- O maior dos vexames da Seleção Brasileira, pentacampeã e único país a participar de todas as Copas do Mundo, ocorreu em 2014, quando a Alemanha nos goleou por 7 a 1, no dia oito de julho, nas quartas de final, no Mineirão – exuberante estádio inaugurado em 1965, em Belo Horizonte, seguindo as linhas arquitetônicas do Maracanã. Foi justamente naquele esplêndido cenário que, nos anos 1960, brilhou o admirável Cruzeiro do genial Tostão. Até 2014, na segunda vez na qual a competição foi realizada aqui, nossa pior derrota nos gramados, a rigor, havia sido no Estádio de Heysel, em Bruxelas, no dia 24 de abril de 1963, numa noite muito fria, quando a então quase amadora Bélgica nos goleou por 5 a 1.
- A partida era um dos amistosos da desastrada excursão à Europa – chefiada pelo folclórico João Mendonça Falcão (1918 – 1997), Presidente da Federação Paulista de Futebol, que, ao referir-se aos belgas, após o jogo, chamou-os de ‘belgicanos’, por desconhecer a expressão correta. Nossa maior frustração com o escrete nacional, porém, não foram os 7 a 1 contra os alemães ou os 5 a 1 impostos pelos belgas. Mas, inegavelmente, nada sobrepujou o inesquecível ‘Maracanazo’ de 1950.
- Era a primeira vez que o Brasil sediava a Copa do Mundo – um certame interrompido por 12 anos devido a eclosão da Segunda Guerra (1940 – 1945) e aguardado com ansiedade pelos amantes do futebol em todo o planeta. Perdemos por 2 a 1, de virada, na final, para a aguerrida Seleção Uruguaia, precisando apenas do empate, no Maracanã, diante de um público estimado de 200 mil espectadores. Muitos foram os brasileiros que choraram na noite daquele domingo de 16 de julho. Uma verdadeira tragédia.
- Transmitida de geração em geração. Eu tinha exatamente um ano de idade e cresci ouvindo as pessoas traumatizadas com a derrota. Acompanhei, posteriormente, o Brasil conquistar o título de 1958, na Suécia, ser bicampeão em 1962, no Chile, e chegar, no México, ao terceiro, em 1970. Vieram, ainda, o quarto em 1994, nos Estados Unidos, e o quinto, em 2002, no Japão. A debacle frente ao Uruguai, mesmo passados 72 anos, permanece viva, infelizmente, no nosso imaginário. Contudo, ressalto, a vitória uruguaia em 1950 seria reconhecida como justa pela maioria dos jogadores brasileiros que participaram da decisão.
- Constatei o fato em depoimentos que colhi de vários daqueles craques, sobretudo Zizinho (1921 – 2002), o legendário Mestre Ziza, ídolo de Pelé na infância, para uma reportagem, em 1970, pautada pela arrojada revista mensal “Realidade”, da Editora Abril. Haviam passados 20 anos. E os derrotados continuavam sobressaltados e atormentados pela revolta dos torcedores e dos próprios vizinhos – beirando a agressão física. Lembro-me, principalmente, do lateral-esquerdo Bigode (1922 – 2003), mineiro de Belo Horizonte, com atuações pelo Atlético Mineiro, Flamengo e Fluminense.
- Os gols da virada dos uruguaios surgiram, para sua maldição, no setor que guarnecia – por falhas graves. Quando o conheci, este morava em Copacabana, próximo ao velho ‘Beco da Fome’, num apartamento de um cômodo, chamado pelos cariocas de ‘conjugado’, na Rua Viveiros de Castro, e só depois do anoitecer conseguia encontrar coragem para sair de casa – muitas vezes disfarçado. Por isso, seis anos mais tarde, quando vi pela televisão, no dia 28 de abril de 1976, as imagens de outro lateral-esquerdo, desta feita do Uruguai, Sérgio Ramirez, negro como Bigode, em pleno Maracanã, correndo atrás do meia-esquerda Roberto Rivelino, que saíra do Corinthians para o Fluminense, decidi escrever um longo artigo de duas páginas no bem-humorado semanário “Pasquim”.
