Em mais de 50 anos de jornalismo econômico, nunca dei tanto valor a esta ou àquela linha de pensamento econômico. Monetaristas ou estruturalistas sempre valorizavam suas linhas de pensamento. Os fatos mostravam que as surpresas da realidade punham as teorias por terra. Mesmo assim, políticos e comentaristas políticos que pouco entendem de economia ficam duelando dogmaticamente, esquecendo a realidade à sua volta. No Brasil, o último tabu dos monetaristas ortodoxos é a independência do Banco Central. Não vejo como a sua eficiência na condução da política monetária para defesa do poder de compra da moeda e a higidez do Sistema Financeiro Nacional tenha crescido com a Lei 179, aprovada na Câmara e no Senado, que lhe deu autonomia perante o Executivo em 24 de fevereiro de 2021, com mandato de três anos do presidente e diretores, não coincidente com a troca de governo.
Por sinal, uma das bússolas usadas pelo Banco Central do Brasil para guiar sua política monetária (vale dizer a oferta de moeda e o grau dos juros para manter a economia dentro da trajetória das metas de inflação) deu chabu dois anos seguidos e tende a repetir em 2023. É verdade que as metas de inflação são fixadas 30 meses antes pelo Conselho Monetário Nacional (integrado pelo ministro da Fazenda ou da Economia e o presidente do BC, Roberto Campos Neto, mantido este ano no cargo pelo mandato de independência, terá a companhia de Fernando Haddad, como ministro da Fazenda, e de Simone Tebet, como ministra do Planejamento). As metas têm sido ultrapassadas pelos fatos, como a pandemia da Covid-19 (em 2020 e 2021) e as consequências da invasão da Ucrânia pela Rússia, que completou um ano esta semana. Vejamos o caso de 2021: a meta, fixada em junho de 2018, no governo Temer, previa inflação de 3,75%, com tolerância de 1,50 ponto percentual (para cima ou para baixo). O teto da meta era de 5,25%. A inflação que já tinha ameaçado estourar o teto da meta em 2020 (os alimentos subiram 14% por falta de cuidado do governo na formação de estoques reguladores – públicos ou na iniciativa privada e o IPCA ficou em 4,52%, graças à queda dos combustíveis com a recessão mundial, abaixo dos 5,50% do teto da meta). Em 2022, o teto da meta era de 5% (3,50% de meta + 1,50 de tolerância). Deu 5,79% não por mérito do Banco Central, que fixou a taxa Selic em 13,75% em 3 de agosto e está até agora tentando acertar a meta (nem no teto, como se fosse uma trave de “rugby”). Puxada pela escalada dos combustíveis e dos alimentos (reflexo da guerra na Ucrânia), a inflação acumulada em 12 meses no IPCA estava em 12,13% em abril. O então ministro da Economia, Paulo Guedes, ortodoxo de carteirinha, com PhD em Chicago, onde foi aluno de Milton Friedman, rasgou seus escrúpulos e, para tentar aumentar as chances de reeleição do seu chefe, o presidente Jair Bolsonaro, tratou de intervir nos impostos dos preços que pesavam na inflação (combustíveis, a começar pela gasolina, item de maior peso na inflação e na formação de expectativas, na energia elétrica e nas comunicações).
Guedes&cia derrubaram a inflação. Mas não conseguiram reeleger o presidente, mesmo escoando bilhões do Tesouro para os bolsos dos eleitores. E o Banco Central, na sua independência, continuou firme na busca da meta quimérica, que tem teto de 4,75% para este ano (3,25% de meta + 1,50 de tolerância). RCN teve que se justificar em Carta formal ao novo presidente do CMN, Fernando Haddad, porque estourou a meta (se Bolsonaro tivesse sido eleito a trajetória dos juros e das medidas fiscais para corrigir as renúncias bilionárias para agradar uma parcela do eleitorado de maior poder aquisitivo (donos de carros, motos e jet-skys) começaria a ser implementada em novembro do ano passado. Sobrou para Lula uma minirrecessão, causada pelo freio na economia causado pela escalada dos juros básicos (a Selic), que estão cada vez maiores em termos reais (descontada a inflação), na medida em que a inflação desce lentamente (deu 5,63% na prévia do IPCA-15 de fevereiro).
A ponta do ‘iceberg’
A crise da Americanas é só a ponta do “iceberg” e está escondendo não apenas mais de R$ 20 bilhões em dívidas não contabilizadas. Ela é uma amostra do que está por vir: os consumidores estão cortando as compras devido aos juros que esfriaram a economia (as vendas em novembro e dezembro foram ruins e continuaram em janeiro e fevereiro) e o desemprego tende a crescer novamente. Tudo isso foi percebido pelo presidente Lula quando saiu criticando as atitudes inertes do Banco Central e aproveitou para dizer que em seus dois primeiros governos, quando não havia independência, o Banco Central, sob o comando de Henrique Meirelles, que ganhou “status” de ministro para não ser demitido ou alvo de CPIs, “tinha plena autonomia”.
