A negociação é a arte da política. E não deve haver pressa para que o resultado pretendido seja alcançado. Escolado na arte no matreiro estado de Minas Gerais, o experiente Tancredo Neves dizia que “só se escreve carta depois de receber a resposta”. Muito acordo político anunciado na imprensa naufragou porque a carta foi postada antes de vir a resposta. Minas Gerais detém o recorde nacional de 853 municípios, entre os 5.570 do país, justamente pelas artimanhas da política regional, onde o velho PSD e a velha UDN dividiam o poder e, não raro, um novo município era criado para acomodar rivais locais; tudo às custas da “viúva”, pois quem pagava e continua pagando as contas é o Tesouro Nacional. Em tempo, São Paulo tem 645 municípios, o Rio Grande do Sul, 497, a Bahia, 417 e o Paraná, 399. Ninguém quer ceder ou cortar gastos (e poder). Como se a bolsa da “viúva” fosse um saco sem fundo (e não a soma dos nossos impostos), saca-se a descoberto e já estão acomodando novas modalidades de saque já pelo PIX…
Em tempo de pressões políticas para acomodação dos nomes do PT e dos velhos aliados no Ministério, Luís Inácio Lula da Silva está demonstrando compreender dos ditames da política ao fatiar a escolha de seus 37 ministros. Primeiro indicou os pilares de qualquer governo: o comando das armas (Defesa), as negociações internacionais (Relações Exteriores), o controle do Erário (Fazenda), a gestão do governo (Casa Civil) e a garantia da lei e da ordem no plano interno (Justiça e Segurança Pública). Desde o Império, esses são os postos chave, e a República seguiu o figurino. Quem se desviou disso se deu mal. Com negociações importantes pendentes no Congresso em fim de mandato, e com uma nova composição que emergiu nas urnas do 1º turno mais favorável ao presidente que não foi reeleito do que ao escolhido, Lula tem tido o cuidado para não causar melindres ou que impeça a pavimentação da estrada de 1º de fevereiro, quando tomam posse os novos eleitos da Câmara e Senado. A negociação de Lula para acomodar as peças do quebra-cabeça ministerial de 37 peças visa a não causar melindres ou mágoas irremovíveis.
Os que votaram em Lula mais em defesa da Democracia, como antídoto a Bolsonaro, gostariam de ver o Ministério mais pluralista do que o que foi anunciado até agora e que a eclética composição da Equipe de Transição sugeria. É preciso deixar claro mais uma vez. Não foi o PT que foi eleito. Lula é muito maior que o PT (desde o século passado). E a eleição de Lula tinha um guarda-chuva bem maior do que o próprio ex-presidente da República e atendia pela Defesa do Estado Democrático de Direito e das instituições democráticas, ameaçadas por Jair Messias Bolsonaro desde a campanha de 2018, e que veio num crescendo nos seus quatro anos de desgoverno e desmonte das estruturas do Estado ligadas à proteção dos direitos das minorias e dos menos protegidos, sejam seres humanos ou biomas.
Por isso, depois de conseguir encaminhar a aprovação da PEC da Transição, que livra o governo Bolsonaro de parte dos bilhões deixados de “restos a pagar” [de novo, a falta de recursos para a emissão de passaportes causou mais indignação do que a falta de verbas para a merenda e o transporte escolar, a farmácia popular e a distribuição de cisternas no Nordeste – que serviriam para armazenar a água da ainda incompleta transposição de parte da vazão do Rio São Francisco], Lula caminha com cuidado para acomodar no Ministério duas aliadas importantes no 2º turno: a ex-ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, eleita deputada federal pela Rede-SP, e a presidenciável senadora Simone Tebet (em fim de mandato). Simone Tebet queria a pasta do Desenvolvimento Social, mas o PT (que imagina ter ganho sozinho o 2º turno, quando o empenho da 3ª colocada por Lula foi decisivo para a vantagem de 2,1 milhões de votos sobre Bolsonaro), de olho em 2026, abocanhou mais uma pasta que libera verbas para o povão. Como nas festas de aniversário da infância, Lula tocou a “dança das cadeiras” para ver se Simone e Marina se acomodavam na única cadeira do Meio Ambiente, com a subdivisão da figura da “Autoridade Climática” (que fora sugerida por Marina Silva, quando acompanhou o presidente recém-eleito na COP-27, no Egito). Lula já devia ter convidado Marina Silva como ministra naquela viagem. Agora, diante da sinuca de bico, deixou que as duas fizessem a escolha: Simone Tebet foi elegante, explicando que o “munus” do meio ambiente era a seara natural de Marina.
