“ME CHAME DE PEPE”, pediu José Alberto Mujica assim que me ouviu chamá-lo de “presidente”. A simplicidade franciscana que se tornou a marca registrada de Pepe Mujica não está apenas na habitual camisa de linho que vestia ou nos cabelos desgrenhados. Aos 87 anos, o homem que governou o Uruguai entre 2010 e 2015 hoje caminha devagar, com as costas curvadas. Mas não economiza atenção nem tempo com quem se senta diante dele.
Nessa conversa com o Intercept, Mujica falou do que enxerga como o principal desafio do terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de quem é amigo pessoal. “Ele tem que recuperar a alegria de viver que talvez a presença negra africana tenha trazido à maneira de ser de todo o povo brasileiro”, afirmou, antes de reconhecer a dificuldade da missão que o petista tem diante de si: “É muito difícil [governar com] metade de uma sociedade contra a outra metade. Tem de haver alguma margem de tolerância e confluência. E espero que, com o passar do tempo, se entenda isso”.
O uruguaio também se debruçou sobre um tema a que tem se dedicado nos últimos tempos: pensar – e cobrar – a cooperação e a integração entre os países latino-americanos. “Temos que aprender a nos unir para nos defendermos no mundo. [Sozinhos] Nós não somos nada”, defendeu. “Precisamos começar com uma série de pequenas mudanças, das menores para as maiores. Em vez de planejar um banco central [comum], uma moeda única. Isso são sonhos. Vamos do simples para o complexo”.
O ex-presidente uruguaio também falou sobre a emergência climática – “a ciência não falhou; foi a política que falhou” – e a extrema direita, sem poupar críticas à esquerda, que, a seu ver, comete com frequência o erro de “confundir desejos com a realidade”.
Pepe Mujica esteve em Brasília, na semana passada, para um evento de confederações sindicais de toda a América que reuniu líderes trabalhistas e de movimentos populares desde terça-feira, 28 de fevereiro. Na quarta, 1o de março, esteve com Lula no Palácio do Planalto antes de retornar a Montevidéu.
Leia a entrevista.
Foto: Andressa Anholete para Intercept Brasil
Intercept – O presidente Lula foi eleito derrotando a extrema direita por uma margem estreita de votos. Isso quer dizer que ele começou seu terceiro mandato sob a desconfiança ou mesmo a repulsa de parte expressiva dos brasileiros. Num cenário como esse, que sugestão o senhor daria a ele?
Pepe Mujica – Quando se olha para o Brasil de longe, [se vê] uma singularidade da sociedade brasileira, que é uma espécie de monumento à miscigenação. Aqui você encontra todas as cores, todas as raças. Em segundo lugar, [o Brasil] é o reino da alegria. Eu não vi, em nossa América do Sul, apesar das dificuldades, um povo mais contagiante e com a alegria que o Brasil tem. É o único lugar do mundo onde tenho visto manifestações políticas de massa com pessoas sambando. Isso é o Brasil! É o oposto de uma sociedade cheia de ódio, em que um odeia o outro. Isso não é o Brasil, mas uma ferida na história do Brasil.
Não sei o que Lula será capaz de fazer, mas entre outras coisas ele tem que tentar suturar… Não quero dizer que todos vão concordar [com Lula], mas ele tem que recuperar a alegria de viver que talvez a presença negra africana tenha trazido à maneira de ser de todo o povo brasileiro, seja ele moreno, branco ou louro. Esse é o maior desafio que Lula tem diante de si. É muito difícil [governar com] metade de uma sociedade contra a outra. Tem de haver alguma margem de tolerância, uma confluência. E espero que, com o passar do tempo, se entenda isso. Porque precisamos de um Brasil que cubra a alegria, mesmo na representação de nossa América.
O senhor tem defendido uma ideia de cooperação regional, de integração latino-americana. Já há 32 anos que temos o Mercosul, temos a Unasul. O que ainda falta fazer? E o que Lula, tido internacionalmente como uma figura de grande relevo, pode fazer em relação a isso?
Eu não quero usar a palavra integração. Falta-nos um espírito de cooperação. Vejamos: é dramático, somos 6%, 7% da população mundial, e tivemos quase 30% dos mortos pela covid. E não houve uma reunião de presidentes, nem sequer por Zoom, para que lutassem juntos [sobre a quebra das patentes de vacinas]. Há quatro ou cinco países que podem produzir vacinas [na América Latina]: México, Colômbia, Brasil, Argentina, pelo menos. É dramático: o presidente dos Estados Unidos, em um discurso, disse que concordava em coletivizar patentes. Mas ninguém nos deu o conhecimento para poder aumentar a quantidade de vacinas e cuidar de nosso povo rapidamente. É dramático, porque pagamos por isso com mortes que poderíamos ter evitado.‘os proletários, as pessoas de macacão, serão substituídos por estudantes universitários, porque o trabalho vai exigir educação superior, devido à evolução tecnológica’.
É um chamado de atenção. Temos que aprender a nos unir para nos defendermos no mundo. [Sozinhos] Nós não somos nada. Eles fazem todas as regras do comércio mundial, as decidem, as mudam, como se nós não existíssemos. Podemos ter diferenças [na América Latina], mas temos interesses comuns a defender. E temos que nos acostumar ao fato de precisarmos ter uma voz comum no mundo. Temos que mudar porque, se não nos defendermos juntos, quem vai nos defender? É por isso que estou aqui.
Este é um papel que o Brasil tem que desempenhar, com Lula. Mas não sozinho, e sim com todos nós. Temos que chegar a um acordo. Porque eles nos dizem: “Temos que nos abrir para o mundo”. Mas eles não se abrem [risos]. Eles se abrem para vender para nós, mas não para comprar.
