O PÚBLICO E O PRIVADO

CHARGE DE MIGUEL PAIVA

“O tempo é o senhor da razão”, costumava bradar o então presidente Fernando Collor. O tempo não o reabilitou perante a opinião pública, embora Collor já tenha sido reeleito para o Senado pela sua Alagoas. Mas em menos de uma semana empossado, o 3º governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva já marcou a enorme diferença em relação ao caótico governo de Jair Bolsonaro. A 1ª reunião do presidente com os 37 ministros foi claramente organizada. O encontro foi aberto com orientações firmes do presidente a seus ministros, destacando-se a ênfase nas negociações políticas transparentes, inclusive para a escolha de alguns dos ministros, e a subordinação do Executivo às duas casas do Congresso que representam o poder Legislativo.

Antes de elencar as prioridades do governo no combate à fome, na assistência aos que carecem de moradia e a assistência à saúde, e escancarar o descalabro deixado pelo governo anterior, com várias áreas à mingua porque concentrou os gastos na campanha, o presidente Lula foi direto: “não adianta a gente ter o governo tecnicamente formado em Harvard e não ter o voto na Câmara dos Deputados e não ter o voto do Senado”. E emendou: “Cada um de vocês, ministros, tem a obrigação de manter a mais harmônica relação com o Congresso Nacional. Não tem importância que você divirja de um deputado ou senador, quando a gente vai conversar, você não está propondo casamento, mas a gente está propondo aprovar um projeto ou fazer uma aliança momentânea em torno de um assunto que interessa ao povo brasileiro. É preciso que a gente saiba que é o Congresso que nos ajuda. Nós não mandamos no Congresso. Nós dependemos do Congresso e, por isso, cada ministro tem que ter a paciência e a grandeza de atender bem cada deputado ou senador que o buscar. Porque, se não, quando a gente vai pedir um voto, ele diz: “Ah, não vou votar porque quando estive no tal ministério nem me receberam, deram chá de cadeira de quatro horas, o ministro nem serviu cafezinho ou uma água. Não quero isso” – avisou Lula, pondo o interesse público à frente ao interesse privado.

A boa conversa, inerente à negociação política, começa a produzir uma mudança de percepção sobre os papéis de cada um dos três poderes no Estado Democrático de Direito. Foram quatro anos de deseducação do governo de Jair Bolsonaro, que se elegeu deplorando a “velha política”, da qual sempre fez parte, como integrante do baixo clero do centrão, e que terminou a 2ª metade de sua gestão nos braços do centrão, sendo acolhido como candidato à reeleição no PL do notório mensaleiro e ex-presidiário Valdemar Costa Neto, e aliado ao PP, do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (senador licenciado do PP-PI) e do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Lula aproveitou a transmissão inicial da reunião ministerial para dar um recado a cada ministro e uma aula à Nação sobre as vantagens da Democracia, com a definição clara do que é a conciliação política em torno do bem público, ao falar sobre eventuais divergências dentro do Ministério: “Nós não somos um governo de um pensamento único, não somos um governo de uma filosofia única, não somos um governo de apenas pessoas iguais. Nós somos um governo de pessoas diferentes e o que é importante é que a gente, pensando diferente, tem que fazer o esforço para que no processo de reconstrução desse país, a gente pense igual, a gente construa igual”, afirmou Lula.

O mercado financeiro que torcia o nariz para a eleição de Lula reagiu positivamente pelo 3º dia seguido, na 6ª feira. Deu-se conta de que eram exageradas e precipitadas as especulações negativas. Compreende-se. A maioria do mercado apostara na reeleição de Bolsonaro e vinha desfazendo as apostas no ex-presidente, que fugiu para os Estados Unidos, dia 29 de dezembro, para não passar a faixa a Lula e escapar do alcance de eventuais mandados de prisão na Justiça de 1ª instância, ao perder o foro especial de presidente da República. Os eleitores de Bolsonaro no mercado engoliram em seco a posse de Lula com a entrega simbólica da faixa presidencial pelos representantes deserdados da cidadania brasileira, os desassistidos que votaram em Lula e que terão preferência na ação social do novo governo, alvos da ênfase na política educacional e no Bolsa Família.

O ditado que diz “Quem desdenha quer comprar” não se aplica só nas pechinchas no comércio da Seara ou da 25 de Março. No mercado financeiro há quem manipule as Bolsas para derrubar os preços (como ocorreu com as ações da Petrobras e do Banco do Brasil), para recomprar mais barato. A Comissão de Valores Mobiliários deveria olhar melhor as ordens de compra e venda das duas últimas semanas de 2022 e na 1ª semana de 2023. E estender a lupa ao conflito de interesses que representa o perigoso controle de sites e meios de informação por instituições financeiras (a “Exame” está sob controle do BTG-Pactual; a XP tem o site “Infomoney” e por aí vai). O grupo Folha/UOL tem a “fintech” PagSeguro. Isso tem efeito perverso, como as “fake news”.



O contraste da reunião de 22 de abril

Macaque in the trees
. (Foto: Reprodução )



É verdade que não se conhece tudo o que foi expresso por cada ministro na reunião de trabalho ministerial, de mais de quatro horas. Apenas a fala inicial do presidente e o resumo posterior do chefe da Casa Civil, Rui Costa, ex-governador da Bahia que foi eleito para o Senado pelo PT. Quem sabe, o espírito de transparência inicial do governo não libere em breve a íntegra.

Mas é inevitável a comparação com a vergonhosa e caótica reunião ministerial do governo de Jair Bolsonaro, em 22 de abril de 2020. Eram decorridos pouco mais de um mês da decretação da pandemia da Covid-19 pela Organização Mundial de Saúde, em 11 de março, tendo o Banco Central baixado trilionário pacote de liberação de recursos para o sistema financeiro amparar o setor produtivo, a partir de 17 de março (o Federal Reserve Bank, o BC dos Estados Unidos, abriu suas torneiras, seguido pelo Banco Central Europeu, no dia 15). Era de se esperar que o governo discutisse os impactos da Covid-19 e as orientações do ministro da Saúde, Nelson Teich, empossado em 17 de abril por Bolsonaro, que demitira Luiz Henrique Mandetta, que se recusava a receitar o uso de cloroquina pelo Ministério da Saúde e insistia nas medidas profiláticas, como uso de máscaras e o isolamento,! para evitar que a multiplicação dos casos levasse caos ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas a reunião não fora convocada pelo presidente. O mestre de cerimônias era o então chefe da Casa Civil, o general Braga Neto, que pretendia apresentar o esboço do Pró-Brasil, que gestara com os ministros do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e classificara como um sucedâneo do Plano Marshall (liderado pelos Estados Unidos, em 1948, para acelerar a reconstrução da indústria e da infraestrutura europeia destruídas na 2ª Guerra – vencedor do conflito no mundo Ocidental, “Tio Sam” ficara sem parceiros econômicos com os aliados Reino Unido e França semi-destruídos e a Alemanha Ocidental e a Itália arruinadas, assim como o Japão, que só se recupera a partir do fim dos anos 50).

Sem traquejo de liderança e dificuldade no uso da palavra, Braga Neto (que não ajudou Bolsonaro como vice – era mais do mesmo – tanto quando Alkmin ajudou a Lula na chapa, ampliando o leque de apoiadores, que engrossou com a adesão de Simone Tebet e Marina Silva no 2º turno), o general na Casa Civil não conseguiu dar objetividade nem ordem na abertura dos trabalhos para os 22 ministros reunidos. Ainda assim, perguntou ao vice, general Hamilton Mourão, se ele tinha gostado da abertura. E Mourão deu o tom do linguajar chulo e rasteiro que veio a seguir: “Bota ordem nesse troço aí, dá logo um esporro”. E um tímido Braga Neto deu bom dia a todos, dizendo que a reunião fora solicitada por ele ao presidente da República e visava desfazer os mal-entendidos explorados pela imprensa. Na reunião, foram confirmadas as críticas divulgadas na imprensa, tendo como fonte o ministro da Economia, Paulo Guedes, que logo torpedeou a ideia de um plano retomada da economia liderada pelo Estado (heresia para o ultraliberal Paulo Roberto Nunes Guedes, que aproveitou para desdenhar da comparação com o Plano Marshall).

Na reprodução da íntegra da reunião, determinada um mês depois pelo então decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, todos conheceram a sugestão do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para aproveitar que a “imprensa estava com a atenção na pandemia” para abrir a porteira para a desregulamentação das normas ambientais, abrir a porteira e deixar passar a boiada na Amazônia”. E, também, a agressividade de Bolsonaro. Lá pelas tantas, numa indireta ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, o presidente disparou: “Mas é a putaria (sic) o tempo todo pra (sic) me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder (sic) a minha família toda, de sacanagem (sic), ou amigo meu, porque não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra (sic) brincadeira”. [no dia seguinte Moro se demitiu atirando – os dois se recompuseram na campanha de 2022, no PL]. Teich assistiu a tudo boquiaberto e se demitiu com menos de um mês no cargo.

Mas Bolsonaro fez mais ameaças, que não foram cumpridas. 1º, exortou os ministros a fazerem negociação política: “Acordem para a política e se exponham, afinal de contas o governo é um só. E se eu cair, cai todo mundo. (…) Agora, se tiver que cair um dia, vamos cair lutando, uma bandeira justa. Não por uma babaquice de exame antivírus, pô (sic). Pelo amor de Deus”. [em função de seu desleixo para com a “gripezinha” morreram 700 mil brasileiros]. Mais adiante, vaticinou: “E eu tenho certeza de que vão me condenar por homofobia, oito anos por homofobia. Daí inventam um racismo, como inventaram agora pro (sic) Weintraub” [Abraham Weintraub, então ministro da Educação, que insultou os ministros do Supremo na reunião e depois fugiu para os Estados Unidos, antecipando-se a Bolsonaro, que o indicou a uma diretoria do BID]. “Desculpa o desabafo: puta que o pariu! (sic) O Weintraub pode ter falado a maior merda (sic) do mundo, mas racista? Vamos ter que reagir pessoal, é outra briga”, disparou o presidente. “Tenho certeza, nossas forças armadas vão cumprir com seu papel”. E Bolsonaro bradou em alto e bom som: “temos de nos preparar. Se tiver uma crise política de verdade, eu não vou meter o rabo no meio das pernas”.

Pois o valentão que disse que ia ficar no resort de Donald Trump em Mar-a-Lago, Palm Bech, se refugiou na casa do ex-lutador de MMA José Aldo, em Orlando, na Flórida. Seus apoiadores tiveram crises de choro e histeria diante dos quartéis quando começaram, enfim, a ser removidos nesta semana.



Com Bolsonaro, Guedes veta Pró-Brasil

Nas avaliações iniciais de Braga, Rogério Marinho e Tarcísio de Freitas, foram listados megainvestimentos a partir de leilões e concessões de iniciativa do Estado brasileiro que somariam, de imediato, R$ 250 bilhões, sendo R$ 100 bilhões vindo para saneamento básico. Outro sonho de uma noite de fim de verão (entrávamos no outono de 2020, que viraria um longo inverno até meados de 2021) seria a arrecadação de R$ 100 bilhões pela presença das “dezessete maiores petroleiras do mundo, no leilão da cessão onerosa” do petróleo da União. O delírio foi aumentando na fala de Braga: “cem bilhões da cessão onerosa, cem bilhões de mineração, cem bilhões de saneamento, duzentos trinta bilhões de concessões. Quinhentos bilhões”. [Parecia provocação aos delírios de Paulo Guedes de que arrecadaria “R$ 1 trilhão com a privatização de estatais” e outro “trilhão com a venda de imóveis da União”].

Como o governo não teria dinheiro, era preciso atrair investidores de fora e apoio financeiro do BNDES. Tudo ao contrário do Plano Marshall. E as empresas dos países europeus e dos Estados Unidos, assoladas pela brutal queda da demanda causada pela Covid-19, não tinham a mínima disposição para investir (o tempo mostrou que o leilão da cessão onerosa acabou sendo arrematado basicamente pela Petrobras e empresas chinesas, ainda ávidas por petróleo). [com a retração do mercado mundial, o leilão só ocorreu em 17 de dezembro de 2021 e, em vez das 17 petroleiras, só compareceram a anglo-holandesa Shell, a franco-belga Total e a tailandesa Petronas, que participaram dos dois blocos arrematados, em parcerias lideradas pela Petrobras. Ah, a arrecadação foi de apenas R$ 11 bilhões; já a maioria das concessões de Tarcísio de Freitas não saíram da fase dos projetos para o canteiro de obras].

