Do espaço sideral ao fundo do oceano, todas essas conexões fazem parte da Rota da Seda digital da China que tenta se colocar no centro geopolítico do mundo executando projetos de infraestrutura em mais de 140 países
Se a história é escrita pelos vencedores, então as fantasias sobre o futuro também são. A fantasia mais sedutora, nascida sob o ofuscante brilho da vitória na guerra fria, idealizava que a tecnologia das comunicações inevitavelmente promoveria a liberdade. Ronald Reagan declarou em Londres em 1989: “mais que os exércitos, mais que a diplomacia, mais que as melhores intenções das nações democráticas, a revolução das comunicações será a maior força para a liberdade humana que o mundo já viu”.
Só que não. A fantasia de que a conectividade favorece a liberdade já evaporou há muito tempo.
O otimismo com o papel das comunicações para a liberdade preconizava até uma abertura na China mesmo depois da violência na Praça da Paz Celestial(Praça Tiananmen). O chefe da filial do NYT em Pequim, então escreveu: “O Partido Comunista assinou seu atestado de óbito esta noite”. Diplomatas e correspondentes estrangeiros debatiam se o Partido duraria semanas, meses ou um ano.
O Partido Comunista Chinês vem se armando de tecnologia de comunicações e todo o aparato digital tanto para controlar totalmente as redes internas quanto para expandir sua influência no exterior. Câmeras de vigilância com inteligência artificial recobrem os espaços públicos com reconhecimento facial. A China se tornou não só o maior dos Big Brothers, mas também o maior provedor mundial de tecnologia de comunicações. E a internet de banda larga é a nova eletricidade.
A Huawei tem fábricas em mais de 170 países e não é a única em telecomunicações. Outras companhias chinesas produzem 40% das câmeras de vigilância do mundo, 15% da fibra ótica do planeta e um dos 4 maiores fornecedores de cabos submarinos, pelos quais são transmitidos 95% dos dados internacionais. O sistema global de navegação por satélite da China, o Beidou, provê uma cobertura mais extensa do que o GPS dos EUA em 165 das maiores capitais mundiais.
Do espaço sideral ao fundo do oceano, todas essas conexões fazem parte da Rota da Seda digital da China, ou RSD. Ela foi mencionada pela primeira vez em 2015 como componente da Iniciativa Cinturão e Rota da China, concepção de Xi Jinping para se colocar no centro geopolítico do mundo executando projetos de infraestrutura em mais de 140 países que aderiram ao Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda.
Essa história é contada em detalhes envolvendo política e espionagem no livro “A Rota Digital da Seda” de Jonathan E. Hillman.
As autoridades chinesas vêm há tempos afirmando que países do terceiro escalão constroem coisas, os de segundo escalão projetam coisas e os do primeiro escalão definem padrões.
As firmas chinesas, usando o imenso mercado chinês como isca, copiaram e ganharam controle da tecnologia ocidental. Beneficiaram-se de generosos subsídios do seu governo, roubaram segredos dos laboratórios, showrooms e computadores dos seus concorrentes no que foi chamado de “ a maior transferência de riqueza da história”.
Entretanto, muitos desses atalhos foram legais com inúmeras parcerias de joint venture.
A Nortel (a canadense Northern Telecom) e outras grandes companhias de telecomunicações ocidentais foram cúmplices de seu próprio fim. A Nortel concordou em montar uma instalação de P&D em Pequim, tornando-se o primeiro fornecedor estrangeiro a fazer isso. E também construiu uma fábrica de semicondutores em Xangai. O que não levaram em conta é que transferir tecnologia é algo que não tem volta, enquanto acesso ao mercado pode mudar com o vento.
E não foi só a Nortel. Uma ação movida pela Cisco, concluiu que a Huawei copiou o seu código fonte e replicou-o integralmente em seus roteadores. Em 1999, a Cisco tinha 80% do mercado chinês de roteadores. Em 2004 a participação caiu para 56% enquanto a Huawei subia para 31%. A Nortel quebrou. Quando o departamento de defesa canadense comprou a sede da empresa, descobriu que o edifício de 200 milhões de dólares estava cheio de dispositivos de escuta.
Tardiamente os Estados Unidos perceberam que o sonho da globalização disseminando os conceitos ocidentais de liberdade e democracia com o espalhamento das redes de comunicação era isso mesmo – sonho, e tremendo erro de avaliação.
Agora corre contra o tempo, restringindo o acesso da China às tecnologias mais avançadas de semicondutores na esperança de retomar o controle da situação. Que essa disputa não acabe em guerra de verdade, uma possibilidade real.
Evandro Milet é consultor, palestrante e articulista sobre tendências e estratégias para negócios inovadores. Artigo publicado também no ES360.