Andujar chegou aos Yanomami em 1971, quando realizou matéria sobre a Amazônia para a revista Realidade, da Editora Abril
Nascida Claudine Haas, a fotógrafa e ativista suíça Cláudia Andujar, naturalizada brasileira em 1976, e hoje com 91 anos, se dedica a registrar e militar na luta Yanomami contra o genocídio desde a década de 1970.
Chegou ao País em 1955, para se reencontrar com a mãe, no contexto das agruras da Segunda Guerra Mundial, e por aqui decidiu fincar raízes. Como fotógrafa, colaborou com revistas nacionais como Quatro Rodas, Cláudia, Setenta, Goodyear Brasil e internacionais (Life, Aperture, Fortune, Look e outras).
Andujar chegou aos Yanomami em 1971, quando realizou matéria sobre a Amazônia para a revista Realidade, da Editora Abril, veículo para o qual trabalhava como freelancer desde 1966. A partir de então, sua trajetória passou a traduzir e denunciar a tragédia desse povo, sempre à beira iminente da extinção.
Entre suas principais exibições, destacam-se a participação na 27ª Bienal de São Paulo, a exposição “Yanomami”, na Fundação Cartier de Arte Contemporânea (Paris, 2002) e a retrospectiva Claudia Andujar: A luta Yanomami no Instituto Moreira Sales, São Paulo, com curadoria de Thyago Nogueira (2018-2019) e Rio de Janeiro (2019)[2]. Esta última mostra seguiu para Paris (Fondation Cartier pour L’Art Contemporain, 2020), Milão (Triennale Milano, 2020-2021), Barcelona (Fundación Mapfre, 2021), Londres (Barbican Centre, 2021) e Winterthur, Suíça (FotoMuseum Winterthur, 2021-2022)
Desde o seu primeiro contato com os Yanomami, ainda relativamente isolados, foram inumeráveis as vezes que a fotógrafa voltou a frequentá-los e documentá-los. Sua interação com os indígenas sempre foi muito além do simples registro fotográfico documental, para incluir relacionamento, empatia, intimidade, cumplicidade, participação e estímulos para que os próprios Yanomami desenhassem e representassem visualmente sua cultura.
Ainda que sem ter formação antropológica, Cláudia Andujar transformou o seu trabalho em um verdadeiro fazer etnográfico, mergulhando profunda e imersivamente na cultura e no viver do Outro, empaticamente buscando a compreensão de formas diversas do existir e de estabelecer relações com o mundo, a natureza e outros seres viventes.
Para concretizar suas conexões com os indígenas e imergir em sua cosmogonia, Andujar desconstrói gradativamente seus próprios modos de fotografar. As lentes são besuntadas de vaselina e as imagens distorcidas tentam captar as vertigens xamânicas, a languidez serena dos olhares sem cobiça e a imersão em um mundo sem o dentro e o fora, sem a separação entre natureza e cultura, o eu e o Outro.
Ao longo do tempo, Andujar muda, também, de perspectiva e de lugar. Para não ser só ela a registrar em papel o que vê, sente e interpreta, transfere aos Yanomami a tarefa lúdica da sua própria representação simbólica. Nesse percurso, a fotógrafa ativista vai correr o País em seu Fusca preto, apelidado de Watupari (que pode ser traduzido por espírito urubu), abarrotada de papéis e canetinhas hidrocor, compradas com recursos de bolsa da FAPESP, para que os Yanomami possam desenhar seu mundo.
Os indígenas – sem experiência com as práticas do desenho representacional, não ornamental e utilitário – aceitam docemente a tarefa e vão então produzir um conjunto imagético de inestimável beleza, sentido e valor cultural, várias vezes expostos mundo afora.
O que pode ser chamado da primeira fase de trabalho de Cláudia Andujar junto aos Yanomami foi realizada pela artista no período de 1971 a 1977, na região do Catrimani, em Roraima. Nela se podem reconhecer traços da vida cotidiana dos indígenas nas florestas e malocas, possuídos em rituais xamânicos, conduzindo o olhar do observador tanto para o indivíduo, quanto para o grupo e a vida integrada à natureza. Há ali registros de serenidade e beleza, sempre em busca das revelações permitidas pela filtragem da luz pela floresta e pelas frestas das malocas. Trata-se de um período em que afloram de maneira especial a afetividade, intimidade e a cumplicidade entre fotógrafa e fotografados.
Na fase posterior, qualquer equilíbrio é fragilizado e desmantelado no contato com o branco. Os registros tornam-se viscerais e inconciliáveis com a vida harmônica natural e anterior, denunciando a radicalidade da incomunicabilidade cultural e da expropriação econômica a que passam a ser submetidos. Doenças, violações e poluição causada pelo garimpo e pela ânsia de anexar e submeter a Amazônia aos destinos desenvolvimentistas nacionais dos anos 1970-1980.
