Os Divergentes publica hoje a segunda parte de resenha de Patrus Ananias sobre a principal obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas. A resenha está sendo publicada todos os domingos na forma de folhetins, nos moldes machadianos.
Guimarães Rosa apresenta, assim, o sertão sob os mais diferentes enfoques e sentidos. Primeiro, como vimos, o território não demarcado, mas real, existente, herdeiro direto das capitanias hereditárias, das sesmarias, do latifúndio, do coronelismo. É o lugar de onde veio, nas palavras insuspeitas de Francisco Adolfo Varnhagen no primeiro volume da História Geral do Brasil, “a mania de muita terra (que) acompanhou sempre pelo tempo adiante os sesmeiros, e acompanha ainda os nossos fazendeiros, que se regalam em ter matos e campos em tal extensão que levam dias a percorrer-se, bem que às vezes só a décima parte esteja aproveitada, mas se tivesse havido alguma resistência em dar o mais, não faltaria quem se apresentando a buscar o menos”.
A partir dessas vastas extensões improdutivas, o autor, sempre pelo discurso instigante de Riobaldo, vincula o sertão à dimensão existencial das pessoas e das comunidades e transborda o sertão para o Brasil, o mundo, os campos mais alargados da metafísica e do mistério.
Ao fazer a apresentação desse espaço geográfico indiviso, sem a presença da autoridade democrática e coesionadora do Estado, o autor apresenta uma realidade sócio-política-espacial que durante anos ficou obscurecida em sua obra. Foi quase sempre considerado um escritor apolítico e indiferente aos grandes temas e desafios da sociedade brasileira. Leituras mais atentas desfazem essa imagem, como a da professora Heloisa Starling, no seu notável Lembranças do Brasil – Teoria Política, História e Ficção em Guimarães Rosa. Nesse livro, a professora projeta luzes preciosas e ajuda a tornar visível essa recôndita mas preciosa faceta da obra rosiana, que vem a ser sua refinada compreensão da história, da política e da precária e injusta organização social do Brasil. O sertão é também a terra onde prevalece a concepção hobbesiana do estado de natureza, situação constante de insegurança e de guerra, anterior ao pacto social que funda o Estado. É ainda, como nos mostra Heloísa Starling, o lugar do conflito que não encontrou espaços institucionais para ser processado dentro dos parâmetros normatizadores da lei, do diálogo e da negociação. A ausência da lei, palavra que tanto fascinava Zé Bebelo, torna o sertão espaço da violência: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é o mais forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”.
Zé Bebelo, querendo impor a lei ao seu modo e promover o progresso, buscando, intuitivo e apressado, os contornos, ainda que primários, de um projeto nacional, vincula o sertão às dimensões do Brasil, ao confrontar os “que desonram o nome da Pátria e este sertão nacional”. O sertão se mostra como espaço da Política e metáfora do Brasil.
No discurso que faz em sua defesa quando do seu julgamento – um dos momentos mais sublimes do livro – após ser vencido por Joca Ramiro e seus comandados, Zé Bebelo explicita com mais nitidez sua visão política a partir do sertão e da sua dialética sertaneja. O que ele quer é apoderar-se (superar a barbárie, normatizar, levar a presença civilizadora do Estado imbuído de suas responsabilidades sociais, das instituições, serviços e equipamentos públicos) e sair do sertão depois de cumprida a missão integradora, a presença da lei: “coisa que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para deputado… Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional (…) A gente tem de sair do sertão. Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro…”. Zé Bebelo quer melhorar o Brasil, tem anseios e sentimentos intuitivos de justiça e desenvolvimento: “o que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão”. Mas quer uma modernização conservadora, dentro dos marcos do velho coronelismo, com os votos encabrestados dos cabras comandados por chefes como Joca Ramiro.
A crítica social, o olhar atento sobre as multidões de excluídos e vitimizados, sempre espreita na fala no narrador: “Porque, num estado de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava (…) O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto das misérias e enfermidades”.
Mas as referências políticas e sociais da obra, por mais notáveis que sejam, não se reduzem a si mesmas e o livro tornou-se clássico, definitivo, universal. Sendo profundamente brasileiro, adota uma linguagem que força a cada momento os limites do cânon e transcende, no conteúdo, o tempo e o espaço na prospecção de temas e sentimentos permanentes, quase sempre não resolvidos. E aí, nessa conexão entre o particular, o situado e o universal que a palavra sertão emerge com grande força no quadro de uma obra que tem ainda a reforçá-la a singular cultura de seu autor.
Guimarães Rosa sabia muito.
PATRUS ANANIAS DE SOUZA ” BLOG OS DIVERGENTES” ( BRASIL)