Na Folha de hoje, duas figuras históricas decretam o fim do jornal.
O modelo Folha era uma mistura talentosa de estilos, conquistando vários públicos. Hoje, duas figuras históricas decretam o fim do jornal
Uma delas, Matinas Suzuki, personagem central do chamado Projeto Folha, implantado por Otávio Frias Filho quando assumiu a direção do jornal. O outro, o advogado Luiz Francisco de Carvalho Filho, há décadas advogado criminal do jornal, e um dos melhores amigos de Otavinho. Dias atrás, foi a vez de Marcelo Coelho. Nos três casos, trataram a demissão de Jânio de Freitas como o ponto final de um projeto – que, na verdade, morreu em meados dos anos 2.000, quando OFF (como era tratado), sem os conselhos do pai, sucumbiu à conversa do mais nefasto personagem da mídia brasileira contemporânea, Roberto Civita.
O modelo Folha – que revolucionou o jornalismo a partir dos anos 80 – era uma mistura talentosa de vários estilos, visando conquistar vários públicos.
A face marcante foi da jovem intelectualidade paulistana, que, através da Ilustrada, passou a arejar o jornal e atrair o público jovem – tomando o lugar do Jornal da Tarde, jogado ao mar pela miopia dos Mesquita.
Matinas, Caio Túlio, Marco Antônio Gonçalves, Marcelo Coelho e outros, da turma de OFF, deram essa arejada.
Um segundo grupo foi o dos colunistas, com boa diversidade de opiniões. Havia o Jânio de Freitas, Clóvis Rossi, Gilberto Dimenstein e eu mesmo.
Na parte editorial imperava uma porralouquice que era perdoada pelos leitores por não ter viés político: atingia a tudo e a todos.
E, principalmente, havia a sabedoria de Otávio Frias, pai, que trouxe alguns procedimentos inéditos para a mídia brasileira, como a figura do Ombudsman, como voz crítica do jornal, e a publicação de notícias e cartas ao leitor críticas ao jornal.
Desde a minha volta ao jornal, no início dos anos 90, fui crítico dos mlinchamentos e das ondas montadas pela mídia. E houve amplo espaço para exercer a crítica.
De certo modo, ajudei no processo de auto-afirmação do jornal. No meu período de Secretário de Redação, os dois veículos de maior expressão na mídia eram a Veja e o Jornal Nacional.
No primeiro fechamento de que participei, no plantão de sábado, Veja tinha publicado uma entrevista de Página Amarela com Golbery, assinada por Elio Gaspari. Estava em pleno andamento a reação democrática, em torno de Tancredo Neves. E Golbery ensaiava uma reação apoiando Paulo Maluf, depois que Mário Andreazza se mostrou inviável.
Sem consultar os Frias, editei duas páginas de jornal desancando a reportagem, mostrando o jogo político por trás da entrevista e o histórico de Gaspari nas estratégias midiáticas pró-Golbery. E pedi para o chargista de plantão uma charge mostrando uma pessoa pequena com uma sombra enorme, projetada pelo holofote Vej: o próprio Golbery.
Admito ter sido uma imprudência ampla, a não consulta aos Frias. Na segunda-feira, me chamaram para uma reunião, pai e filho. Lá, acertadamente, me disseram o óbvio: para matérias daquele quilate, teria que consultar a direção.
Só me restava concordar e pedir desculpas pela impetuosidade. Mas, também, deixei um recado, alimentado pela enxurrada de telegramas de apoio que chegou no jornal:
– Errei mesmo, seu Frias. Mas só queria alertá-lo que a Folha já se tornou um ator de primeira no mercado de opinião.
De fato, com o Projeto Folha deslanchando e com o apoio às Diretas, a Folha se tornava o mais importante diário do país.
Certa vez, Frias me disse com orgulho o elogio que havia recebido de Roberto Marinho.
Em determinado período, OFF convidou Josias de Souza para Secretário de Redação, Um dia, recebo telefonema de Frias, pai.
– Nassif, o Josias me reclamou que você não está seguindo a linha editorial do jornal. Falei para ele te ligar toda segunda-feira, para você passar orientações para ele.
Daqueles tempos, restou apenas a figura do Ombudsman, que manteve o alto nível desde o início, com algumas exceções.
