moral para nenhum cargo público nem para nenhum debate sério sobre os rumos do país, Bolsonaro pretende ser o catalisador da oposição ao petista Lula da Silva. Para Lula, por sua vez, a volta de Bolsonaro à ribalta é um presente valioso, porque coloca em segundo plano os muitos problemas de seu governo e ressuscita o cenário de confronto que o petista soube tão bem capitalizar na campanha eleitoral do ano passado. Ou seja, é uma situação de ganha-ganha para Bolsonaro e para Lula. Só o país perde”.

“Sendo agente do caos, Bolsonaro não tem nenhuma pretensão de oferecer uma visão alternativa à de Lula. Seu objetivo é apenas atrapalhar o máximo que puder, disseminando desinformação e promovendo o que há de pior na política nacional. Os pequenos bolsonaros eleitos para o Congresso não estão ali para propor nada nem para negociar nada: à imagem e semelhança de seu guru, pretendem testar os limites da decência e, com isso, amealhar ainda mais votos de eleitores desencantados com a democracia”.

“Eis por que cabe à direita democrática desvincular-se de Bolsonaro e oferecer ao país uma alternativa competente e moralmente correta de oposição ao governo petista. É preciso impedir não apenas que Lula da Silva cumpra suas ameaças de arruinar as bases da estabilidade econômica do país, como também que, na esteira desse provável desastre, Bolsonaro (ou alguém tão desqualificado quanto ele) se apresente como alternativa eleitoralmente viável”.

“O fato é que a volta de Bolsonaro tende a drenar as energias do país para temas tão divisionistas quanto irrelevantes para os destinos nacionais, como questões identitárias e culturais. A índole destrutiva de Bolsonaro, marca maior de seu tormentoso mandato, decerto seguirá produzindo efeitos nocivos para além de seus dias no poder, ainda que o ex-presidente venha a ser declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral – cenário que se descortina como altamente provável”.

Campos Neto abaixou o próprio sarrafo

O Banco Central costuma ser chamado também de Autoridade Monetária em cada país ou comunidade em que atua, por ter o monopólio da emissão de moeda (caso da União Europeia, onde o Banco Central Europeu controla a emissão do euro). Além da emissão das moedas físicas, os bancos centrais controlar o nível dos juros mas moedas de dívida pública (que o economista André Lara Resende explicou, didaticamente, esta semana na GloboNews, não ter risco de calote [um dia contarei com mais detalhes uma grande e pioneira operação do Bank of Montreal de converter papéis da dívida externa do Brasil, então objeto de calotes, em dívida mobiliária interna, no começo dos anos 80, justamente porque havia ganhos elevados de juros, sem risco de calote – até que Fernando Collor congelou as aplicações financeiras em março de 1990]. Mas isso não confere a quem comanda a Autoridade Monetária, mesmo com independência perante o Executivo, pela Lei 179, de fevereiro de 2021, “autoridade moral” para querer ser a última palavra na Economia.

A independência do Banco Central, como agência reguladora da moeda e do crédito, tem mais relevo que a da Aneel na energia elétrica, da Anatel, nas telecomunicações ou da Anvisa, na aprovação de medicamentos e vacinas. Mas não dá poderes absolutos para Roberto Campos Neto se arvorar de “árbitro” em questões econômicas. Se fosse um brilhante executor de suas funções, Campos Neto seria mais respeitado. Mas é bom lembrar que ele foi reprovado no cumprimento das metas inflacionárias em 2021 e 2022. É um aluno que está pendurado em 2023 também. Pode não ter culpa de fatores externos (Covid, guerra na Ucrânia e questões climáticas). Mas aceitou participar da decisão de metas ambiciosas – extremamente baixas para a inflação – e para perseguir o objetivo quimérico, forçar a sociedade brasileira a um spa rigoroso, com “juros reais pornográficos”, que definha a economia.

