O grande pensador e jornalista italiano Antônio Gramsci, entre muitas de suas colocações filosóficas e frases lapidares, criou uma que se aplica perfeitamente ao momento de transição brasileiro, no qual o governo Bolsonaro, derrotado nas urnas pelo ex-presidente Lula, resiste a abdicar do poder da caneta nos menos de 50 dias que lhe restam, insufla os apoiadores a pedir “intervenção federal” que prolongasse “ad infinitum” o seu desgoverno, qual os portugueses que ficaram décadas esperando a volta do jovem rei D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer Kibir, no Marrocos – e vem fazendo nomeações em profusão, que podem comprometer, sobretudo nas agências reguladoras e postos diplomáticos, a atuação do futuro governo. E o futuro governo, ainda às voltas para levantar, na equipe de transição, a real situação da máquina pública deixada por Jair Bolsonaro, que raspou os cofres para turbinar sua reeleição, e deixou muitos setores à míngua, ainda não pode começar a agir, sem saber quanto espaço fiscal terá para operar a partir de 1º de janeiro de 2023. É incrível que a falta de R$ 37,3 milhões para a Polícia Federal produzir passaportes tenha gerado mais repercussão que o fim de recursos para a merenda escolar e de remédios na Farmácia Popular…
A dicotomia deste contraste explica bem por que o Brasil mais pobre e desassistido nos quatro anos do governo de Jair Messias Bolsonaro, cuja preferência pela liberação de armas produziu mais uma tragédia neste fim de ano (no Espírito Santo, um adolescente de 16 anos, filho de um tenente da PM, usando roupas camufladas e armas pesadas, invadiu dois colégios em Aracruz e matou três pessoas, sendo duas professoras, ferindo outras 13 pessoas, entre estudantes e funcionários), resolveu votar em Lula. O episódio resume o desastre do Brasil nos quatro anos de Bolsonaro: a cultura do ódio, a apologia das armas e da morte e o desprezo pela educação, a cultura e a arte (que era o “metier” de uma das primeiras professoras assassinadas) resistem e não dão espaço ao novo.
A frase famosa de Gramsci para resumir a crise (no sentido em que os chineses classificam como ponto de partida para oportunidades – os anagramas são quase idênticos) diz: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. Por enquanto só estamos colhendo os sintomas mórbidos, sem poder saborear e desfrutar das promessas de esperança que elegeram Lula.
As promessas de campanha de Lula foram claras nas prioridades para com o povo mais esquecido, na volta do Bolsa Família, na recuperação da Educação, da Saúde, e da proteção social. Lembro de uma resposta do ex-presidente ao candidato do Novo, Felipe D’Ávila, no debate da Globo no 1º turno. O milionário paulista, defensor do liberalismo, se disse contrário às cotas raciais nas universidades e favorável a um sistema de cotas por nível de renda ou pobreza. Um Lula incomodado com a falta de sensibilidade social do fundador do Centro de Liderança Pública fulminou-o na resposta: “Você não entende o que são 350 anos de injustiça social com a escravidão do povo negro”. Embora não seja um expoente do mercado financeiro, mas um representante do pensamento dos agentes que atuam neste mercado, a falta de sensibilidade com o passado e as mazelas sociais fica explícita na pressão do pessoal do mercado para que Lula antecipasse – já na campanha – as diretrizes na área econômica, em especial com a antecipação do nome do futuro ministro que vai comandar a área econômica (com a volta das pastas da Fazenda, do Planejamento e Gestão e da Indústria. Comércio e Comércio Exterior, hoje enfeixados no Ministério da Economia, de Paulo Guedes). Depois de eleito, a pressão só faz aumentar.
O mercado financeiro não deve ser muito afeito às leituras de Gramsci, um pensador marxista, mas por operar no horizonte futuro, na administração de expectativas na formação das carteiras de títulos de renda fixa, moedas, commodities e ações, entre outros ativos, os empresários e os operadores do mercado financeiro ficam mais ansiosos com o interregno em que estamos vivendo. Paulo Guedes já percebeu que seu tempo acabou e que não vale a pena nem há legitimidade para ações radicais. Se Bolsonaro tivesse sido reeleito, após queimar todos os cartuchos no estouro de gastos e abuso da máquina burocrática do Estado para tentar reeleger o chefe, já no dia 1º de novembro, o ministro da Economia estaria negociando com o atual Congresso para ganhar espaço fiscal para acomodar os gastos previstos com o pagamento de R$ 600 no Auxílio Brasil (o orçamento de 2023 enviado ao Congresso só previa R$ 405), além do salário mínimo de R$ 1.400. Como deu Lula, só cabe ao ex-presidente nomear um batalhão para levantar, na equipe de transição, a realidade deixada pelo governo em fim de mandato para ver a possibilidade política e econômico-financeira de desenhar os projetos de edificação do novo governo que toma posse em janeiro.
