SAMBA MACARRÔNICO

História do Brasil e Samba do crioulo doido. Ambos efetuam um processo de carnavalização que incide mais sobre o significado

Se entendermos “macarrônico” em seu sentido mais amplo, poderemos incluir dois sambas que não o são apenas na linguagem, mas mais ainda no entrecho: História do Brasil Samba do crioulo doido. Ambos efetuam um processo de carnavalização que incide mais sobre o significado, ao contrário das composições de Adoniran Barbosa que são macarrônicas no significante, que utilizam a linguagem corrompida.

Estes que examinamos hoje são delirantes, alucinatórios, anárquicos e surrealistas – a incongruência da definição de Lautréamont apropriada pelos surrealistas: “O encontro de uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção”

Um deles, aliás não um samba mas uma marchinha, leva o presunçoso título de História do Brasil. Seu autor, Lamartine Babo, é um dos mais extraordinários compositores de música popular que já houve entre nós, de uma fecundidade fora do comum, que emplacava marchinhas de sucesso em cada carnaval. Ele mesmo era um fanático folião, sempre fantasiado de “Viúva”. E não compunha só marchinhas, também compôs música clássica e o hino de cada clube de futebol do Rio de Janeiro. Grande boêmio e grande trabalhador, que tinha dez empregos ao mesmo tempo. Seu traço fundamental é a irreverência. Mas vamos à História do Brasil.

Começa pela pergunta: “Quem foi que inventou o Brasil?”, quando na escola nós todos aprendemos que o Brasil não foi inventado mas descoberto. E logo responde:

“Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!”

E em que data?

“No dia 21 de abril

Dois meses depois do Carnaval”

É notável: a data de fundação da nação é o Carnaval, e não o descobrimento…

Depois, continua trazendo à tona os ícones da pátria:

“Depois Ceci beijou Peri

Peri beijou Ceci

Ao som, ao som do Guarani.

Do Guarani ao guaraná

surgiu a feijoada

E depois o parati”

Esses ícones são: os protagonistas da ópera indianista de Carlos Gomes; o refrigerante típico do Brasil; a feijoada; e a cachaça, ou parati, como então se dizia. Hoje diríamos que faltou apenas o futebol, porque o samba está subsumido no Carnaval. E não termina aí.

Três décadas depois (1934-1968) surgiria outro, o Samba do crioulo doido, da autoria de Sérgio Porto, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. Mais minucioso em sua porfiada paródia de um samba-enredo, vai com deliberação carnavalizar os ícones da pátria. A premissa de base é a conhecida obrigatoriedade de que o samba-enredo das para o desfile no Carnaval deve tratar temas da História do Brasil. Donde os maiores absurdos.

Um enredo complicadíssimo vai pôr em cena Juscelino Kubitschek, Diamantina, a princesa Leopoldina, Chica da Silva, Tiradentes, Anchieta, D. Pedro II, e assim por diante. De absurdo em absurdo, o samba termina por celebrar a Proclamação da Escravidão, devidamente atribuída a seus autores, anteriormente mencionados, Tiradentes e Pedro II, título com que Anchieta “se elegeu”:

“Da união deles dois ficou resolvida a questão

E foi proclamada a escravidão!”

Além de serem boas composições, tanto a marchinha quanto o samba são divertidíssimos, inteligentes e de grande balanço.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO ” JORNAL GGN” ( BRASIL)

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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