Resta a Lula acomodar Simone Tebet em outra pasta com visibilidade e capacidade de realizações. O Ministério das Cidades parece atraente. Afinal, somos um país de 215,510 mil habitantes até meio dia desse sábado (24), marca o “relógio populacional” do IBGE. E pelo menos 85% desta imensa população vive nas cidades, onde são imensas as carências sociais e de infraestrutura. Tirando a destruição dos biomas (Amazônia, Pantanal, Cerrado, Caatinga, manguezais e Mata Atlântica), tudo de bom e de ruim no Brasil está mais concentrado nas cidades. É nas periferias dos centros urbanos e das pequenas cidades onde há mais fome e miséria, deficiência na educação e no atendimento à saúde, serviços decentes de água e esgoto (a maioria das cidades tem água, mas mais da metade carece de redes de coleta e tratamento de esgotos, além de coleta regular de lixo), transportes públicos de qualidade e segurança que não seja coercitiva e desrespeitosa aos mais elementares direitos do cidadão: a começar pelo respeito aos direitos humanos e a não discriminação de cor, gênero e opção religiosa. Mas tudo depende da gestão da coisa pública. Que passa pelo Planejamento, outra pasta oferecida a Simone Tebet, e pela Fazenda, mas com as limitações do Orçamento, ponto de partida para a cautela inicial de Lula na montagem do quebra-cabeça, enquanto não aprovava a PEC e uma base mínima de aliados na votação.
Lula já mira o novo Congresso
O mercado quer sinais imediatos, mas Lula tem um horizonte de quatro anos pela frente e não pode pensar somente com a composição atual do Congresso, e sim no que foi eleito e toma posse em 1º de fevereiro, um mês depois de voltar ao Palácio do Planalto. Bolsonaro capitulou ao centrão, que deu as cartas por meio do Orçamento Secreto. Coube ao Supremo Tribunal Federal pôr um freio na orgia, que chegara a R$ 19,4 bilhões. Mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que, como um dos líderes do centrão, sentou em cima de uma centena e meia de pedidos de “impeachment” de Jair Bolsonaro, e distribuía as cartas na manga do Orçamento Secreto, conseguiu manter parte do poder: metade das verbas (R$ 9,7 bilhões) seria repartida igualmente entre os 513 deputados, com pouco mais de R$ 16 milhões para emendas individuais, enquanto R$ 9,7 bilhões fariam parte do Orçamento Geral da União, ou seja, das políticas públicas em vez da farra de interesses privados nos municípios que são currais eleitorais, que o olhar da imprensa e da transparência não conseguem chegar. Ainda há muito o que mudar.
Dentro destas limitações e da postulação de Arthur Lira a novo mandato de dois anos, Lula manobra como algodão entre cristais. A votação da PEC mostrou que terá forte oposição do PL, de Valdemar Costa Neto e de Jair Bolsonaro. Mas mesmo na PEC da Transição, 10 dos 77 deputados votaram sim. A bancada subirá para 99 (contra 68 do PT). Em dobradinha com o Republicados – o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, que também votou maciçamente contra -, a dupla promete ser o núcleo duro, os maiores adversários de Lula na nova legislatura. Até o PP, que integra a oposição, deu votos favoráveis à PEC e pode repetir a dose. Tudo é motivo para negociação. Lula já reclamou que Arthur Lira faz negociações ao “estilo Uber”: cobra por corrida. Preferia negociar um cargo em troca de apoio duradouro. As eleições da Câmara e do Senado serão testes importantes da fidelidade aos acordos. Pensando mais além, Lula parece disposto a cooptar o União Brasil (fusão do PSL com o DEM), que dispõe de 59 votos na futura Câmara. Mas a pedra de toque é o Senado, casa em que os aliados de Bolsonaro conquistaram mais postos em outubro. Por isso, Lula está disposta a negociar para perder anéis e salvar os dedos. Perdeu um na labuta quando era um jovem metalúrgico; não deseja correr riscos na área política, aos 77 anos.
A mensagem de Natal diz tudo
Um jornal de Nova Friburgo ganhou notoriedade nacional quando publicou uma manchete absurda em alusão ao Natal, nos idos dos anos 70. O saudoso jornalista político Villas-Boas Corrêa, meu colega do velho JORNAL DO BRASIL, e que tinha sítio em Friburgo, onde recolheu o exemplar que dizia bizarramente: “E quando menos se espera, chegou o Natal”. Salvo os Adventistas do 7º Dia e outros grupos religiosos que negam a existência de Jesus Cristo, todos sabem que no dia 25 de dezembro se comemora o Natal.
