
Jesus Cristo ficaria estarrecido com os novos vendilhões do templo
É inacreditável e desanimador que o país, com tantos problemas sérios a resolver e que se acumularam nos últimos quatro anos por anomia social, com a destruição de boa parte do arcabouço sócio-econômico e ambiental construído desde a plena restauração democrática de 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a ”Constituição Cidadã”, esteja discutindo o seu futuro, às vésperas do segundo turno de 2022, em clima de Fla X Flu. A República Federativa do Brasil é um Estado laico – como já o era o Império – e, no entanto, ficamos discutindo, em primeiro plano, se fulano ou beltrano é mais fiel a Deus. Estão mercadejando o eleitor nos mais variados templos, igrejas, sinagogas ou ambientes da maçonaria. Jesus Cristo ficaria estarrecido com os novos vendilhões do templo. A prova mais evidente foi exposta nas comemorações de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, no dia 12 de outubro, na cidade paulista de Aparecida do Norte, no Vale do Paraíba.
Depois de se batizar nas águas do Rio Jordão, em 2016, pelas mãos do pastor Everaldo Batista, da Assembleia de Deus e líder do PSC – que foi acusado de ser o mentor dos desvios milionários na pasta da Saúde no governo de Wilson Witzel, afastado por “impeachment”, e de quem o atual governador Cláudio Castro era vice -, e se declarar evangélico, o então deputado federal Jair Bolsonaro se elegeu presidente em 2018 e passou todos os seus quatro anos de governo cortejando os pastores e o eleitorado evangélico. Trata-se de um tipo de eleitor fiel que segue a palavra dos pastores, os ”novos coronéis” do Brasil urbano. Se o pastor manda votar, os fieis seguem mais cegamente do que a ordem dos velhos coronéis dos rincões do Brasil rural do século passado. No tempo do voto com cédula, os coronéis levavam os eleitores na caçamba de caminhões e lhes davam a cédula pronta, com os nomes que queria eleger, e um pé de sapato. O par seria completado se os candidatos do coronel fossem eleitos.
Os pastores modernos garantem o voto em troca de um passaporte para o ”reino dos céus”. Os fiéis acreditam piamente. No passado, um deles chegou a criar um ”plano de compra, à prestação, da “casa própria no céu”. O plano foi suspenso pelas autoridades da época. As igrejas e templos são isentas de Imposto de Renda. Mas deveriam prestar conta do dinheiro que entra e sai de suas contabilidades. São franquias milionárias que logo montam filiais nos Estados Unidos, para onde são remetidos os dólares arrecadados nos grandes cultos de fim de semana. Qualquer doleiro pode explicar o forte movimento nas segundas-feiras, quando reais são convertidos em notas pequenas de dólar e embarcados em malas para Miami e outros locais onde se radicaram os mais ricos pastores, que gozam das facilidades dos “passaportes diplomáticos”, uma passagem pela alfândega sem o exame demorado das bagagens. Do mesmo modo, os pastores e prestadores de serviço nos templos não deveriam estar isentos do recolhimento do INSS (individual e patronal). Trata-se de uma dívida em bola de neve (por sinal uma das diversas denominações evangélicas usa esse nome; um dos membros da banda “Raimundos” tornou-se adepto e rachou o grupo). Quando pastores e obreiros se aposentarem por idade, a conta recairá sobre a sociedade (católicos, evangélicos, muçulmanos, umbandistas ou ateus).
Os pastores foram cortejados por Bolsonaro com o perdão de dívidas bilionárias ao Fisco e ao INSS. Em abril do ano passado, cedendo ao “lobby” dos pastores, liderado pelo deputado David Soares, então no DEM-SP, o presidente isentou 16 denominações evangélicas de dívidas no valor de R$ 1,9 bilhão! Davi Soares é filho do pastor R.R. Soares da Igreja Internacional da Graça de Deus, que aluga horário das noites da Band e da Rede TV para suas pregações, e uma das agraciadas por Jair Bolsonaro. Valdemiro Santiago, o pastor do chapelão da Igreja Mundial do Poder de Deus, também foi abençoado por Bolsonaro, bem como Robson Rodovalho, o bispo Rodovalho da Igreja Sara Nossa Terra, frequentada pela primeira-dama Michelle. A transação de recursos das igrejas e templos (isenta do IR pela Constituição, mas não da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) era driblada por entrega aos pastores do resultado da arrecadação. A Receita queria cobrar a CSLL, mas o presidente, já em campanha, isentou a cobrança em abril do ano passado.