- Quis narrar as raízes do clássico sul-americano – envolvendo a antiga província brasileira da Cisplatina, que se tornou independente do Rio de Janeiro em 1830, ganhando o nome de República Oriental do Uruguai, e o gigante Brasil. O texto foi publicado na edição de número 358, com data de sete de maio do mesmo ano, tendo como título “Corre, Rivelino”. O jogo era válido pela Copa do Atlântico, que ocorria a cada dois anos, alternadamente, em Montevidéu e Rio de Janeiro ou São Paulo, e a Seleção Brasileira, naquela noite, acabava de vencer ‘los orientales’ por 2 a 1. Rivelino havia feito algumas provocações a Ramirez durante o encontro – e, com o término da partida, o uruguaio saiu correndo atrás do brasileiro para brigar.
- O campeão mundial de 1970 fugiu em disparada em direção ao túnel. Chegou, inclusive, a escorregar na descida da escadaria e se machucar. Em questão de segundos, entretanto, Ramirez foi cercado pelos adversários e levou uma surra. Não só ele. Também os demais companheiros da Celeste Olímpica e membros da delegação da AUF (Asociación Uruguaya de Fútbol). Meu artigo terminou nas mãos do querido e saudoso escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940 – 2015), que já estava exilado em Buenos Aires, onde dirigia a preciosa revista mensal “Crisis”.
- Tenho na minha biblioteca, no bairro paulistano de Higienópolis, duas valiosas coleções completas dos 41 exemplares editados entre 1973 e 1976 – quando a redação foi fechada com o golpe militar que conduziu ao poder, na Argentina, o General Jorge Rafael Videla (1925 – 2013). Aquele “Pasquim” foi entregue ao Galeano por um amigo comum, o jornalista argentino Manuel Epelbaum, correspondente no Rio de Janeiro do diário “Clarín”, de Buenos Aires. Tínhamos os três, como afinidade, para além da amizade que se consolidaria ao longo dos anos seguintes, o fato de sermos hinchas do Nacional, de Montevidéu, e do River Plate, de Buenos Aires. Galeano me enviaria, pouco depois, através de Manuel Epelbaum, carinhosamente chamado de Manolo, um exemplar do livro que lançara recentemente, “La Canción de Nosotros”, com uma lindíssima dedicatória sobre o meu artigo no hebdomadário carioca. Fiquei muito alegre. Era seu fã.
- Tinha lido e relido sua obra mais relevante, “Las Venas Abiertas de América Latina”, publicada em 1971, em Montevidéu. Senti-me imensamente honrado. Galeano fora surpreendido, segundo Manolo, pelos meus conhecimentos sobre as origens da Celeste Olímpica – como admitiria também para mim, dois anos mais tarde, em Barcelona, capital da região espanhola da Catalunha. Ele já estava exilado na localidade catalã de Poblenou e sobrevivia produzindo artigos para vários periódicos espanhóis. Acabei por traduzir do castelhano para o português um de seus textos, “El Destape Espanhol”, publicado revista brasileira “Istoé” – graças à sensibilidade do editor executivo Silvio Lancellotti (1944 – 2022), que, como eu, era admirador do escritor uruguaio.
- Foi nos primeiros meses de 1924 que começou a mística da Celeste – conforme escrevi há 47 anos no “Pasquim”. O então Presidente da AUF, Atilio Narancio (1883 – 1952), de ilustre família de Montevidéu, vinculada ao tradicional Partido Colorado e ao histórico Club Nacional de Fútbol, aceitou um convite para levar a Seleção do Uruguai, campeã do Sul-Americano do ano anterior, para fazer um amistoso na Espanha – em Vigo, cidade portuária, no Atlântico, na Província de Pontevedra, na Galícia. Narancio formou uma espécie de combinado uruguaio, tendo como base, o elenco do Nacional. O grande rival Peñarol, bem como o Central, não cedeu seus jogadores.