O “Avião-Trenó” de Papai Noel, “puxado” por quatro parelhas de renas, já decolou de algum lugar na Lapônia, no Polo Norte, na manhã de ontem para uma longa jornada de quase dois dias para “distribuir presentes” para as crianças de mais de duas centenas de países mundo afora. Mas eu lembro da manchete porque, quando se esperava que Jair Messias Bolsonaro, que já adiantou que não passará a faixa presidencial a Luís Inácio Lula da Silva (comenta-se que iria viajar dia 28 para os Estados Unidos onde passaria a mudança de ano em Mar-a-Lago, o cafona “resort” de Donald Trump na Flórida), continuasse calado, para alegria dos ouvidos sensíveis à democracia, ao bom português e às boas maneiras, eis que ele rompe novamente o quase total mutismo desde a derrota em 30 de outubro (que ainda não reconheceu publicamente), e reativa a caneta BIC para aprovar um indulto de Natal a notórios policiais civis e militares condenados por envolvimento em chacinas, entre elas a matança, em outubro de 1992, de 111 presos na penitenciária de Carandiru, que o governo paulista pôs abaixo. Foi um “insulto” de Natal.
Na mesma canetada, Bolsonaro, que já indultara, em maio, o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado por desrespeitar o uso de tornozeleira eletrônica determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, usou o princípio do indulto presidencial para estender o perdão natalino a militares das forças armadas e da Guarda Nacional que se excederam no cumprimento de missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Em outras palavras, aos que fizeram desordens às garantias do Estado Democrático de Direito, a tal garantia da ordem. Não era a resposta ou a mensagem pedida pelos que estão acampados há mais de 50 dias, sob sol, chuva ou frio, às portas dos quarteis militares, esperando, em vão, que os militares saiam de suas bases para afrontar a Constituição. É o que Bolsonaro pode oferecer aos seus pares fiéis.
É imenso o contraste com a empatia demonstrada pelo futuro presidente em sua mensagem natalina. Luís Inácio da Silva fala direto ao coração daqueles que mais sofrem na data mais importante para a cristandade, ou seja, para a maioria dos brasileiros: os que não terão uma ceia digna do significado do Natal, por falta de recursos para uma refeição, que não conseguem nos dias comuns. Mas Lula deseja o espírito mais importante na celebração do nascimento de Jesus Cristo: a reconciliação das famílias brasileiras, que ficaram separadas (assim como amigos e colegas) pela disseminação da cultura do ódio e da violência nos quatro anos da gestão Bolsonaro.
Patuá contra puxa-sacos
Na entrevista à imprensa na sexta-feira (23), quando anunciou mais um grupo de ministros, Lula fez um pedido especial aos políticos e jornalistas presentes. Ele adiantou que abre mão à bajulação dos puxa-sacos e prefere o escrutínio severo das críticas da imprensa ao espírito baba-ovo dos blogs e comentaristas chapa-branca da era Bolsonaro, muitos deles regiamente pagos pelo Erário (ou seja, por eu e você, caro leitor, e os demais contribuintes). Não que nos tempos do PT e de Lula, a prática não fosse igualmente corrente.
Mas o “cercadinho”, que tal e qual as “colegas de auditório” de Sílvio Santos, não economizavam aplausos e gritos de apoio em troca de “aviõezinhos de dinheiro” (no caso do cercadinho, os gritos eram “mito, mito” e apupos à imprensa séria, que queria esclarecimentos para o grande público, o que já foi desmontado no Palácio da Alvorada, Lula dispensa. O presidente, que voltará a sentar na cadeira presidencial pela 3ª vez, sabe perfeitamente que os homens públicos devem ser probos e transparentes, mas sempre estarão sujeitos às observações críticas do bom jornalismo. O saudoso Millôr Fernandes dizia que “jornalismo é crítica; o resto é na seção de secos e molhados”.
Tenho uma sugestão a Lula, que deveria ser praxe de todos os ocupantes de palácios de governo no Brasil. Em vez de pavões, faisões, ou a ema, a maior ave brasileira, para que os governantes não se deixem inebriar pelas delícias do poder, convém sempre despertar com a humildade pregada por Jesus. E, para lembrar que é falível, deveria ter um bando de galinhas d’angola circulando pelos gramados: além de catarem insetos (nas fazendas elas catam carrapatos de bois e cavalos), forçam o exercício matinal da autocrítica ao bradarem: “tou fraco, tou fraco”. Vale muito mais que receitar cloroquina a emas.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)