O senhor tem falado em priorizar uma integração cultural, mais que comercial…
Sim, começando por muitas coisas pequenas. Por exemplo, por que nossos profissionais técnicos, engenheiros, médicos, não podem trabalhar nos países vizinhos? Eles vão trabalhar nos Estados Unidos e na Europa, e trabalham. Precisamos fazer intercâmbio entre nossos estudantes quando estão prestes a se formar . Nós que aprendamos português. Os que falam português, que aprendam um pouco de espanhol. São parecidos, a dificuldade é pouca. Precisamos integrar nossos sistemas elétricos. Chegar a acordos sobre regras comerciais – é uma loucura, cada país tem uma diferente – para podermos negociar. Fazer negócios com nossas próprias moedas, com os bancos centrais fazendo a arbitragem, para podermos abrir mão do dólar [em transações internacionais].
Alguns sonham com uma moeda única. Isso é o mais difícil. Vamos começar com as coisas simples, antes de propor um banco central único, uma moeda única. Há mil coisas: saúde, bancos de órgãos, projetos comuns de infraestrutura. Nos planejarmos para, em cinco ou dez anos, no máximo, sermos capazes de nos deslocar pela América só com a carteira de identidade. Se a Europa fez, e a África já começou a trabalhar nisso, por que não podemos? Em outras palavras: [começar com] uma série de pequenas mudanças, das menores para as maiores. Em vez de planejar um banco central [comum], uma moeda única. Isso são sonhos. Vamos começar… Do simples para o complexo.
Além de dar muita importância às universidades. Tem que haver uma diplomacia universitária, porque no mundo futuro – no qual eu não vou estar – aqueles que hoje são trabalhadores, os proletários, as pessoas de macacão, serão substituídos por estudantes universitários, porque o trabalho vai exigir educação superior, devido à evolução tecnológica. Portanto, temos que lutar pelo desenvolvimento. Temos que ter muitos recursos para educar a próxima geração. Isso não vai resolver todos os problemas, não vai resolver as diferenças de classe. Mas temos que subir a escada do desenvolvimento, para obtermos os meios que nos permitam educar nossa juventude. Caso contrário, não seremos bons o suficiente nem sequer para sermos explorados.
Foto: Andressa Anholete para Intercept Brasil
O senhor costuma dizer que a ciência, desde o Acordo de Quioto, há mais de 30 anos, nos diz o que fazer pelo mundo, mas que a política vem falhando a respeito. Pode nos falar mais a respeito?
Há trinta e poucos anos, em Quioto, uma conferência de cientistas nos disse que eventos extremos iriam se tornar mais frequentes e mais intensos. E também nos disse que medidas precisavam ser tomadas para fazer frente a isso. A ciência não falhou. Foi a política que falhou. Por que ela fracassou? Porque geramos uma civilização onde o progresso tecnológico e técnico avança sem direcionamento político, mas somente segundo o interesse do mercado. Nossa globalização não é pensada; ela é impulsionada pelas forças cegas da economia. Não há um planejamento político por trás dela. A política não está à altura do avanço técnico e científico da humanidade. Porque não há uma política global: a política internacional é a projeção dos interesses nacionais de países fortes. Ninguém pensa no mundo inteiro, mas apenas em seus próprios interesses.
E somos 8 bilhões. Temos que começar [a agir], mas estamos dando voltas. A humanidade se tornou um agente geológico, nossa maneira de viver altera os equilíbrios da natureza. Temos que tratar disso com uma direção política. Esta é uma mudança que nos obriga… Vou lhe dar um exemplo, para que fique claro. Se 8 bilhões de pessoas forem se banhar em banheiras de hidromassagem, usando 200 litros de água a cada banho, vamos ter um cataclismo de água doce. Percebe? Significa que temos que voltar às cavernas? Não. Significa que temos que começar a fazer as coisas com mais sentido. O conceito de obsolescência programada que é colocado nas coisas é um absurdo. Geramos desperdícios inúteis, desperdiçamos trabalho humano, matéria-prima… Temos que fazer coisas que durem mais, que sejam reparáveis, e cuidar mais delas. E projetá-las para serem recicladas, para que não se transformem em lixo, mas em matéria-prima. Mas isso não é lucrativo. O lucro depende de você usar, jogar fora e comprar um novo. É necessária, então, vontade política. É uma mudança cultural.‘geramos uma civilização onde o progresso tecnológico e técnico avança sem direcionamento político, mas somente segundo o interesse do mercado’.
Voltando ao Brasil, Jair Bolsonaro foi derrotado, mas a extrema direita está viva por aqui e também e no mundo. Como enfrentá-la?
Eu não sei. Não creio que tenhamos que nos resignar, temos que lutar. O que chamamos de direita e esquerda, na minha humilde maneira de pensar, são coisas tão velhas quanto o mundo. Os termos são da Revolução Francesa. Sempre houve uma perna conservadora da história, e uma perna de mudança. Ambas têm doenças. A perna da mudança tende a confundir desejos com a realidade, comete o erro de ser infantil. A perna conservadora tem o defeito de tender a se tornar reacionária – e ser conservador não é o mesmo que ser reacionário. O conservador é resistente à mudança; o reacionário é impositivo, prepotente. São deformações que sempre existiram. E, nessa visão, Açoca era um rei de esquerda, ou Epaminondas, ou os irmãos Graco, ou Jesus. Sempre existiram: a história humana é a de um vai e vem. Talvez precisemos de ambas, mas equilibradas para que não sejam distorcidas. Evitar a infantilidade do que chamamos de esquerda, sua tendência de confundir desejos com realidade, bem como o perigo reacionário nos conservadores. Trata-se de buscar um equilíbrio, que não é fácil.
RAFAEL MORO MARTINS” THE INTERCEPT” ( BRASIL)