Sem prestação de contas, além de “currais eleitorais” as igrejas se tornaram convenientes lavanderias de recursos. Muito mais do que o dízimo dos fiéis, a pujança de muitas igrejas vem da lavagem de dinheiro que pastores fazem no particular para empresários que querem fugir do fisco. O empresário entrega R$ 100 mil ao pastor e este devolve R$ 85/80 mil, e o dinheiro “esquentado” paga menos imposto do que se declarado à Receita Federal. O último ex-secretário da Receita que foi atrás dos pastores, o tributarista Marcos Cintra, que queria criar o imposto único sobre transações financeiras (abolindo quase todos os demais) e foi vice de Soraya Thronicke. O atual secretário, José Barroso Tostes Neto, foi enquadrado pelo ministro Paulo Guedes e o presidente em abril do ano passado, para facilitar a adesão em massa dos pastores ä sua campanha de reeleição. Ah, sim, além do perdão das dívidas, Bolsonaro recriou o Ministério do Trabalho e da Previdência, no ano passado, tirando a interferência supostamente mais fria e isenta do Fisco sobre os negócios das igrejas e seus prepostos. Pelo sim, pelo não, o noticiário tem sido farto em registros de que os pastores passaram a operar influências políticas em ministérios, como o da Educação e da Saúde, em troca de barras de ouro ou de criptomoedas!
Os pastores sabem muito do seu poder político. O pastor Everaldo fincou raízes na política fluminense ao participar do governo Garotinho, no ano 2000. E mantém sua influência mesmo após condenação na Justiça. O pastor que criou o plano da casa própria divina, além de vociferar contra o PT, atua como um dos principais cabos eleitorais da reeleição. No Brasil e além mar. A tal “ameaça de fechamento dos templos” (que seria tramada no governo Lula) não seria apenas o temor de que a Receita Federal do Brasil, que também controlava a arrecadação do INSS, voltasse a colocar a lupa na movimentação financeira de igrejas e pastores?
O papel de lavanderia das igrejas ficou mais patente nesta eleição, quando o Tribunal Superior Eleitoral restringiu as doações de empresas a candidatos ou partidos. O uso das igrejas como biombo, porém, não foi alcançado. O dito pastor da “casa própria celestial” virou um dos mais ativos cabos eleitorais para a reeleição de Jair Bolsonaro. Coube a ele bancar os custos do trio elétrico usado por Bolsonaro no seu comício no 7 de setembro, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Em retribuição, integrou a seleta comitiva dos ‘escolhidos’ para ir a Nova Iorque assistir ao discurso do presidente brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, antes, por que não, uma paradinha na corte de Saint James para o último adeus ao esquife da Rainha Elizabeth II, na Catedral de Westminster, e a se exibir ao lado do presidente na sacada da embaixada do Brasil em Mayfair, bairro elitista de Londres, quando o presidente, desrespeitando todos os ritos dos 10 dias de luto pela monarca, após sete décadas de reinado, fez um badernaço com seus histéricos apoiadores londrinos.
O mesmo comportamento desrespeitoso se repetiu na Basílica de N. Sra Aparecida, dia 12 de outubro, sendo necessário o padre Eduardo Ribeiro, que oficiava uma das missas, advertir os adeptos do candidato, que bradavam o grito de guerra “mito, mito”, de que estavam em uma cerimônia religiosa em um templo católico, e não num comício eleitoral. Depois do carão, Jair Bolsonaro, que obviamente não estava acompanhado do onipresente pastor Silas Malafaia, saiu de fininho, sob vaias dos fiéis católicos. Mas, do lado de fora, a malta bolsonarista, ensandecida e embriagada, com fartas canecas de cerveja ä mão, vaiava o padre e investia aos socos e pontapés contra os jornalistas da emissora católica TV Aparecida, que registrava a movimentação do dia.
E salve as milícias
E o que dizer do Fla X Flu que se tornou a exploração do poder político nas comunidades mais pobres do Grande Rio? Nas áreas dominadas pelas milícias – ex-policiais militares, civis e/ou bombeiros que implantaram a “segurança” dos bairros e ruelas “livres do tráfico”, mas onde eles impõem a taxa de proteção, o monopólio do gato da Light, do “gato Net”, do botijão de gás e do galão de águas, além das vans que fazem o transporte clandestino das comunidades -, esses senhores agem igual aos “novos coronéis” pastores. Só que sua vontade não é apenas orientação cega aos fieis, mas palavra de ordem aos moradores. Levantamento da ONG Tiro Cruzado mostrou que no Grande Rio, nas áreas onde as milícias fecharam com Bolsonaro e sua agenda de liberação de armas e munições, o presidente chegou a ter 90% dos votos.
