A derrota da Seleção para Camarões foi uma onda caixote a perturbar a vertigem de um “jacaré” bem pegado numa “boa”. Não foi um desenlace auspicioso para uma semana a nos assustar com outros lances, bem mais pesados, revelados pelo Tribunal de Contas da União e pelas equipes de transição neste fim de ano e de mandato.
Talvez seja, taticamente, o preço a pagar pela preocupação de Tite com a seleção titular que na segunda-feira certamente voltará a dar esperanças de finalmente conseguirmos o Hexa. No plano das revelações do TCU e das equipes de transição, o cenário é infinitamente mais grotesco pela incompetência do governo e sua incompreensível desorganização até mesmo no “tira e bota” dos orçamentos das Universidades Federais, rigorosamente tratadas a pão e água.
Há quem critique o número elevado de voluntários a participar dos grupos de diagnóstico da equipe de transição e quem veja neste número uma ambição de muitos em pleitear um cargo no governo eleito. Não vejo desta forma. Ao contrário, me entusiasma a grande quantidade de jovens e menos jovens que desejam participar da tarefa mais do que imperiosa de o Brasil, nos próximos quatro anos, vencer a fome, a subnutrição de crianças, a pauperização de milhões de famílias e romper finalmente os indecentes desníveis sociais que estamos a catalogar e com eles a nos horrorizar.
Pouco a pouco, a sociedade brasileira vai multiplicando entrelaces em favor de uma consciência social que há muito não nos visitava. E se aprofunda a convicção de que o povo brasileiro em espaço muito breve de tempo há de superar a cultura de ódio que infelizmente estrumou este país nos últimos anos.
Queiramos ou não, estamos voltando a sorrir. E, em meio a tanta miséria, ressurgem nosso espírito de solidariedade e a certeza de que apenas o trabalho cotidiano de reconstrução nos fará mais unidos. A desunião de hoje é muito mais artificial do que a fatal consequência -caso aceitássemos a apregoada ideologia política e econômica de supostos novos tempos – de romper a harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário ao preço da falência da Democracia , como infelizmente se tentou reiteradamente para angústia da nação.
Não estamos sós nesta trajetória. Se olharmos os contínuos baques a ameaçar os regimes autoritários, como o de Orban na Hungria – onde a União Européia deverá cortar subsídios e apoios financeiros comunitários – a condenação pela justiça americana de líderes do lastimável movimento de invasão do Capitólio nos Estados Unidos, a mais do que evidente perda de apoio de Trump junto ao próprio Partido Republicano, não há como não ver que a Democracia permanece como a única opção efetivamente agregadora para vencer os desafios deste já mais do que inóspito século 21.
Mas, o exemplo mais evidente de que o Presidente eleito já provoca um nítido sentimento de renovação não só no Brasil, mas também no mundo, se constata com o envio ao Brasil de altos representantes do Governo americano e do próprio Secretário de Segurança Nacional da Casa Branca para transmitir pessoalmente a Lula o convite de Biden para que o visite nos Estados Unidos, ainda antes de sua posse em janeiro.
O convite em si é inusitado, pois geralmente se faz após a posse e não antes dela. Aqui, é sempre bom recordar que as Diplomacias competentes do mundo não improvisam sem prévia e cuidadosa análise das consequências de um ato como este.
Aos interessados em analisar e em prognosticar as razões do gesto americano, aconselho a leitura de três documentos essenciais, todos públicos. Os dois primeiros surgem dos Estados Unidos da América. O primeiro deles, é o relatório de Trump sobre sua politica de Segurança Nacional. O segundo, o documento de mesma importância e título emitido pelo Presidente Biden que meus leitores se recordarão que a ele fiz referência em um de meus prévios artigos nestas páginas. O terceiro, o Discurso de Lula na reunião sobre clima, recentemente terminada no Cairo.
O documento assinado por Trump anunciou a reviravolta na politica externa americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial e resultou, como sabemos, numa política de nacionalismo exacerbado do hegemônico com consequências até para o Brasil ( sobretaxa nas exportações de aço ) , apesar de nossa infortunada admiração por Trump e suas promessas vazias.
O documento firmado por Biden, a par de assinalar os riscos por que passa a Democracia americana após a megalomania de Trump, repõe a política americana em seus eixos tradicionais, reafirma o compromisso com a carta da Nações Unidas, com o multilateralismo em geral. No Plano econômico, critica a globalização assimétrica e os movimentos financeiros internacionais desregulados e propõe em termos claros uma nova ordem econômica internacional.
O discurso de Lula no Egito foi muito além de um simples enunciado de nossa política de meio-ambiente a ser implantada a partir de janeiro. Na realidade, o discurso adquire feição e abrangência iguais ou quase iguais a de um Presidente da República brasileiro em seu primeiro ano de mandato.
Nele, Lula, em linguagem clara, expõe a interligação entre as legítimas preocupações com o controle climático, o meio ambiente e o desmatamento da Amazônia e a necessidade de se reverem mecanismos internacionais já envelhecidos, especialmente os responsáveis por politicas que ,direta ou indiretamente, contribuíram para a permanência de desigualdades sociais no Brasil. É um discurso que não se resume com facilidade, pois há nele a linguagem sóbria de um Estadista ,temperada por diplomacia de uma sanidade não muito usual nos dias que correm. Leia-o; é inspirador.
E aqui chego ao gesto americano. Como disse anteriormente, as boas e competentes Chancelarias do mundo não improvisam (“o Itamaraty não improvisa” é frase que todo diplomata brasileiro já ouviu em sinal de respeito e admiração de parte de colegas estrangeiros). O discurso de Lula foi certamente objeto de leitura cuidadosa em Washington, desta leitura deve ter havido algumas reuniões internas e delas ter sido submetido ao Presidente Biden um “position paper”, que ele prontamente aprovou. O resto da história você sabe.
O Brasil foi publicamente apontado como um parceiro imprescindível na reconfiguração da geopolítica mundial. E desta vez, sem rodeios, paparicos ou “tapinha nas costas”, mas pela natural emergência de novos parâmetros na equação do Poder internacional, dentre os quais mais de um beneficia o Brasil sem qualquer contestação.
Houve o reconhecimento de que uma nova voz criativa e construtiva se impôs de fato e de direito como parceiro, com interesses nacionais próprios bem delineados, a par de consciência de seu papel internacional.
O Itamaraty estará a partir de primeiro de janeiro no patamar de excelência que sempre o caracterizou. E a diplomacia presidencial será seu carro-chefe.
ADHEMAR BARHADIAN ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)