A escolha do mercado financeiro pela continuidade de Bolsonaro tinha muito a ver com a não reversão de expectativas. As apostas feitas nas diversas carteiras teriam pequenas correções de rumo, mas as negociações com a equipe de Paulo Guedes já tinham canais pré-estabelecidos e em operação. Lula ficou com o ônus de alimentar expectativas. Mas ainda que nomeasse todo o ministério esta semana, não teria mais facilidade para avançar na negociação que importa: qual o cacife que terá para operar em 2023? Lula queria que a PEC da transição contemplasse liberdade para pagar o Bolsa Família (que volta no lugar do AB), com a inclusão de mais R$ 150 por filho menor de seis anos que cursasse a escola e estivesse com carteira de vacinação em dia (mudanças importantes em relação ao descaso de Bolsonaro com a educação e a saúde dos mais pobres). Setores do Congresso (onde Bolsonaro já tinha forte base, ampliada no 1º turno deste ano) não querem dar cheque em branco para liberar os gastos do BF fora do OGU por todo o mandato. O mais provável (e sensato) é que se estenda até 2024, com negociações anuais, quando da apresentação da PLOA de cada ano.
Uma experiência na Moscou comunista
Nos tempos da Rússia de Vladimir Putin, o mercado financeiro local pode estar sendo bombardeado pelos impactos da cada dia mais problemática “operação especial” de invasão da Ucrânia. Mesmo com o funcionamento anormal e peculiar dos mercados na Rússia de Putin, uma plutocracia com barões capitalistas em postos chaves antes ocupados pela burocracia soviética, os russos viraram a página para os tempos do comunismo (que só sobrevive como ameaça nas mentes dos bolsonaristas de plantão diante de quartéis ou no parabrisa de uma baita caminhão que ousou desperspeitar o bloqueio das estradas). Quem conhece a Moscou moderna diz que nada deve às mais modernas e exuberantes mecas do capitalismo europeu (Paris, Berlim, Frankfurt, Madri ou até mesmo a combalida Londres, ainda não refeita do salto no escuro do Brexit).
Mas eu vivi, em 1988, quando era assessor da diretoria da Andima (Associação Nacional das Instituições do Mercado Aberto), a nata do mercado financeiro, que reunia bancos, corretoras e distribuidoras que atuavam no mercado aberto de títulos públicos, o conhecido “open market” com vertiginosas operações diárias no “over night” com juros na casa dos 90% ao mês, uma experiência inusitada na Moscou comunista, em plena Glasnost e Perestroika de Mikhail Gorbachev, que seria um paroxismo dos tempos atuais.
Na reta final da votação da Constituinte, reunimos um grupo seleto de jornalistas brasileiros, formadores de opinião que atuavam no Rio, Brasília, e São Paulo (um naipe que ia de Ricardo Noblat, a Miriam Leitão, passando por George Vidor, Leão Serva, Kristina Michaelles, José Roberto Nassar, com a participação de Noênio Spinola, que atuou muitos anos como correspondente em Moscou) para que entendessem as transformações que marcariam a criação da União Europeia e o euro na vida econômica mundial (a China ainda não tinha entrado no radar). A viagem estava programada para maio e resolvemos estender o contraste a Moscou. Com medo do inverno, a viagem de uma semana a Moscou (após escala em Londres), que daria início ao périplo, foi retardada para agosto.
Ficou tarde demais. Depois de muitas reuniões com economistas e funcionários do governo russo, chegamos a um fim de semana em Paris. Seria indelicadeza citar o nome, mas um jornalista, com convicções de esquerda, manifestadas em desagrado aos economistas da perestroika em Moscou, não se conteve ao darmos um giro num “shopping” parisiense: “realmente, é muita diferença”. No corre-corre, não deu tempo para que as reportagens feitas pela troupe fossem publicadas a tempo de mudar as cabeças do Congresso. Mas alguns dos colegas da viagem não se cansaram, depois da Constituição aprovada em 5 de outubro de 1988, de citar os contrastes entre a visão de reparo do passado e a falta de planejamento para o futuro. Isso explica por que a Constituição, tão detalhista ao reparar injustiças do passado, não tenha pavimentado o futuro.