Quem quiser entender a real capacidade dos bancos centrais em atuar no controle da inflação, recomendo a leitura de excelente artigo publicado no “Financial Times” de 5ª feira, 23 de fevereiro, distribuído num grupo de amigos pelo economista Cláudio Contador, da Coppead-UFRJ. Uma das bíblias do pensamento ortodoxo, o influente jornal de economia e finanças do Reino Unido trouxe esclarecedor artigo da economista Claudia Sahm. O título já diz muito: “O Fed sozinho não pode derrubar a inflação”. Claudia tem conhecimento de causa. Ela integrou, no período de 2007 a 2019, o time de economistas do Federal Reserve Bank de Nova Iorque, que executa a política monetária. Estava lá quando eclodiu a maior crise financeira do capitalismo moderno, a crise do “subprime” de agosto de 2008, que provocou forte recessão mundial em 2009-10. No subtítulo ela mostra a incapacidade dos BCs em lidarem sozinhos no combate à inflação. “Gestão da demanda não é eficiente para lidar com aumentos de preços impulsionados pela oferta: a política fiscal deve fazer sua parte”. Antes que os ortodoxos defensores do equilíbrio fiscal (que parece ser uma premissa palmar) comemorem, vale lembrar que, em meio ao descontrole de gastos, como ocorreu nos Estados Unidos no final dos anos 70, se o Banco Central pisar no freio e elevar ao infinito os juros, como fez Paul Volcker à frente do Fed , a inflação pode até cair, por falta de fôlego da demanda. Mas, antes de a economia americana cambalear, quebraram os países emergentes que se endividaram para fazer investimentos estruturais em suas economias para se ajustarem ao novo patamar dos preços do petróleo (triplicado em setembro de 1973 e que voltaram a explodir em dezembro de 1979 com a guerra entre o Irã e o Iraque (dois dos cinco maiores produtores da época). Claudia, que ganhou fama e reputação por ter criado no Fed um indicador, a “Sahm Rule”, que avalia em tempo real se a economia americana está em recessão. Segundo a regra, sempre que a média móvel trimestral da taxa de desemprego fica 0,5 ponto percentual acima do ponto mais baixo dos últimos 12 meses, o país está em recessão. Tem sido assim desde os anos 70. Aqui o nosso BC está a dever inovações para medir a eficácia de sua política.
A questão da “ancoragem” das expectativas de inflação do mercado para a inflação sempre me pareceu um pouco exagerada. Quem acompanha semanalmente as pesquisas Focus, que o Banco Central colhe junto a quase 150 instituições financeiras, consultorias e institutos de pesquisas até cada 6ª feira e divulga na 2ª feira, sabe que a Focus traz as expectativas de inflação dos anos seguintes atreladas às metas de inflação (fixadas 30 meses antes). Os bancos e institutos de pesquisa têm modelos importantes de acompanhamento de preços, que levam em conta o calendário de reajustes de tarifas (sobretudo energia elétrica e água e esgoto). Vários itens têm reajustes anuais (pela inflação passada – caso das mensalidades dos Planos de Saúde, que vão pesar este ano, pedágios, mensalidades escolares e aluguéis). Os preços dos combustíveis dependem da demanda internacional e de eventos como a guerra, que completou 12 meses, ou o sobe e desce da demanda causada pela Covid. Idem os preços dos alimentos dependem de grandes safras nos principais países produtores e exportadores (no tripé, soja, milho e carnes, o Brasil supera os Estados Unidos). A guerra afetou os preços do trigo e do milho, pois Rússia e Ucrânia ficaram de fora da oferta no mercado.
Basta janeiro entrar na 3ª semana para as projeções irem subindo. Mas não há qualquer capacidade de previsão exata (apenas a tendência) para os preços dois anos adiante. Isso é feito usando as cotações dos mercados futuros, que apontam queda do petróleo para os próximos três anos (frente ao alto nível de 2022). O mesmo se aplica às “commodities” metálicas, agrícolas, minerais e energéticas. Aumentos de juros costumam derrubar as posições com apostas mais suaves nas curvas de juros. Por isso, quando os BCs elevam os juros de surpresa, os mercados desabam (para que as operações futuras sejam refeitas novamente e novas bases). Por isso, a questão dos juros é muito sensível nos mercados. Os gestores de carteiras podem ter grandes lucros ou prejuízos.
