Um relato sobre as quase vinte e uma horas sem certeza sobre o paradeiro da filha Clara durante as chuvas no litoral norte
Sábado de carnaval. Convidei uma amiga de São Paulo pra vir pra praia, desanuviar e curtir um pouco a festa popular – e fomos. Havia a previsão de muita chuva, alertas firmes da defesa civil para uma tenebrosa tempestade. Durante o dia, não foram muitos os sinais do que viria pela frente: fez sol, tomamos cerveja na areia, entramos no mar, voltamos e nos arrumamos para ver o maracatu desfilar.
Chegando na cidade – vivo num bairro isolado, imerso na Mata Atlântica – uma chuva inclusive mais suave do que a comum por aqui (afinal, Ubachuva). Dançamos, cantamos e assistimos flashes de raios pelo horizonte na orla, na direção da Ilha Bela, São Sebastião e Caraguatatuba. Nos reunimos num barzinho, numa linda e potente roda de samba – que teve Elizabeth Mennezes, pérola do Vale, como especial convidada. A noite seguia trivial, apesar dos comentários sobre a previsão de calamidades e ciclones, inclusive. Lá pelas tantas, escrevi uma mensagem pra minha filha, que mora em Maresias e passeia pelas praias/bairro nos arredores, trabalhando e se divertindo. “Querida carnavalesca, aproveita com juízo e me dá notícias”. Ela me responde que estão indo pra casa, ela e o namorado, chove bastante e não parece estar no meio da catástrofe: “quem tá em casa tá seguro, mãe, pode ficar tranquila”. Isso foi às 1h30 aproximadamente, de sábado para domingo.
Segue o baile, me joguei nos festejos e segui dormir no apartamento de uma amiga. Em casa não alaga nem desliza, mas cai árvore – muita. A noite correu de fato tranquila: Clara, a filha, estava segura em casa, com o namorado e eram essas as notícias. Acordei, telefonei pra minha mãe, em São Paulo, pois imaginava que ela estaria aflita. “Clara comentou o paradeiro de madrugada, estão em casa, seguros, daqui a pouco ela liga”. Estava de fato sossegada com os pontos dela não estar na rua e ser safa, jamais se colocaria em risco. Acontece que a proporção de determinados eventos independem das nossas escolhas e, então, o passar do tempo, somado às lacunas, incomoda, e muito.
Durante o dia, os jornais começam a dar conta de mortes, desaparecimentos e muito desabrigo, e o coração dá sinais. Entendi que a pior parte da tragédia aconteceu depois que nos falamos. Espera, não surta. Ela está segura e é safa. Mas não é só isso. Foi feio, feio demais. Mas não tem nada pontual sobre Maresias. Calma, não desmaia. Respira, profundo, vamos, respira. Ela tá bem. Perguntei pro invisível, escutei isso. Ela está bem, insisto comigo mesma. Meu jeito favorito de passar perrengue é evitando ruídos: já bastam meus pensamentos que facilmente descambam para o pior cenário possível. Ansiedade é uma merda. Uma chave que sempre funciona é ativar uma confiança extraordinária no que pode acontecer de bom e exercitar algo que me afeta intimamente, que chamam de fé. Acendi vela, rezei e conversei com meu pessoal.
Só assuntei com minha mãe e irmã, além da amiga que estava aqui em casa, durante a espera. Estava difícil respirar. Ela tá bem, essa é a notícia. Repeti incansáveis vezes em voz alta e intimamente, como um mantra profundo e que me desafiou ao exercício mais desafiador da minha vida: saber que meu amor está no meio de uma tragédia e não saber dela, nadinha. “Escreveu 1h30 da manhã, estava chegando em casa, está segura”. Ao longo do dia a comunicação com a amiga que divide a casa com ela e que tinha informação in loco, por meio do irmão que conseguiu sinal em um ponto específico da praia, foi o que fez os pés permanecerem no chão. A cidade está sem comunicação, sem luz, sem sinal de operadores de celular, alagada em muitos pontos, mas não houve nenhum deslizamento. Ufa. “Maresias foi o bairro menos atingido”. Ela tá bem, talvez eu não tenha retorno ainda hoje, mas calma, confia.
A essa altura, anoiteceu a já estava bem perto das 22h quando eu, minha mãe e irmã estávamos nos falando compulsivamente, procurando e doando alicerce. Os grupos das famílias começam a perguntar da gente, envio prints de conversas que trazem dados positivos. Duas amigas com as quais mantenho relação especialmente invisível – a conexão não é rotineira, mas bastante especial – me escrevem e me acalmam. Quem me acompanha não dorme, entendo o recado e sigo, pés no chão. Por telefone, o contato era só com a mãe e a Luiza, cada hora uma falando com a outra incansáveis em tentar encontrar soluções, o que variou entre manter a cabeça no lugar e não infartar enquanto ela não liga até alugar um helicóptero. Pense.
Numa dessas trocas, minha mãe grita: “ela ligou, ela ligou!”. Escrevo e sou tomada pela emoção que provavelmente não sei nomear e que desejo não sentir nunca mais nessa existência. Minha filha estava viva. Segura. Clara ligou pra minha mãe porque soube que Ubatuba estava um caos e achou melhor não perder a chance de se pronunciar perante um raro sinal encontrado na telefonia – minha filha é safa. Ela está segura, ela está bem, ela está viva. Gritos na mata. Obrigada. Obrigada.
Finalmente alguma paz me encontrou e consegui descansar, um tanto esquisita. Acordei sabendo que ela está bem, verdadeiro alívio. Começam a chegar mensagens, muitas, de gente conhecida: como estão, estamos preocupadas, contem de vocês. Escrever que estamos bem, assim, no plural, me comove ainda. A TV não pára de mostrar imagens tristes, idem as redes sociais, o Lula vem e o tamanho do que foi este carnaval no Litoral Norte de São Paulo ganha a proporção extracorpórea, com centenas de pessoas atingidas. Uma garotinha morreu aqui na cidade, num bairro perto da gente. Caiu barreira. São Sebastião está destruída. A Barra do Sahy foi a mais atingida. Muitas mortes e pessoas soterradas, desaparecidas. Muitas famílias desabrigadas, muita gente sem saber dos seus.
A internet está abarrotada de informações jornalísticas com os dados, inclusive sobre como contribuir com a reconstrução das comunidades, das estradas, a tal da retomada pelo fluxo da vida. Por aqui, um relato íntimo, quase um registro: é verdade, ela está bem, tudo certo me sentir tranquila. A culpa por estar assim perante o sofrimento de tantos me consome, mas no momento, é isso. Preciso passar por essa.
Tenho experiência em lidar com traumas, e entendo que a superação de um deste porte é coisa para mais de uma aldeia. A amiga que estava em casa puxou o carro literalmente, aflita com o que pode vir ainda. Assisti algumas chamadas, dei conta da situação geral da região e entendo que não é exagerado o que sinto, como também me é de costume nas preocupações com minha filha. Foi uma tragédia. E ela está viva. Está segura. Vamos nos falar em breve. Essa é, por aqui, a grande notícia.
MARIANA NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)