Frias tinha uma personalidade rica. Era extremamente frio nos negócios. Negociou meu pescoço com Saulo Ramos em troca do cancelamento de uma enorme dívida com a Previdência. Depois, me chamou de volta assim que mudou o governo.
Mas era solidário com os caídos. No Conselho da Folha havia grandes nomes do passado. Na página 2, as colunas de Cláudio Abramo e Samuel Wainer.
Certa vez me falou da emoção que lhe trazia Clóvis Rossi que, depois de ter sido diretor de redação do Estadão, foi demitido e não autorizado sequer a pegar suas coisas – por razões políticas. Talvez por isso aceitasse a insistência de Rossi em chamá-lo de “o sábio do 9o andar”, para desespero de Jânio de Freitas, que detestava toda sorte de lisonja.
Mas também sabia ser cruel em algumas circunstâncias. Em determinado período, a Folha passou a dar corda para Miguel de Almeida, que, muito jovem, conseguiu uma coluna na Ilustrada, na qual desancava todo mundo. Dava leitura, mas era óbvio que acabaria por queimá-lo. Em uma das reuniões, alertei Frias sobre o risco de queimar Miguel, Deu de ombros:
– Ele é maior de idade e sabe o que faz.
Não durou muito.
Nas conversas pessoais, havia enorme preocupação de Frias em equilibrar a disputa entre OFF e o irmão Luiz.
A admiração de OFF pelo pai era nítida. Em uma homenagem feita a ele pela FMU, OFF fez um relato emocionado, de um pai focado nos negócios, sem um pingo de apego a bens de consumo. Até quase o final da vida, aliás, guiava o próprio carro.
Já com Luiz, a convivência era mais seca. Era um filho que gradativamente começou a ocupar todos os espaços no jornal.
Certa vez fui dar uma palestra em Vitória, Espírito Santo. Fui procurado pelo dono de um grupo forte do estado com a proposta da Folha montar uma parceria no estado. Ela cederia o nome e todas as editorias, com exceção da política.
Na volta levei a proposta a Frias que pediu que não mostrasse a Luiz, mas a OFF. De um lado, para equilibrar a disputa entre os irmãos. De outro, porque Luiz já estava assumindo as rédeas da empresa.
A primeira vez que fui demitido da Folha – no episódio Saulo Ramos – fui me despedir dele. Na conversa, ele me disse que OFF havia considerado minha atitude “muito digna”. Simplesmente não pedi nada, a não ser manter o emprego de uma repórter minha, que estava grávida.
Na minha volta, Frias ainda manteve o pique durante algum tempo. Quando Luiz assumiu, foi perdendo gradativamente espaço para o filho. Frias tinha um modo à antiga de administrar o jornal. Na produção tinha um executivo de porte. Mas na gestão financeira, um contador. Rapidamente, formado pela FGV, Luiz substituiu os pioneiros por outros executivos.
Uma das últimas tentativas de Frias, de permanecer no jogo, foi, junto com Roberto Civita, fazer uma proposta de sociedade na TV Bandeirantes. Eu tinha bom relacionamento com João Saad que, na época, havia me convidado para ser titular do Jornal da Band e conselheiro pessoal de Johnny.
Frias marcou um almoço no jornal, ele, seu João Saad e eu. E, ali, a conversa foi recheada de lembranças. O império de João Saad surgiu do esquema de comunicação montado pelo sogro Ademar de Barros para sua campanha presidencial. O reinício de Frias – depois da quebra do grupo de Roxo Loureiro – foi com a Rodoviária, bem no centro de São Paulo, cujo sócio oculto era o próprio Ademar, para cujo governo Frias trabalhara, como responsável pela dívida pública na Secretaria da Fazenda, conforme lembrava João Saad.
Consegui um grande feito mediando o encontro: a implicância eterna dos herdeiros de ambos.
Aliás, foi devido à sua extrema competência na Secretaria da Fazenda que Roxo Loureiro o convidou para executivo de sua imobiliária e, depois, do banco.
Os sinais dos novos tempos da Folha ficaram nítidos no final da década de 90. Antes da grande crise de 1999, os jornais nadavam em dinheiro. Frias investiu no papel, uma super-gráfica moderna; Luiz investiu no digital, com a UOL. Depois, com dois dribles em Roberto Civita – propondo a fusão BOL-UOL e, depois, aliando-se aos portugueses da Portugal Telecom para assumir sozinho o controle -, transformou a UOL na experiência mais bem sucedida da Internet brasileira.
Além de fornecer o capital inicial para a UOL, a Folha passou a ser apenas um instrumento político, conseguindo pressionar a Anatel para manter regras que beneficiavam os provedores de conteúdo, no período em que o acesso era por telefone comum. Sua principal fonte de faturamento era o pagamento pelas teles, pelos impulsos gerados.
A segunda vez que saí da Folha, fui me despedir de Frias de novo. Ali já estava nítido a influência dos novos poderosos, no caso,o Pactual, que ainda não era BTG.
Os filhos ficaram um tanto preocupados, julgando que apresentasse alguma reclamação ao pai. O encontro foi acompanhado pela filha Cristina. Simplesmente me despedi e ele respondeu com um “gosto muito de você, Nassif”. Mas percebia-se que já não estava no controle de suas forças e emoções.
Marcelo, Matinas e Luiz Francisco situam na demissão de Jânio o fim do Projeto Folha. Mas foi muito antes. Foi quando Frias saiu de cena e, sem referenciais maiores, OFF se aninhou no discurso de ódio e anti-jornalismo de Roberto Frias.
A Folha tornou-se uma sucursal da Veja. Minha última conversa com OFF foi nesse sentido: um jornal, líder do mercado de opinião, não pode ficar a reboque de um lixo como a Veja.
Foi em vão. Dia a dia, a Folha passou a repercutir fake news da Veja e gerar seus próprios fake news. Nos tempos áureos, o jornal tinha 35% de leitores petistas, 45% de tucanos liberais. Rapidamente, Mr. Hide começou a se impor ao Dr. Jekyll.
Criou-se um mercado com o público de ultra-direita, do qual a Veja se prevaleceu. Era o momento da Folha crescer fazendo o contraponto, como nos anos 80.
Mas OFF estava perdido. Não participava das decisões do dia-a-dia, e estava extremamente frustrado por não deslanchar na carreira de escritor e teatrólogo.
Quando fui finalista do Prêmio Jabuti, declarou a amigos:
– O Nassif classificou-se no Jabuti por escrever para a Folha. E eu não sou reconhecido por ser o dono da Folha.
Devo admitir que OFF tinha razão. Era talentoso, um dos melhores textos que conheci. E, quando conseguiu superar uma timidez atávica, mergulhou em experiências de vida, para alimentar o escritor que havia nele. Mas nunca resolveu o dilema entre ser escritor e diretor de jornal.
Quando Frias morreu, Luiz tentou encontrar outro cargo para o irmão, mas ele não aceitou.
Na parte editorial, pela inércia foi se deixando levar pelos tempos de jornalismo de ódio, de ultra-direita, de lixo, de lobby escancarado de grupos financeiros. Tornou-se cada vez mais sensível às críticas e à lisonja. Pouco antes da morte de Frias, fui alertado que teria vida curta no jornal com OFF.
Muitos colunistas dos anos 90 cederam de forma vergonhosa.O ferino Ricardo Kotscho lembra-se de um clássico: na morte de Frias, uma coluna de página 2 enaltecendo-o; e, no dia seguinte, tratando rapidamente de enaltecer OFF para não criar ciúmes.
De minha parte, aprofundei as críticas até a demissão. Mais prudente, Jânio recolheu-se mas sem, em nenhum momento, perder a dignidade. Em determinado momento contrataram Reinaldo Azevedo – antes de seu aggiornamento democrático – pretendendo criar uma polêmica que desmoralizasse Jânio. Este, que conhecia todas as malícias da mídia, percebeu que havia algo a mais atrás de Reinaldo e não entrou na disputa. Respondeu com uma frase indicando que sabia da armadilha.
Depois, o número de colunas semanais foi diminuindo até a demissão.
Agora, o fim da coluna de Jânio serve para o velório de um projeto que morreu quase 20 anos atrás. Enquanto ainda vivia, havia a esperança de que OFF saísse da letargia e recuperasse o dinamismo dos anos 80, de um projeto do qual ele foi participante relevante.
Morto OFF, nenhuma esperança mais restava. O Projeto Folha se tornou apenas um retrato na parede, que sobrevivia na lembrança dos leitores através da coluna de resistência do grande Jânio.
LUIS NASSIF ” JORNAL GGN” ( BRASIL)