O trabalho de Andujar permite, então, acompanhar a saga de ameaças e destruição constantemente vividas pelo povo Yanomami, especialmente a partir da construção da rodovia Perimetral Norte (BR 210) e dos crescentes conflitos com garimpeiros e mineradoras em busca de ouro, urânio e cassiterita. Não serão, nem de longe, fenômenos sem consequência. Frente a isso, a fotógrafa militante não ficará imóvel. Pelo contrário, unindo arte e política liderará campanhas para a demarcação das terras indígenas e outras de perfil sanitário internacional para a vacinação em todo o território.
Nessas arenas de lutas, em 1978, Cláudia Andujar foi enquadrada na Lei de Segurança Nacional pelo governo militar e chegou a ser expulsa do território indígena pela Funai (Fundação Nacional do Índio).
Sua luta pela demarcação das terras Yanomami, iniciada em 1978 em parceria com o padre missionário Carlos Zaquini e o antropólogo Bruce Albert, a partir da criação da Comissão para a Criação do Parque Yanomami (CCPY), finalmente se concretizou em 1992, às vésperas da realização da conferência da Organização das Nações Unidas sobre o Clima, a Rio-92.
A criação da Terra Indígena Yanomami (TIY) foi assinada pelo então presidente Collor, contemplando uma área contínua de 1.419.108 hectares de floresta tropical úmida, na fronteira com a Venezuela, entre os estados de Roraima e Amazonas. Nela vivem cerca de 29 mil habitantes, em 371 aldeias, dos grupos Yanomami e Ye’Kwana.
Poderia ser o final feliz de uma luta de décadas. Poderia…
Mas, desgraçadamente, as terras indígenas demarcadas nunca deixaram de despertar a cobiça de garimpeiros e mineradoras ilegais, que não apenas invadem incansavelmente suas fronteiras, como também levam doenças e deixam rastros de poluição por mercúrio e imensas crateras abertas no solo, transformados em permanentes criadouros de insetos transmissores de doenças, especialmente da malária.
Fosse isso pouco, ainda se contabilizariam os ruídos infernais das máquinas que afugentam as caças e provocam a morte dos rios, eliminando as principais fontes de proteína alimentar, aliados à detestável e desumana prática do impedimento da chegada de assistência médica e alimentar à população da região. Assim, doença, fome e desnutrição aquebrantam a capacidade do trabalho, fazendo com que adultos transformem-se em seres prostrados em suas redes, incapazes de alimentarem-se a si mesmos, às suas proles e aos seus idosos progenitores. É o ciclo diabólico da morte instaurado, sem socorro aos mais lancinantes apelos da luta contra o genocídio.
Estudos realizados nos últimos anos por órgãos nacionais de saúde de credibilidade inquestionável comprovaram que, em 2022, cerca de 40% dos Yanomami tiveram diagnóstico confirmado de malária; que em quatro anos 570 crianças morreram de causas evitáveis ou tratáveis como desnutrição, diarreia, malária e covid-19; que, em 2019, 56% dos indígenas locais apresentavam concentrações de mercúrio no sangue acima do limite, em decorrência das atividades do garimpo em suas terras.
Nestes últimos dias, comitiva presencial do novo governo recém-empossado visitou a região e decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na Terra Indígena Yanomami (TIY). A partir daqui se aguardam medidas decididas e efetivas para a salvação desse povo atormentado e perseguido.
Na fase mais tardia da produção de Andujar, suas imagens são reconstruídas, relidas, mixadas e fundidas em uma espécie de apagamento da historicidade das cenas e dos indígenas fotografados. Essa atemporalidade assumida artisticamente traz uma inquietude visceral ao apontar para aquilo que talvez já tenha sido irremediavelmente perdido, que se tenha transformado no fantasmagórico e em nada além do que quiçá poderia ter sido.
Nos dias correntes, essa talvez seja a mensagem mais dramática e potente e o alerta de maior urgência que a sua obra nos legou. Talvez ainda tenhamos tempo, talvez a nossa salvação ainda seja possível.
Que o trabalho de valor inestimável da artista ativista Cláudia Andujar possa nos guiar ao longo do desdobramento de em um novo ciclo para os Yanomami, naquilo que é, também, uma promessa de nova vida para todos e cada um de nós. E que ele seja, desta vez, virtuoso, de amor, respeito, regeneração e renascimento. Que possamos purificar todos os Subaés e que nenhuma criança, guri ou piá sejam mais obrigados a se alimentarem de luz.
ANTÔNIO HÉLIO JUNQUEIRA ” JORNAL GGN” ( BRASIL)
[1] Doutor em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com pós-doutorado e mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo (ESPM/SP). Pós-doutorando em Gestão da Informação (UFPR). Engenheiro Agrônomo (ESALQ/USP). Pós-graduado em Desenvolvimento Rural e Abastecimento Alimentar Urbano (FAO/PNUD/CEPAL/IPARDES) e em Organização Popular do Abastecimento Alimentar Urbano (FEA/USP). Sócio-proprietário da Junqueira e Peetz Consultoria e Inteligência de Mercado.
[2] Claudia Andujar – A luta Yanomami foi realizada com apoio e consultoria do Instituto Socioambiental (ISA) e colaboração da Hutukara Associação Yanomami (HAY).