O argentino Francisco, portenho de nascimento, do bairro de Flores, vizinho ao centro de Buenos Aires, é o 266º Papa da Igreja. Mas, curiosamente, a Santa Sé teve somente um médico entre os sucessores de São Pedro. Foi o português Pedro Julião, natural de Lisboa, eleito no Concílio de 20 de setembro de 1276, com o título de João XXI, e morto, oito meses depois, aos 62 anos, em 20 de maio de 1277, atingido por uma viga que despencara no palácio papalino de Viterbo – cidade próxima a Roma. Seu pontificado de apenas 242 dias, nos estertores da Idade Média (476 – 1453), é considerado até hoje o que mais teria se dedicado à Medicina.
Por isso, suponho, deve-se à memória do Sumo Pontífice lusitano, possivelmente, a inspiração que levou arquitetos e artistas a elevar, diante do altar central da fabulosa Catedral de Milão, chamada pelos italianos de Duomo, um majestoso vitral com a imagem do erudito persa islamita Avicena (980 – 1037), tido, na própria Europa Cristã, como o maior dos sábios da Medicina na virada do Primeiro Milênio.
Só mesmo o humanismo surgido no frescor dos conceitos do Renascimento florentino, que marcou o fim do medievalismo, nas letras, artes e ciências, poderia conduzir à ousadia de colocar um hakim muçulmano numa das históricas catedrais europeias. Continente que, durante mais de 500 anos, desde as últimas décadas do Primeiro Milênio ao século XVI, bateu-se, com suas Cruzadas, organizadas por papas, sem grande sucesso, para libertar os territórios cristãos conquistados pelos exércitos expansionistas islâmicos. Que englobavam, para além do Oriente Médio, incluindo a Terra Santa, atual Israel, quase toda a Europa meridional. Da Península Ibérica ao Estreito do Bósforo, nos limites de Constantinopla, hoje, Istambul.
Avicena aparece no vitral na companhia de três doutores da Antiguidade Clássica. O primeiro é o grego Hipócrates, falecido aos 83 anos, em 377 antes de Jesus, tido e havido como o “Pai da Medicina” – uma das figuras eminentes do esplendor intelectual da Grécia. Como Demócrito, Sócrates e Aristóteles. O segundo, o romano Galeno de Pérgamo, viveu e praticou a Medicina em Roma, no século II de nossa Era comum.
O terceiro trata-se do greco-romano Dioscórides, natural, como São Paulo, da localidade de Tarsos, na Turquia, no ano 40 depois de Jesus, o pai da farmacologia. Sua mais relevante obra, “De Matéria Médica”, escrita em grego, foi a principal fonte sobre drogas medicinais do século I ao XVIII. Também um estudo de Avicena, nome ocidentalizado de Abu Ali al-Husain ibn Abdallah ibn al-Hasan ibn Ali ibn Sina, baseado na Farmacologia, “Cânon de Medicina”, foi durante séculos o manual das faculdades de Medicina da Europa.
O sábio maometano da Catedral de Milão nasceu na persa Afshona, na região de Bukhara, atual Uzbequistão. Notabilizou-se por cuidar de seus pacientes com o emprego de técnicas psicológicas, até então desconhecidos – e não simplesmente, como era habitual à época, fazer a sangria dos doentes. O método, recomendado, inclusive, pela Igreja, consistia, à luz da espiritualidade, a expiação dos pecados. Ele acreditava, no entanto, que sua ciência seria mais eficaz se a pessoa tivesse esperança no tratamento. E, por essa razão, muitas vezes, como relatou na autobiografia, transmitia otimismo aos enfermos, para que estes ficassem motivados a viver – e o ajudassem na tarefa de curá-los.
A presença de Avicena nos vitrais milaneses indica que suas descobertas e seus conhecimentos médicos foram aprovados pela Igreja. Talvez, como imagino, sob inspiração de João XXI.
ALBINO CASTRO ” PORTUGAL EM FOCO” ( BRASIL/ PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador