“Como os anacrônicos balões espiões, ninguém sabe ao certo qual o caminho que a guerra percorrerá e onde finalmente cairá”, diz Marcelo Zero
A guerra não é apenas cemitério de homens. É também a sepultura da razão.
Todo o mundo sabe como uma guerra começa, mas ninguém sabe como termina. Ou, pior ainda, como com ela terminar. Como os balões meteorológicos e os anacrônicos balões espiões, ninguém sabe ao certo qual o caminho que a guerra percorrerá e onde finalmente cairá.
É o que acontece com o conflito na Ucrânia.
O que era para ser uma intervenção militar de curto prazo virou uma guerra de longo prazo. Passado quase um ano da invasão, o conflito na Ucrânia se transformou num atoleiro para o mundo.
Essa guerra de longo prazo, sem solução à vista, está preocupando até mesmo os EUA.
Com efeito, a grande pergunta que se faz hoje em Washington é: como essa guerra vai acabar?
Aos EUA não interessa objetivamente uma guerra de longo prazo.
A guerra tem, é claro, custos financeiros elevados. Até novembro do ano passado, os EUA já tinham enviado cerca de US$ 48 bilhões à Ucrânia, em armamentos, ajuda humanitária e suporte financeiro. Com o pacote adicional de US$ 47 bilhões aprovado em dezembro, já são quase US$ 100 bilhões que os EUA estão destinando à Ucrânia. Isso é US$ 16 bilhões a mais que todo orçamento da defesa de Moscou para 2023. Além disso, as munições enviadas à Ucrânia estão acabando com os estoques da Otan, que precisam ser repostos.
O problema principal, contudo, não é esse.
O problema maior são os riscos à segurança e os custos geopolíticos.
Uma guerra de longo prazo na Ucrânia cria dois grandes riscos associados entre si.
O primeiro risco é o de que esse conflito, por enquanto confinado à Ucrânia, acabe por se transformar num conflito entre Rússia e Otan.
A este respeito, deve-se observar que isso está perigosamente perto de acontecer. O crescente envolvimento militar dos europeus no conflito, exemplificado, agora, com a decisão de enviar tanques e outros armamentos mais sofisticados para o cenário de guerra poderia levar a Rússia a dar resposta, na forma, por exemplo, de ataques preventivos a rotas de suprimentos ou a membros da Otan que resolvam apoiar mais efetivamente a Ucrânia. Saliente-se que esse país tem fronteiras com 4 membros da Otan, o que cria um cenário propício à escalada geográfica do conflito.
O segundo risco, associado ao primeiro, tange ao uso de armas nucleares.
De fato, existe o risco concreto do uso de armas nucleares táticas, no cenário de guerra.
Essas armas nucleares podem ser usadas a partir de misseis balísticos de curto alcance, de mísseis “cruise”, ou mesmo de sistemas de artilharia. Os danos dessas armas são localizados, mas têm um impacto muito grande, inclusive psicológico. Porém, a utilização dessas armas só se justificaria militarmente contra alvos de grande concentração de forças, o que não está posto no teatro de guerra atual.
Apesar de que hoje em dia esse risco seja remoto, ele se ampliará consideravelmente, à medida que a guerra se prolongue e/ou se expanda. Caso uma das partes do conflito esgote seu arsenal convencional sem conseguir objetivos militares mínimos, o uso dessas armas poderia, no limite, acontecer. Obviamente, isso poderia induzir também o uso de armas nucleares estratégicas, um cenário dantesco para o planeta.
No entanto, Washington também está preocupado com os custos geopolíticos do conflito.
É que esse conflito na Ucrânia está desviando os recursos dos EUA do foco primário da sua política de defesa: a China.
Com efeito, a grande preocupação estratégica dos EUA é enfrentar e conter a avassaladora ascensão econômica, tecnológica, geopolítica e também militar da China, vista como a grande ameaça à Pax Americana. A ridícula celeuma criada por causa da presença de um anacrônico balão chinês, supostamente espião, nos belos e patrióticos céus de Montana, demonstra bem o grau de tensão que há entre essas duas potências.
A Rússia é um contendor político e militar dos EUA na Eurásia. Já a China é o grande rival mundial dos EUA em todas as dimensões, em todas as regiões do planeta.
Mas, além de desviar o foco e os recursos do objetivo primário da política de defesa dos EUA, o conflito na Ucrânia pode acabar por beneficiar diretamente a China.
De fato, ao isolar a Rússia, EUA e seus aliados estão empurrando esse enorme país, o maior do mundo e riquíssimo em energia, minérios etc., para a órbita de Beijing. Evidentemente, isso só vai aprofundar a parceria estratégica entre esses membros do BRICS e fortalecer a economia chinesa com os preciosos insumos provenientes da Rússia.
Não é à toa, portanto, que os EUA estão preocupados com o alongamento do conflito.
Guerras só acabam de duas maneiras: com a vitória militar convincente de uma das partes ou via negociação.
O primeiro cenário está descartado. Pelo menos, por enquanto. Resta, assim, somente a negociação como única via para a paz.
EUA e aliados europeus, porém, têm dificuldades em fazê-lo. É que eles estão diretamente envolvidos no conflito e, ademais, convenceram a opinião pública de seus países que Putin é um sanguinário ditador, o qual, enlouquecido, resolveu invadir a Ucrânia com o intuito maior de restituir à Rússia a antiga glória da União Soviética e de voltar a dominar todo o Leste europeu.
É um completo disparate, mas é um disparate hegemônico na simbologia do conflito. Não são apenas os bolsominions que vivem em bolhas tóxicas.
Esses atores estão, por conseguinte, com um grande abacaxi nas mãos. Um abacaxi nuclear. Não querem que o conflito se alongue muito, se expanda e se aprofunde, mas não sabem como terminá-lo, sem dar a impressão de derrota ou de comprometimento ético. Afinal, como justificar negociações com um “monstro” como Putin?
Nesse contexto, a proposta de Lula de compor um grande grupo que proponha paz e negociações faz sentido e pode ganhar concretude. O Brasil, de forma inteligente e condizente com seus interesses, condenou a invasão, mas resistiu às indevidas pressões para se envolver no conflito, como a de enviar munições para a Ucrânia. Essa neutralidade o cacifa a atuar como mediador, em eventuais futuras negociações.
Lula e o Brasil podem, dessa maneira, iniciar um processo negociador que desmonte a armadilha de uma guerra que tem tudo para produzir resultados catastróficos para todo o mundo. Só iniciar, é evidente, pois a paz dependerá essencialmente da Rússia, da Ucrânia, dos EUA, da Europa e da China.
Porém, iniciar é o primeiro e fundamental passo. O passo corajoso e decisivo. E inteligente.
Nessa altura do campeonato, convenhamos, um armistício já seria algo genial. Furaria o insensato balão da guerra.
MARCELO ZERO ” BLOG BRASIL 247″ ( BRASIL)
É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado