Nos próximos meses, haverá duro trabalho de começar a consertar os estragos feitos. Mas o tiro de partida foi bem dado
A simbologia da posse de Lula superou tudo o que se conheceu pós-redemocratização. Houve a explicitação clara das propostas de governo, com ênfase permanente no social e na redução das desigualdades. Ao mesmo tempo, mencionou conceitos de responsabilidade fiscal.
A ênfase maior foi nos vergonhosos indicadores de concentração de renda no país. O que indica que a reforma fiscal será uma das prioridades maiores da política econômica, junto à racionalização dos subsídios, limpando a área dos exageros cometidos no governo Bolsonaro, sem parâmetro algum, e definindo novas prioridades, dentro da política de zero carbono.
Na política econômica, enfatizou a questão da industrialização e da reciclagem industrial brasileira, em cima dos novos parâmetros tecnológicos e ambientais.
Sobre a polarização política, fez dois discursos para públicos distintos: os terroristas e os não-terroristas.
Para Bolsonaro e sua tropa, garantiu o fim do sigilo de cem anos, a apuração dos crimes pela Justiça, e, após o devido processo legal, punição, sem anistia.
Em relação ao país, um apelo reiterado à tolerância. Defendeu a liberdade religiosa, para todas as religiões. Apresentou Ministérios para a defesa da mulher, dos índios, dos direitos sociais e do combate à miséria. E garantiu que governará para todos.
Mas o ponto alto – em termos de simbologia política – foi a transmissão da faixa presidencial na rampa do Palácio do Alvorada. A caminhada de Lula, com uma criança de periferia, um cacique indígena, uma catadora de recicláveis, uma pessoa com deficiência – e o conteúdo do seu discurso -, entre outros, representaram um momento histórico, um reencontro do país com a civilização.
E, aí, se observa a mão de Janja da Silva. Ontem, escrevi aqui sobre seu potencial político. Pelas informações divulgadas, coube a ela valer-se da ausência de Bolsonaro para montar uma celebração multi racial e multi social repleta de significados. Mostrou uma sensibilidade poucas vezes vista na moderna história política brasileira, remetendo ao PT pré-governo.
Ao mesmo tempo, observaram-se em alguns canais do sistema – como a Globonews – uma defesa do combate à miséria, uma crítica à concentração de renda inéditas na história da emissora. Os analistas comportaram-se com uma desenvoltura e senso de modernidade inéditos na história do canal.
Esse fenômeno que, como o cometa Kohoutek, acontece de vinte em vinte anos, em geral impulsionado por níveis de pobreza degradantes. Risca os céus e, depois, volta para a escuridão. O início do primeiro governo Lula foi legitimado pela ampliação da miséria, após os erros de política econômica de Fernando Henrique Cardoso. Hoje em dia, a miséria alcançou níveis exponenciais. Além dela, há o fenômeno do golpe pairando no ar. Esses fatos fizeram a Globo liberar seus comentaristas, para seguir uma onda irresistível, porém provisória, da opinião pública.
Ao mesmo tempo, o presidente em exercício, Hamilton Mourão, repôs os princípios de disciplina das Forças Armadas, e colocando-as como vítimas de um presidente poltrão, apresentou uma tentativa de dar uma saída honrosa para uma corporação que se desmoralizou.
Todos esses fatores vão na direção de fortalecimento das tentativas de Lula de montar sua base parlamentar. Mas não será fácil, especialmente depois da carne fresca do orçamento secreto, jogada por Bolsonaro e seus militares ao Centrão. Mas o tiro inicial de partida foi bem dado, inclusive com o revogaço, o conjunto de decretos revogando as piores maldades de Bolsonaro. Hoje de manhã completou-se com a portaria revogando todos os DAS 5 e 6.
O novo governo tem claro o sentido de urgência. E sua maior força é o espectro do bolsonarismo e do golpismo militar. Poderá ser a argamassa a consolidar o grande pacto pela democracia.
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LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)