A FRAGILIDADE DO ARCABOUÇO

CHARGE DE AROEIRA

O debate entre investimentos públicos e privados é uma manifestação da pobreza dos interesses em disputa e das visões de futuro.

A maior fragilidade do arcabouço é o tratamento comedido ao investimento público. O que esperávamos? Uma ênfase maior nos investimentos públicos. Uma conta segregada, à parte do orçamento regulado pelo arcabouço, para viabilizar um pacote robusto de investimentos públicos transformadores da nossa condição precária, resultado de tantos anos de investimento aquém do necessário até mesmo para manter as infraestruturas existentes.

Pagaremos caro por esse comedimento? Espero estar errado no “pessimismo”. Por quê pagaremos caro? Porque a modéstia do investimento público congela as deficiências e as insuficiências das estruturas de produção públicas e dos serviços de utilidade pública. Todas elas são custos privados e custos sociais. O caminhão que roda na via precária incorre em custos que reduzem a rentabilidade da empresa e do cliente e a capacidade de expandirem os seus negócios. O ônibus travado em vias congestionadas não tem receitas suficientes, seus usuários consomem-se em horas perdidas e oneram com o seu cansaço a vida pessoal, familiar e laboral. Os dois exemplos bastam como ilustração de uma longa série de situações que todos conhecemos.

Ora, sem as externalidades positivas geradas pelos investimentos públicos os próprios investimentos privados serão menos rentáveis ou inviáveis. Não é só o efeito-crescimento, pelo multiplicador. Nem também os efeitos de aceleração dos investimentos que se sucedem e alimentam uns aos outros. É mais simples, por enquanto. São os investimentos que promovem a redução de custos e a irrigação e a fertilização dos campos adjacentes.

Foi este, historicamente no Brasil, o papel dos investimentos públicos. Ou haveria Plano de Metas de JK sem a CSN de GV? Ou a petroquímica tripartite sem a Petrobras do Petróleo é Nosso? Gostemos ou não dos resultados, o rodoviarismo se alimentou dos investimentos públicos em asfalto e foi assim que a indústria de automóveis, caminhões e ônibus prosperou. Os investimentos públicos são precursores e viabilizam os privados. Foi sempre assim; e quando deixou de ser, prolongamos uma crise (anos 80) que poderia ter sido superada, mas dura até hoje.

O que vale para os investimentos privados vale com ajustes para o consumo pessoal e das famílias. Investimentos em cidades e mobilidade podem melhorar substancialmente a vida, pela moradia e pelos tempos desgastantes do transporte. Isso repercute na qualidade de vida. No tempo de usufruto da vida. Na convivência familiar. No tempo para o parque, o cinema, a cultura, o esporte, o lazer e o ócio. Sim, o ócio. 

Mas os investimentos públicos para as pessoas e a vida social repercutem também na produtividade. Urbanização e mobilidade, com cidades densas e transportes mais eficientes e saudáveis, em corredores, com veículos coletivos eletrificados, descarbonizados, melhoram a vida coletiva e social, com efeitos nas empresas, na produtividade e nos seus custos. Saúde, disponibilidade para o trabalho, arejamento mental são predicados que precisam ser cuidados, construídos, não existem “por aí”.

Investimentos coordenados em capacitações e tecnologias nos serviços públicos aos cidadãos também permitem melhorar de modo substancial a eficiência desses serviços e portanto permitiriam a otimização dos gastos correntes. Assim como o bom projeto reduz os custos do investimento e eleva a rentabilidade do empreendimento, também os investimentos em capacitação e tecnologia dos serviços públicos melhoram o desempenho da prestação e reduzem as ineficiências e os custos.

Haveria uma fundamentação adicional indiscutível para este pacote de investimentos, se qualidade de vida e externalidades positivas às empresas não bastam como justificativa: a descarbonização acelerada que eles propiciariam. Ela é urgente. Por nós e pelo mundo. E os padrões intensivos em carbono só podem ser modificados com investimentos reorientadores.

Infelizmente, a precariedade da luta política e a tacanhez dos interesses em disputa impede que o duelo se faça com avanços, com a conquista de posições sobre o futuro. Continuamos a retalhar e a esquartejar o que existe, como hordas em meio ao butim. Não há investimentos em refino, é preciso retalhar as refinarias que existem. Usinas hidrelétricas, gasodutos, rodovias, ferrovias – a lista é longa e os resultados conhecidos: soma zero ou negativa.

No fundo, os interesses dominantes, sobretudo em suas versões mais rentistas e parasitárias, não querem investimentos, porque não querem aumentos de oferta, porque temem a concorrência que essas novas capacidades criam. Projetos novos são o âmago do capitalismo e a antítese do rentismo que – infelizmente, desgraçadamente – prevalece. Até quando?

O debate entre investimentos públicos e privados é uma manifestação da pobreza dos interesses em disputa e das visões de futuro. Investimentos privados estão centrados em sua rentabilidade, os públicos estão voltados para a produção de externalidades. Assim deve ser. Eles não são essencialmente concorrentes. São complementares. Quanto mais investimento público, mais investimento privado. Porque investimento público aumenta eficiência dos investimentos privados e dos negócios privados existentes. Todos eles. Com isso restauram-se níveis mais elevados de rentabilidade, quiçá de competitividade, exportações e novos investimentos. Um ciclo virtuoso que a maioria dos brasileiros adultos e todos os jovens desconhecem.

Quando os investimentos públicos são bem concebidos e implementados, eles geram efeitos positivos que trazem investimentos privados para as faixas de rentabilidade que podem aceitar (e não existiriam sem os públicos). Acontece que ambos estão enredados em longa paralisia. Uma longa paralisia. Uma paralisia que se reforça, porque o atraso com relação às fronteiras produtivas e tecnológicas vai se agravando. Dito de outro modo, capitalistas e setor público perderam capacidade de conceber e implantar bons projetos de investimento. Há poucas exceções a esta afirmação nos últimos 25-30 anos. É por isso que relançar o investimento – o público e o privado – é tão importante.

O arcabouço fiscal é muito decepcionante nesse quesito. Ele não construiu um espaço relevante para soerguer o investimento público, com ele o privado, com ambos as condições para o relançamento da economia. Isso não faz apenas a diferença com relação ao resultado do desempenho da economia em termos de crescimento (PIB). Não faz apenas a diferença também entre os efeitos fiscais do crescimento, em um arcabouço tão dependente da taxa de crescimento, determinante da arrecadação fiscal e portanto do resultado primário. O problema crucial é outro: sem investimentos revigorantes e transformadores, que aumentem as capacidades de produção e as orientem para o futuro, com eficiência e competitividade que só bons projetos podem criar, são maiores os riscos de que qualquer crescimento modesto tenha impactos nos preços. Por isso, o cenário supostamente prudente, com investimentos muito limitados, é de fato o mais arriscado. E é nele que Neto confirma o seu prognóstico. Um prognóstico construído passo a passo.

JOÃO FURTADO ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

João Furtado é economista

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