Caro leitor, você já deve ter assistido provas olímpicas de salto em altura ou com vara. São os próprios saltadores que definem as suas metas. Pois é muito parecido com as metas de inflação. O Banco Central integra o Conselho Monetário Nacional que, em junho de cada ano, fixa a meta de inflação para dois anos e meio adiante. Ao contrário dos saltadores, o CMN abaixa o sarrafo.

Com tantos fatores exógenos (perdas de lavouras por excesso ou falta de chuvas, que gera crise hídrica, guerras ou uma inesperada Covid-19) é imprudência baixar o sarrafo. Foi o que concordou, em junho de 2019, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que integrava o CMN, presidido pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes.

A meta de inflação para o ano de 2019 foi fixada em 2017 (4,25% + 1,50% de tolerância no teto = 5,75%). O IPCA ficou em 4,31%. Para 2020, a meta foi reduzida na mesma reunião do CMN, em 2017, para 4% + 1,50% de tolerância = 5,50%. A Covid travou a economia. Apesar do salto de 18,16% na alimentação em domicílio, o IPCA foi de 4,52%. E a taxa de 2021 foi fixada em junho de 2018, no governo Temer, em 3,75% + 1,50%= 5,25. Deu 10,06%.

Pois em junho de 2019, já no comando do CMN, Guedes&Campos fixaram em 3,50% a meta de inflação de 2022, com tolerância de 1,50%. O teto era de 5%: deu 5,79%. Não porque o BC quase tenha acertado na política monetária para atingir a meta. A explosão dos preços de combustíveis, fertilizantes e alimentos após a invasão da Ucrânia pela Rússia tornou a meta impossível. A taxa em 12 meses chegou a 12,07% em abril e Guedes sabia disso. Se insistisse nos juros altos para derrubar a inflação, a reeleição de Bolsonaro seria impossível.

O ministro da Economia largou os escrúpulos liberais de lado. Virou as costas ao Banco Central. E, tentando ajudar, em um estelionato eleitoral o chefe, Jair Bolsonaro, fez das maiores intervenções na economia neste século. Pegou a tesoura e cortou diretamente os impostos federais e estaduais dos produtos de maior peso no IPCA, a começar pela gasolina, que pesa 6,58% no IPCA. Com a queda de 25,78% no ano, reduziu em 1,70 ponto percentual o IPCA do ano passado; depois mexeu na energia elétrica residencial, que pesa 5,07% no IPCA e caiu 19,01%, poupando 0,96 ponto percentual no IPCA.

Com queda de 25,42% do etanol, que pesa 0,96% no IPCA, o governo cortou mais 0,25 p.p. no IPCA. Somando ainda os ganhos da queda de 0,05% em preços pela redução de impostos em telecomunicações, a tesoura de Paulo Guedes derrubou quase três pontos (2,96%) na inflação oficial de 2022. Sem os cortes, o IPCA seria invertido: no mínimo iria a 9,75% e não a 5,79%.

Para 2023, Guedes&Campos ousaram mais em junho de 2020: com o Brasil e o mundo sofrendo com as incertezas da Covid, reduziram para 3,25% a meta de inflação deste ano. Com a tolerância de 1,50%, o teto abaixou para 4,75%. Para 2024, em junho de 2021 abaixaram novamente o sarrafo da meta para 3,00% + tolerância de 1,50%, ficando o teto em 4,50%. E em junho de 2022, com todos os reflexos da guerra na Ucrânia, mantiveram a meta em 3,00%, e a tolerância, com teto de 4,50%. Quem agora paga o preço desta aposta excessivamente otimista é a sociedade brasileira.

É teimosia perseguir metas inexequíveis. Não dá para trocar a meta do futebol, de 2,44 metros de altura por 7,32 de largura, pela pequena trave de futebol de salão (2m de altura por 3m de largura). Mais lógico seria negociar no Conselho Monetário Nacional para adotar trave, ou seja, uma trava de juros, compatível com o país heptacampeão do mundo. Ou a trave em Y do futebol americano, com altura mínima de 3,048 metros a ser superada no chute direto (os pontos conquistados na corrida até a linha de fundo adversária valem mais).

GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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