Mas, desculpem a digressão que ajuda a situar a perplexidade de muitos com a transição atual. Prometi no intertítulo falar da “experiência na Moscou comunista”. Então vamos a ela. Alguns dos diretores da Andima (a entidade se fundiu com a Anbid, criando a Anbima), que eram sócios de corretoras e diretores de Tesouraria de alguns dos mais ativos bancos brasileiros da época, viajaram para a capital da URSS uma semana antes do grupo de jornalistas, que eu liderava. Tinham reuniões com entidades que queriam saber da experiência brasileira no mercado de títulos para regular a oferta monetária. Por delicadeza com os visitantes para que não sentissem os efeitos do fuso horário, os moscovitas evitavam marcar reuniões no dia da chegada. Isso deixou os pilhados operadores do mercado financeiro brasileiro (que de lá falavam com as respectivas mesas de operação) em situação semelhante à de um viciado em cigarro que entra para uma semana ou mais dias de desintoxicação num spa). Imediatamente, o então presidente da Andima, Marcos Jacobsen, me liga pedindo para falar com o Noênio se não havia nada errado, pois “não está acontecendo nada”. Entrei em contato com o Noênio, meu primeiro chefe no JB, que estava em São Paulo, e ele disse que “era o protocolo russo”. De fato, já no segundo dia, as coisas começaram a acontecer. Não no ritmo frenético do mercado brasileiro. Quando chegamos lá na semana seguinte, o falecido Murilo Braga, vice-presidente e depois presidente da Andima, um engenheiro que fazia, de cabeça, cálculos de ORTNs com quatro casas decimais e por isso era chamado de “ábaco” (a HP dos russos) entre os pares do mercado brasileiro, já estava exímio nas negociações de dólar por rublos na rua Arbat. O turista pego com dólares estava frito (e levava uma bolada para custear o périplo que duraria mais duas semanas na Europa): o câmbio oficial era de um dólar para 0,63 kopecs (o centavo do rublo, que valia mais que o dólar no câmbio oficial). Já entre cambistas e taxistas, pagava-se cinco rublos por dólar (seis a sete vezes mais). Murilo Braga já pedia taxi espalmando a mão com cinco dedos (cógigo logo entendido, com parada brusca)… O presidente José Sarney foi a Moscou pouco depois. Por maldade, os jornalistas brasileiros disseram que a comitiva de Sarney e os operadores do mercado financeiro ensinaram aos russos como deveriam lidar com a hiperinflação…
O medo do erro da aposta
O mercado financeiro brasileiro está ansioso. Por isso o dólar sobe para mais de R$ 5,40. Mas não dá para transferir para Lula as dificuldades de desenhar o cenário futuro – para 2023 e além. A reputação dos economistas e assessores do mercado está em jogo. Há muito não há tanta incerteza. E apostas erradas custam caro não só para os empresários e para os investidores. Também podem fazer rolar as cabeças dos gestores.
Lembro da largada do Plano Real, que veio precedido pelo SPA da URV. A Argentina tinha feito um plano de dolarização que gerou ágio de 20% em relação ao câmbio oficial. Para administrar expectativas, o Banco Central vendeu ORTNs com cláusula cambial, numa aposta de parte do mercado de que na largada houvesse valorização cambial. Num programa na TVE, um colega jornalista expressou a expectativa de que o dólar teria ágio de 20% como na Argentina, Discordei, considerando a aposta exagerada. Na largada do real, o dólar foi cotado em R$ 0,94. E ao longo de três meses desceu a R$ 0,83. Se você não se lembra, caro leitor, vale recordar que os economistas dos mais variados matizes, que tinham apostado em ágio, passaram, dia após dia, semanas após semanas, dando entrevistas pelos jornais dizendo que o câmbio (que foi a âncora inicial do Real, enquanto não tinha um ajuste fiscal) “estava fora de lugar”. Entre os críticos, estavam Delfim Neto, Paulo Guedes e Affonso Celso Pastore.
Sempre desconfiei se a crítica era real ou mais justificativa para o tremendo prejuízo causado pelo erro da aposta.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)