- Os espanhóis impuseram uma condição. Só haveria uma segunda partida se a ‘escrete’ de Narancio ganhasse a primeira. A viagem até Vigo, a bordo do navio italiano Desirade, de Gênova, durou um mês. O Nacional reforçado teria desembarcado, no dia oito de abril, e, de acordo com cronistas da época, transportado diretamente ao campo para enfrentar o Real Celta de Vigo – querido clube da Série A espanhola. Ganhou o confronto por 3 a 0. Venceu o segundo desafio contra o mesmo Celta por 2 a 1. Derrotaria também outra agremiação popular da Galicia, o Real Deportivo La Coruña, por 2 a 0, batendo, em seguida, o grandioso Athletic de Bilbao, no Estádio de San Mamés, berço da decantada ‘Fúria Espanhola’, no País Basco, a Real Sociedad, em San Sebastián, duas vezes, e, finalmente, na capital espanhola, “Los Colchoneros” do Atlético de Madrid e o extinto Racing. As surpreendentes vitórias estamparam as manchetes de diversos jornais europeus.
- Os mais deslumbrados eram os franceses que logo patrocinaram a ida da equipe sul-americana a Paris, onde, novamente, superaram todos adversários. Foi lá que Narancio recebeu a confirmação do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de 1924 da inclusão do Uruguai no certame – programado para o banlieu parisiense de Colombes. Narancio consultou os demais dirigentes da AUF, trocando mensagens telegráficas, solicitando autorização para que o combinado pudesse representar a nação. Os conselheiros da AUF, pressionados pela diretoria do poderoso Peñarol, relutaram, no entanto, acabaram por concordar, impondo, porém, um veto: aquele Nacional, incrementado com jogadores de alguns clubes, não poderia representar a legítima seleção do país e, portanto, não deveria envergar a camisa oficial, que era branca, apenas os calções e meias negras. Os próceres da entidade temiam que, caso o time fracassasse, as críticas seriam atenuadas porque, afinal, não era precisamente um selecionado nacional. Até a blusa utilizada era outra. Narancio ficou contrariado. Mas se dobrou à exigência basicamente do Peñarol.
- Providenciou, então, a compra em Paris de camisas celestes – tendo como referência as cores da bandeira do Uruguai. A equipe de Narancio venceria todas as partidas e se sagraria campeão invicto, ao derrotar, na final, a Suíça, por 3 a 0. Os jogadores comemoraram o feito caminhando ao redor da cancha, saudando e agradecendo os aplausos do público. Criou-se, naquele momento, o ritual que seria repetido até hoje e conhecido como volta olímpica. Abatera antes a Iugoslávia, por 7 a 0, os Estados Unidos, 3 a 0, e os donos da casa, a França, 5 a 1. Repetiria o feito, de novo, em quatro anos, em 1928, nas Olimpíadas de Amsterdam, na Holanda, e conquistaria a primeira Copa do Mundo, em 1930.
- Voltaria o Uruguai a ser campeão em 1950, na trágica tarde do ‘Maracanazo’. Sempre com a flamante e belíssima camiseta celeste – que nunca foi abandonada nestes 98 anos. E mais uma vez estará em campo no Qatar – que começará no próximo dia 20 de novembro. Narancio se tornaria Senador, pelo Partido Colorado, e, por duas ocasiões, Presidente do Nacional. Morto há 70 anos, o incansável Narancio, que empenhou os próprios bens para bancar a viagem do combinado, possui uma estátua diante de um dos maiores templos do futebol, o Estádio Centenário, que só existe porque ele existiu. E hoje é um dos símbolos de sua Montevidéu.
ALBINO CASTRO ” MUNDO ESPORTIVO”( BRASIL / PORTUGAL)
Albino Castro é jornalista e historiador