Percebendo a chance de fulminar as ideias de intervencionismo do Estado, via aumento de gastos, contra o liberalismo e desregulamentação para abrir caminho à iniciativa privada, Paulo Guedes não se conteve e tentou humilhar Rogério Marinho, com quem já se desentendera na reta final da reforma da Previdência, e a Tarcísio de Freitas, discorrendo sobre o papel de Ludwig Erhard na reconstrução da Alemanha no pós-2ª guerra e antes ainda recitou a influência de Hjalmar Schacht, no reequilíbrio alemão após a derrota na 1ª guerra, com a instituição do Rentenmark, para estabilizar a moeda e a retomadas de obras públicas para reduzir o desemprego. Se não bastasse, Guedes disse “ter lido três vezes, em inglês”, as obras do genial economista britânico John Maynard Keynes, que serviram de inspiração ao “New Deal” de Franklin Roosevelt, que reergueu a economia dos EUA, após a Grande Depressão. “Cadê o dinheiro do governo para fazer isso? Não tem. Então quem está sonhando, é sonhador. A gente aceita. Politicamente a gente aceita. Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente. Mas o presidente tem que pensar melhor”, alertou.

Ou seja, tudo mais ou menos semelhante, mas com intuito eleitoreiro, à crítica liberal à opção do governo Lula pelo aumento de gastos na área social e a necessidade de contenção da expansão do gasto público. Detalhe: na reunião, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, até que tentou dar um choque de realidade nos colegas do ministério, dizendo, surpresa, que havia mais de “80 mil idosos em abrigos no país; que o contingente de quilombolas aumentara muito; e que as mulheres demandavam muito mais vagas para os filhos que as 60 mil já ocupadas nas creches”.

Mas Damares foi ignorada. Só a chamaram para tentar seu apoio ao projeto do então ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, de escancarar áreas do Brasil para a instalação de “resorts” com cassinos. Na argumentação delirante de Marcelo Álvaro, o Turismo tinha participação de 8% no PIB e poderia dar um salto. [Essas contas, que não fecham, explicam por que os orçamentos sempre ficam no vermelho; no agronegócio há quem veja uma participação de 24,5% no PIB, quando, pelo IBGE, a agropecuária só representa 8,8%; as atividades da indústria do petróleo e gás, citam outros, corresponderiam a 14% do PIB, quando a indústria extrativa (petróleo, gás e mineração) mal chega a 4%. Há um erro grosseiro de dupla contagem, sem abatimento das atividades de transformação no setor industrial (22% no total, que inclui a construção civil) e muito menos as atividades de transporte e distribuição de combustíveis. O espírito delirante é comum no Congresso, que aprova gastos sem receitas].

Campos Neto não demoniza gastos

Instado a falar por Guedes, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto (que seguirá no cargo), fez interessante digressão sobre o papel dos gastos públicos na economia, que nem sempre têm “efeito multiplicador”. Ele acrescentou que “provavelmente, o gasto não será “uma coisa nem outra”. Para ele, “falta analisar, nos gastos do governo, o quanto que desse gasto eu recupero lá na frente, via preservar o emprego, via manter uma empresa viva que ia morrer. Então, acho que falta uma análise completa do gasto. O gasto nunca é a fundo perdido. Também nunca é muito multiplicador. Ele é um meio do caminho entre uma coisa e outra. E o que eu acho que falta é a análise de “eu vou gastar tanto e esse gasto vai ter essa efetividade”. Puro bom senso.

Para culminar as contradições entre discursos e ações do governo Bolsonaro, a então ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a engenheira agrônoma Teresa Cristina, eleita senadora pelo PL-MS, avaliou que “com a crise do coronavírus, muitos países vão colocar regras para ter estoque novamente, que eu acho que não é nosso caso. Nós precisamos ter acesso a mercados e (…) incentivar o trigo, além do Sul do país, no Matopiba (Sul do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e Noroeste da Bahia). (…) É o único produto que o Brasil não é autossuficiente. [em setembro de 2020, sem o governo formar estoques reguladores ou incentivar estoques no setor privado, através dos Empréstimos do Governo Federal, o arroz tinha subido mais de 74% no ano e, com o óleo de soja subindo mais de 100%, o país “celeiro do mundo”, maior exportador de soja em grão e carne (bovina e de aves), teve de importar soja para extrair óleo]. São as ‘virtudes’ do liberalismo caboclo.

.GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)

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