Gabinete de Bolsonaro criou ‘Política de Acervos Presidenciais Privados’ 44 dias após apreensão das joias
por Hugo Souza
Uma das diretrizes da política criada é “prestar apoio técnico ao Presidente da República durante o seu mandato nos assuntos referentes ao seu acervo privado”.
Em 9 de dezembro de 2021, 44 dias após a apreensão no aeroporto de Guarulhos de joias valiosíssimas que seriam presentes da Arábia Saudita para Jair Bolsonaro, o gabinete do então presidente Bolsonaro instituiu uma “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados”.
O ato se deu pela resolução 1/2021 da Comissão Memória dos Presidentes da República, órgão vinculado ao Gabinete Pessoal do presidente. A resolução foi encontrada por Come Ananás nos arquivos do Diário Oficial da União.
No dia 26 de outubro de 2021, ao desembarcarem em Guarulhos vindos da Arábia Saudita, o então ministro-almirante das Minas e Energia, Bento Albuquerque, e um assessor do ministério, também militar da marinha, tomaram o corredor de “nada a declarar” à Receita Federal, ainda que estivessem pesados de ouro e pedras preciosas. O assessor foi convidado a pôr sua bagagem na esteira do raio-x. Pego com R$ 16,5 milhões em joias da marca Chopard, pediu para chamar Albuquerque, que já estava no saguão. Um auditor fiscal autorizou a volta do ministro à área de desembarque. Lá, Bento Albuquerque se recusou a iniciar procedimentos para pleitear formalmente que as joias fossem consideradas bens da União. O pacote ficou retido. No mesmo dia, a delegação de Bento Albuquerque conseguiu contrabandear um segundo pacote com joias da Chopard dado pelos sauditas supostamente para Bolsonaro.
A “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados”, criada pela equipe de Bolsonaro semanas após o episódio em Guarulhos, tem como uma de suas diretrizes “prestar apoio técnico ao Presidente da República durante o seu mandato nos assuntos referentes ao seu acervo privado”.
“Considera-se acervo presidencial privado – diz a resolução – o definido nos arts. 2º e 3º do Decreto nº 4.344, de 2002”.
O artigo 2º do decreto 4344/2002 prevê que “o acervo documental privado do cidadão eleito presidente da República é considerado presidencial a partir de sua diplomação, independentemente de o documento ter sido produzido ou acumulado antes, durante ou depois do mandato presidencial”.
O artigo 3º do decreto de 2002 especifica como acervo privado dos presidentes da República desde obras de arte até “objetos tridimensionais”.
Tratando do caso das “joias das arábias” e dos termos do decreto 4344/2002, a Folha de S.Paulo informou na última segunda-feira, 6, que “apesar de essas normas tratarem especialmente da produção documental dos presidentes, a falta de outra previsão legal fez um artigo ser usado por vários anos como suporte à interpretação de que presentes recebidos pelos mandatários só seriam incorporados ao patrimônio público caso fossem recebidos em solenidade de troca de presentes”.
O artigo legal referido pela Folha diz que“documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes”são públicos, não privados.
“Ou seja, por analogia, interpretava-se que só presentes recebidos nessas cerimônias seriam obrigatoriamente públicos”, acrescenta o jornal.
Bento Albuquerque disse que recebeu informalmente os presentes dados pelos sauditas em Riad: “no final da viagem, eu indo pro aeroporto, chegou lá um enviado do governo da Arábia Saudita e entregou duas caixas”.
Porém, em acórdão de 2016, o Tribunal de Contas da União (TCU) mudou a interpretação de que só presentes recebidos em solenidades de trocas de presentes seriam obrigatoriamente públicos.
“Relatou-se neste julgamento não haver previsão legal clara que estabelecesse regras de recebimento e posse de presentes pelos mandatários e que isso estaria levando a uma situação em que eles próprios e assessores estariam definindo, sem regra clara, o que ao final do mandato ficaria sob domínio público e o que seria incorporado ao patrimônio privado”, informa a Folha.
A resolução do gabinete de Bolsonaro que criou a “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados” não menciona a complementariedade do acórdão do TCU aos termos do decreto 4344/2002. É neste acórdão que o TCU define como presentes destinados ao acervo presidencial privado apenas aqueles de natureza personalíssima, como itens gravados com o nome do presidente, ou de consumo direto, como comidas ou bebidas.
Verniz técnico
Editada 44 dias após a apreensão (de parte) das “joias das arábias” em Guarulhos, a resolução que instituiu a “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados” foi assinada pelo à época chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República, o capitão-de-corveta Marcelo da Silva Vieira.
Marcelo da Silva Vieira foi um dos cinco militares envolvidos na “Operação Chopard”, que mobilizou três ministérios e a própria Presidência da República ao longo de 14 meses para tentar sacar as joias da alfândega de Guarulhos e entregá-las a Bolsonaro.
Em 29 de outubro de 2021, três dias após a apreensão em Guarulhos, o capitão-de-corveta enviou um ofício ao Ministério das Minas e Energia orientando a pasta a preencher e apresentar à Receita Federal o Formulário de Encaminhamento de Presentes para o Presidente da República, visando desembaraçar as joias e a fim de que os presentes fossem encaminhados ao gabinete pessoal de Bolsonaro, “para o devido tratamento técnico” pelo gabinete adjunto de documentação histórica.
Lembrando: “prestar apoio técnico ao Presidente da República durante o seu mandato nos assuntos referentes ao seu acervo privado” é uma das diretrizes da “Política de Acervos Documentais Presidenciais Privados” criada semanas depois com a assinatura do mesmo Marcelo da Silva Vieira.
O ofício de Marcelo para as Minas e Energia dizia ainda que as joias apreendidas deveriam chegar “fisicamente” – esta é a palavra usada no ofício – ao gabinete presidencial “para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República”.
O final do arco-íris
Eis um indicativo de qual seria o resultado da análise, caso a “Operação Chopard” tivesse logrado sucesso: segundo o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, estaria guardado num galpão de endereço incerto, como parte do acervo privado do ex-chefe, um segundo estojo com joias da Chopard dado pelos sauditas, aquele que a delegação de Bento Albuquerque conseguiu esconder da Receita Federal em Guarulhos, fazendo-o chegar “fisicamente” ao Palácio da Alvorada.
O caso das “joias das arábias” pode ser um escândalo de propina ou pode ser a ponta de um escândalo de apropriação por Bolsonaro de presentes nababescos, ou parte deles, com os quais ditaduras do Oriente Médio mimam funcionários de governos estrangeiros. Funcionários do governo brasileiro muitas vezes vão e vêm do exterior em aviões da FAB, sem enfrentar a aduana. Seria uma espécie de rachadona do butim de contrabando de pedras preciosas.
Bolsonaro já tinha recebido, em 2019, um estojo com joias masculinas semelhante àquele que a delegação de Bento Albuquerque contrabandeou em 2021 e que tem sido apontado como suborno pela venda subfaturada, na época, de uma refinaria na Bahia para um fundo não da Arábia Saudita, mas dos Emirados Árabes Unidos.
Neste caso, em caso de rachadona de tesouros árabes, o galpão de endereço incerto onde Bolsonaro acumula seu acervo privado de presidente seria o local exato onde termina o arco-íris – um arco-íris hétero, claro, como as joias da Chopard.
HUGO SOUZA ” JORNAL GGN”(BRASIL)