Por isso, para acirrar o clima de Fla X Flu, bastou uma visita de Lula ao Complexo do Alemão, nos bairros da Penha e Ramos, na zona Norte carioca, com cerca de 13 diversas comunidades em seu interior, para as redes sociais bolsonaristas distorcerem o significado de um boné nas cores preto e vermelho, com a iniciais CPX (abreviação de “complexo” na linguagem de celular). Disparos em massa diziam que o significa era “cupincha do crime”, do CV (sigla Comando Vermelho, uma das facções do narcotráfico que predomina na região). O pior viria depois. A visita de Lula, óbvio, foi à luz do dia, para facilitar a segurança e a interação com os moradores. Mas à noite as redes sociais de Bolsonaro exibiam fogos de artifícios misturados a tiros e luzes piscantes típicas de um baile funk como sendo a comemoração dos traficantes pela “aliança” com Lula.
Debate vai esclarecer?
Diante deste clima pesado e do país literalmente dividido pela ausência de ideias e planos para o futuro do Brasil, Lula segue na frente, graças ao apoio maciço do Norte e Nordeste (chamados de analfabetos pelo presidente), mas a margem é estreita sobre Bolsonaro e a eleição pode ser decidida pelo grau de abstenção. Os eleitores de Lula são mais pobres e com dificuldades para o deslocamento às urnas. A campanha de Bolsonaro quis proibir o transporte público no primeiro turno. No segundo, a abstenção cresce um pouco.
Assim, a campanha segue marcada por ataques virulentos e mentirosos, abaixo da linha da cintura de parte a parte. Espera-se que o debate desta noite entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva sirva para que um e outro apresentem soluções para o combate à fome e à miséria, para fazer a economia crescer e gerar empregos sustentáveis, não mágicas temporárias (com validade até 31 de dezembro de 2022) para turbinar o PIB apenas para dar ao eleitor uma falsa sensação de bem estar.
Quando a ex-presidente Dilma segurou os preços da energia, dos combustíveis, do câmbio e os juros, para garantir sua reeleição em 2014 (os gatilhos foram disparados tão logo saíram os resultados das urnas), a manobra foi chamada de estelionato eleitoral. Nada difere do momento atual.
Lula e Bolsonaro devem apresentar um plano eficaz para o Brasil, que depende apenas de 15% de combustíveis importados (sobretudo diesel e GLP, o gás de botijão) não fiquem atrelados aos preços internacionais. Bolsonaro apenas terceirizou a redução dos impostos nas costas dos governadores e prefeitos, que viram a arrecadação do ICMS, com a qual bancam saúde, educação e segurança, ser cotada a mais da metade. A outra queda veio da baixa internacional dos combustíveis, interrompida na reta final da inflação.
Como iremos cuidar da Amazônia e dos outros biomas com os sistemas de monitoramento e fiscalização desmobilizados? É preciso não esquecer que o Brasil se comprometeu na COP 26, no ano passado, em Paris, com metas ousadas de proteção ao meio ambiente até 2030. Cumprir compromissos não é apenas salvo conduto para a exportação de nossas commodities agrícolas para Europa, Japão, Ásia e Estados Unidos. A própria sustentabilidade da produção agrícola do cerrado do Centro-Oeste será afetada se os “rios voadores” da Amazônia secarem com o desmatamento crescente. Os fenômenos climáticos se sucedem em nossos quintais por culpa da nossa incúria. A fome no país “celeiro do mundo” é mais que uma aberração, é o atestado da incompetência.
Como o Brasil vai participar na economia de transição energética? Como vamos nos inserir na cadeia produtiva mundial? Não podemos, cinco séculos depois, continuar como supridores de matérias primas ou bens intermediários. Sem alcançarmos alto grau tecnológico no agronegócio, na indústria e nas novas frentes de energia alternativa, não sairemos da situação de inferioridade do Brasil Colônia. Um dos motivos é a falta de qualidade e empenho na melhoria da educação. São questões que implicam o futuro do país e das novas gerações. Não é pouca coisa o que precisa ser debatido. Jurar respeito à democracia é indispensável. Mas não basta. É preciso demonstrar subordinação à Constituição.
GILBERTO DE MENEZES CÔRTES ” JORNAL DO BRASIL” ( BRASIL)