Voltando à Claudia Sahm, ela chama a atenção para a impotência da política monetária dos BCs no controle da demanda. Porque, segundo seus estudos (e consenso do Fed), “40% da formação da inflação dependem da demanda, outros 40% da oferta e 20% são ambíguos”. Paulo Guedes percebeu isso e interferiu nos preços da gasolina. Mas o BC não escapou da 2ª época e nova reprovação. Mas aqui eu pergunto: diante de toda a anemia econômica (o IBGE vai divulgar o PIB do 4º trimestre, com previsão negativa, que reduziu o resultado do ano de 2022, estimado em 2,9%), o Banco Central deve seguir mirando uma meta inalcançável ou perceber que já passou da hora de aliviar a dosagem cavalar do remédio para debelar a inflação? Espera-se que Campos Neto e Haddad acertem os ponteiros e os fusos horários na reunião do G-20, na Índia. Um eventual armistício entre Rússia e Ucrânia poderá derrubar os preços do petróleo e derrubar todas as projeções de inflação, facilitando a tarefa. Por isso, na questão da recomposição do ICMS, vital para os governos estaduais, sobre combustíveis, energia e comunicações (que Bolsonaro e Guedes reduziram de 30/32% para 17/18%), o presidente Lula negociou com o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, cenários nos quais a estatal pode auxiliar na estabilidade da economia e derrubar expectativas inflacionárias.
Como fazer transição com juro alto?
A questão que Claudia Sahm não arranhou está na mesa de todos os governos. Há um imenso desafio para a concretização dos investimentos necessários à reciclagem energética, visando às reduções das emissões de gás carbônico na atmosfera, com metas para 2030, 2040 e 2050. A União Europeia vai proibir a circulação de veículos com motor a combustão em 2035. A conversão vai gerar uma mudança importante na oferta, que será mais rápida num cenário doméstico e mundial de juros mais reduzidos. Mas a oferta só ganhará escala, com investimentos em maior produtividade para seduzir o consumidor com produtos de qualidade, se houver nível de juros razoável: para investir e consumir. Com o alto juro da renda fixa, o capital não é investido para produzir. E endivida o Tesouro cada vez mais. No Brasil e em outros países.
Evidentemente, se for alcançada a paz entre Rússia e Ucrânia, serão menos percalços no caminho. Com a inflação tendo menor pressão inflacionária dos combustíveis, os BCs podem baixar a guarda (e o nível dos juros), facilitando os pesadíssimos investimentos que o setor privado precisa fazer, sob indução e/ou liderança do Estado, para aumentar a oferta de novos produtos decorrentes da nova matriz energética para mitigar os efeitos do aquecimento global. No Brasil seria impossível com o piso de juros em 13,75% ao ano. O retorno dos investimentos é inviável e, assim, planos não saem do papel.
O Congresso, que retoma a sua agenda de discussões depois do recesso de Carnaval, precisa estar antenado para isso e os deputados e senadores devem pensar no país e menos em seus próprios interesses. Não basta a reforma tributária para simplificar, com a criação do IVA, a parafernália de impostos, e pôr fim à competição deletéria entre os entes federativos pela qual quem “paga o pato” é sempre o consumidor. O Brasil precisa fazer muitos investimentos. Mas investimentos com estudo de viabilidade prévia, por consultorias renomadas, que atestem a possibilidade de retorno lucrativo para toda a sociedade e não gastos improdutivos e sem retorno compensatório.
Por falar em quem “paga o pato”, usei o símbolo explorado pela Fiesp na gestão de Paulo Skaf, para justamente contestar a queixa recorrente dos empresários e banqueiros de que eles pagam muitos impostos, tributos e taxas. De acordo com a estrutura tributária do país, na qual cerca de 73% dos impostos estão embutidos nos produtos consumidos pela população, quem arca com a maior carga tributária são os consumidores. Os industriais, comerciantes e banqueiros são meros recolhedores de impostos que nós consumidores já pagamos nas diversas etapas de comercialização. E, quando não cometem o crime de apropriação indébita (são fiéis depositários dos nossos impostos pagos nas notas fiscais), ainda desfrutam de ganhos financeiros nas aplicações até a data do recolhimento dos tributos à Receita Federal. Nos bancos é semelhante: recolhem IOF nos empréstimos que tomamos e o IR das aplicações financeiras. O imposto que pagam, de fato é o do lucro dos negócios, já embutido na margem de lucro de cada mercadoria ou serviço, no caso dos bancos e atividades não comerciais ou industriais.
O espírito da reforma tributária é simplificar a burocracia e tornar os impostos transparentes aos consumidores, quando reduzidos a meia dúzia de tributos e taxas, no máximo. Mas a pretendida justiça fiscal, que nos aproximará da OCDE, só virá se houver maior tributação proporcional sobre as grandes fortunas e bens patrimoniais e os lucros e dividendos das empresas aos sócios.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)